14 Outubro 2025
Usando as próprias mãos em muitos casos, começa a gigantesca tarefa de encontrar os restos de seus entes queridos.
A informação é de Seham Tantesh e William Christou, publicada por The Guardian, e reproduzida por El Salto, 13-10-2025.
Ghali Khadr (40) passou dois dias implorando a seus pais que fugissem com ele para o sul de Gaza. Ficar em Jabalia, no norte da Faixa, era perigoso demais, advertiu ele. Mas seu pai, conhecido pela teimosia, recusou-se. A discussão sobre o assunto nunca chegou ao fim. Um bombardeio israelense atingiu a casa de seus pais, soterrando-os sob os escombros.
Freed Palestinian prisoner Anan al-Shalabi, seen here with visible bruises, is among those released in today’s exchange. Several returning captives told Al Jazeera’s Tareq Abu Azzoum they were tortured “more than once a day,” electrocuted, and shot with rubber-coated bullets. One… pic.twitter.com/xSRK4sLphL
— Drop Site (@DropSiteNews) October 13, 2025
Dois dias depois de o cessar-fogo ter sido anunciado, Khadr regressou neste domingo à ruína da casa de seus pais. Após um dia buscando algum vestígio deles entre os escombros de concreto e metal retorcido, a única coisa que encontrou foram fragmentos de seus crânios e partes de suas mãos. “Meu pai, motorista de ambulância aposentado, era conhecido por sua força de vontade e paciência; não conhecia o medo e era sempre otimista”, diz Khadr.
Khadr foi ao cemitério com os restos mortais de seus pais e lá descobriu que o campo-santo também havia sido destruído. Ele decidiu enterrá-los junto às poucas campas (túmulos) ainda intactas.
Assim como Khadr, milhares de palestinos regressaram ao norte de Gaza após o cessar-fogo de sexta-feira com uma sombria tarefa pela frente: desenterrar dos escombros os corpos de seus entes queridos, mortos semanas ou meses antes durante os bombardeios de Israel.
Segundo as estimativas da agência de defesa civil de Gaza, os cadáveres de cerca de 10.000 pessoas estão presos sob os escombros e edifícios desabados. A cessação dos combates permitiu finalmente que o serviço de ambulâncias procurasse os falecidos e oferecesse às suas famílias a possibilidade de lhes dar um encerramento.
"Bibi Netanyahu me ligou tantas vezes pedindo armas que eu nunca tinha ouvido falar, mas as conseguimos, né? Você as usou muito bem.'"
— André Fran (@andrefran) October 13, 2025
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As equipes de resgate têm pela frente uma tarefa gigantesca: estima-se que os escombros em todo o território somam um total de 60 milhões de toneladas.
Com a maioria das estradas destruídas ou bloqueadas pelos escombros, e sem maquinaria pesada para lhes facilitar a tarefa, as equipes de resgate têm de usar marretas e picaretas para abrir caminho lentamente entre os edifícios desabados. Além disso, esses escombros estão repletos de bombas e munições não detonadas.
“Em um primeiro momento, nos concentramos em recolher os cadáveres que jazem nas ruas para preservar o que resta deles, especialmente por causa dos cães vadios que têm atacado os corpos”, diz o chefe de defesa civil do norte de Gaza, Khaled al-Ayoubi, de 64 anos.
Outros socorristas foram obrigados a escavar com as próprias mãos nos escombros. Até agora, recuperaram apenas uma pequena parte do total de 10.000 pessoas desaparecidas. Ainda não começaram a procurar nas ruínas de edifícios de vários andares.
Recepción del doctor Ahmed Mahna, tras ser liberado hoy de la cárceles israelíes.
— Palestina Hoy (@Palestinahoy01) October 13, 2025
El Dr. Ahmed es el director del Hospital Al-Awda en Tal al-Zaatar, al norte de la Franja de Gaza, y fue secuestrado por Israel mientras trabajaba en el hospital. pic.twitter.com/VyCqr6PVCx
Segundo Mohammed al-Mugheer, diretor de ajuda humanitária e cooperação internacional na agência de Defesa Civil de Gaza, deverá ser possível recuperar o total dos cadáveres num prazo de entre seis e doze meses, desde que Israel permita a entrada de maquinaria pesada nos próximos dias.
Muitos residentes do norte de Gaza não podem suportar tanto tempo de espera e começaram o regresso às suas casas em ruínas para procurar por conta própria os seus familiares.
Yahya al-Muqra, de Jabalia, acredita que seu irmão Sharif está morto. Em 25 de julho, ele perdeu todo contato com ele após um bombardeio israelense contra a casa deles. Ele conseguiu visitar o edifício destruído. Não havia nem rasto do corpo de Sharif. “Fomos inspecionar a área, mas não encontramos nenhum vestígio dele, como se tivesse se desvanecido, a casa e tudo o que a rodeava tinha se transformado em escombros”, disse Muqra.
“As testemunhas disseram que o viram pela última vez perto da casa”, acrescentou. Seu irmão sofria de epilepsia e Muqra temia que ele tivesse morrido por falta de medicação, mesmo que o bombardeio não tivesse tirado sua vida.
Saleh's older brother, Naji AlJafarawi, sees his father for the first time after being held hostage by the occupation. His father buried Saleh today, and welcomed Naji back hours later. pic.twitter.com/qFiuoYPVDX
— WearThePeace (@WearThePeaceCo) October 13, 2025
No domingo, Muqra finalmente teve tempo para procurar o seu irmão. Mas trabalhando sozinho não encontrou nenhum vestígio dele. “Esperava encontrar algo que provasse que Sharif tinha estado ali, uma peça de roupa, qualquer pista... Precisamos de maquinaria pesada para procurar entre os escombros, mas estas máquinas não estão disponíveis”, disse.
Para muitas famílias, a dor de não saber quando, onde ou como morreram seus entes queridos é imensa. Estão há meses longe de suas casas, esperando numa espécie de limbo que seja possível encontrar pelo menos um fragmento das pessoas que perderam, algo a que possam dizer adeus.
Dar essa oportunidade aos familiares é o que motiva as equipes de resgate que trabalham sem descanso sob o intenso sol de Gaza, enquanto as famílias esperam ansiosas ao lado deles. “As famílias consideram que recuperar os corpos de seus mártires é uma forma de honrá-los e de preservar suas almas e as tranquiliza saber que seus entes queridos realmente se tornaram mártires e já não estão vivos”, diz Fadi al-Salibi (35), trabalhador da agência de defesa civil.
Muqra espera que nos próximos dias se saiba algo sobre o destino do seu irmão. O seu plano é enterrar Sharif no jardim de sua casa porque os cemitérios do bairro foram destruídos. “Tenho o coração partido porque meu irmão ainda não foi enterrado; um único osso nos permitiria dar-lhe descanso e sentir algum alívio”, diz.
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