07 Outubro 2025
A 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, encerrada em 29 de setembro, testemunhou os habituais momentos tensos e um número crescente de incidentes simplesmente bizarros. Alguns diplomatas abandonaram a sala durante o discurso do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu em protesto contra a campanha militar de Israel em Gaza. França, Reino Unido, Austrália e Canadá juntaram-se aos outros 153 Estados-membros da ONU que já haviam reconhecido a Palestina como Estado.
A reportagem é de Kevin Clarke, publicada na revista America e reproduzido por Settimana News, 02-10-2025.
O presidente dos EUA, Donald Trump, teve alguns incidentes — envolvendo uma escada rolante e um teleprompter — que alimentaram novas teorias da conspiração na comunidade MAGA e levaram um apresentador da Fox News a pedir (talvez brincando) um bombardeio americano à sede da ONU ao longo do East River.
Durante seu discurso na Assembleia Geral, que durou muito além do tempo estipulado, Trump fez uma crítica confusa à instituição, gabou-se da "grandeza" dos Estados Unidos e lamentou as condições econômicas e sociais que, segundo ele, afligem outros estados ao redor do mundo.
O presidente juntou-se assim a um coro crescente da direita americana que condena sistematicamente a agenda das Nações Unidas e até mesmo a sua própria existência. Muitos republicanos defendem abertamente a saída dos Estados Unidos da organização, uma medida que poderia desencadear um colapso institucional semelhante ao da Liga das Nações. De acordo com uma pesquisa Gallup divulgada em setembro, 36% dos republicanos são a favor da saída dos EUA da ONU, quase o dobro dos 19% que apoiaram essa posição em 2005.
Ao lado das críticas dos EUA, novas vozes se levantaram dentro da ONU, pedindo não a expulsão dos EUA, mas a transferência da sede da ONU de Nova York. A imprevisibilidade do governo Trump na concessão de vistos convenceu alguns delegados de que, para cumprir verdadeiramente sua missão de promover o diálogo internacional livre e aberto, a ONU precisa se mudar para um local verdadeiramente neutro.
A retirada de Trump das Nações Unidas
A Casa Branca negou permissão aos representantes da Autoridade Palestina para viajarem à Assembleia Geral, onde o cessar-fogo em Gaza e o futuro da Palestina estavam no centro das discussões. O presidente palestino, Mahmoud Abbas, foi forçado a falar remotamente.
Os Estados Unidos também revogaram o visto do presidente colombiano Gustavo Petro após ele criticar a política americana em Gaza e os bombardeios americanos no Caribe durante seu discurso na ONU. Petro posteriormente se juntou a uma manifestação em frente à sede da ONU em favor da criação de um Estado palestino, pedindo aos soldados americanos que "não apontassem suas armas para as pessoas" e desobedecessem às ordens de Trump.
Washington já começou a se retirar de diversas organizações multilaterais relacionadas à ONU, retirando-se este ano do Acordo Climático de Paris, da Organização Mundial da Saúde, do Escritório de Direitos Humanos da ONU e da UNESCO. Suspendeu o financiamento à agência de ajuda humanitária da ONU para Gaza e a Cisjordânia e ainda não pagou sua contribuição anual devida para 2025, agravando um déficit operacional de US$ 2,4 bilhões e um déficit de US$ 2,7 bilhões para operações de manutenção da paz.
Historicamente o maior contribuinte da ONU, respondendo por cerca de 25% do orçamento geral, os Estados Unidos ainda não pagaram sua parcela de US$ 1,5 bilhão para 2025. Não está claro se o governo Trump pretende pagar essa quantia ou mesmo assinar futuros cheques anuais.
Se Trump cumprisse sua ameaça de retirada total, seria difícil imaginar como a ONU poderia continuar a operar em sua forma atual ou garantir intervenções humanitárias eficazes em áreas de crise como Sudão, Afeganistão e Haiti.
O secretário-geral António Guterres denunciou os cortes na ajuda como "devastadores", chamando-os de "uma sentença de morte para muitos". Um apelo da ONU por US$ 44 bilhões para ajudar 114 milhões de pessoas em todo o mundo está atualmente com apenas 19% do financiamento.
O Vaticano defende o multilateralismo
Apesar do distanciamento crescente dos Estados Unidos e das ameaças de retirada, a Santa Sé continua a ver as Nações Unidas como um instrumento fundamental para a paz e a justiça no mundo.
O Arcebispo Paul R. Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados e Organizações Internacionais, discursou na Assembleia Geral em 29 de setembro, expressando seu total apoio ao multilateralismo e ao diálogo internacional. O 80º aniversário da fundação da ONU, afirmou ele, é "um momento oportuno para reafirmar os valores fundamentais da Organização: promover a paz internacional, o desenvolvimento e os direitos humanos universais, valores ainda mais importantes em um mundo cada vez mais fragmentado".
Em uma mensagem implícita ao governo Trump, ele acrescentou: "É importante lembrar que o isolacionismo leva à instabilidade imprevisível, enquanto a unidade promove a resiliência responsável e o progresso compartilhado. Isso é particularmente evidente nas circunstâncias atuais, em que a escalada das tensões geopolíticas, a crise climática, o aumento da desigualdade e a pobreza crescente exigem uma solidariedade global renovada."
O arcebispo também alertou sobre "novos perigos, como a degradação ambiental e a revolução tecnológica, que nenhum país pode enfrentar sozinho".
Citando o Papa Leão XIV, ele criticou implicitamente os Estados Unidos por seus bombardeios no Caribe e Israel por sua campanha militar em Gaza: "É desanimador ver que a força do direito internacional e do direito humanitário não parece mais ser vinculativa, substituída pelo suposto direito de coagir os outros pela força. Isso é indigno do homem, é vergonhoso para a humanidade e para os líderes das nações."
A ONU: ainda indispensável
Alistair Dutton, Secretário-Geral da Caritas Internationalis, reconheceu as dificuldades da ONU em entrevista à revista America em 23 de setembro, mas expressou confiança na possibilidade de uma retomada. Ele lembrou que as Nações Unidas desempenharam um papel vital na mediação e manutenção da paz em muitas crises internacionais e continuam sendo a única instituição capaz de concentrar a atenção global em questões cruciais como as mudanças climáticas e o desenvolvimento humano.
Embora admitisse certo "cansaço" em relação a países como Haiti, Sudão, Sudão do Sul e República Democrática do Congo, ele alertou contra o ciclo vicioso de indiferença, subfinanciamento e falta de compromisso político. Sem investir recursos em programas humanitários e de construção da paz , disse ele, não deveríamos nos surpreender se a ONU não cumprir sua missão.
Em 2015, a comunidade internacional adotou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) por meio da ONU para combater a fome, a pobreza, a discriminação de gênero e outros males globais interligados. Mas com os Estados, seguindo o exemplo do governo Trump, cada vez mais voltados para si mesmos e desviando fundos da cooperação internacional para a defesa, esses objetivos agora parecem ingênuos e irrealistas.
Dutton, no entanto, insiste na validade deles: "Os Estados Unidos não os consideram mais uma prioridade", admitiu. "E com a redução do financiamento, é fácil dizer que você tem um objetivo, mas sem recursos, as chances de alcançá-lo são drasticamente reduzidas. No entanto, como objetivos ambiciosos, não devemos abandoná-los."
A confiança de Dutton no papel da ONU é compartilhada pela Santa Sé, que reafirmou seu compromisso por meio do Arcebispo Gallagher: "Guiada pelos ensinamentos perenes da Igreja Católica, a Santa Sé pretende permanecer a voz dos que não têm voz, promovendo um mundo onde a paz prevaleça sobre o conflito, a justiça sobre a desigualdade, a lei sobre a força e a verdade ilumine o caminho para a plena realização da humanidade."
Gallagher instou a comunidade internacional a “priorizar a diplomacia em detrimento da divisão, desviando recursos de instrumentos de guerra para iniciativas que promovam a justiça, o diálogo e o apoio aos pobres e aos mais necessitados”.
Reforma e relançamento
A ONU ainda enfrenta reformas estruturais — a começar pelo Conselho de Segurança, paralisado pelos vetos cruzados da China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos —, mas continua sendo uma plataforma indispensável. Atualmente, patrocina 11 missões de paz em todo o mundo e, ao longo de oito décadas, promoveu inúmeros processos de reconciliação, investigações de direitos humanos e missões humanitárias cruciais.
A exclusão da ONU da resposta humanitária em Gaza, substituída por uma fachada politizada como a Fundação Humanitária de Gaza, resultou na morte de milhares de civis, demonstrando os riscos de agir sem o envolvimento das Nações Unidas.
“Precisamos deste lugar”, disse Dutton, apontando para a sede da ONU, “e devemos trabalhar juntos para reviver um sistema que por 80 anos ajudou a construir a paz e a ordem no mundo”.
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