27 Setembro 2025
"Para ser alcançado o desenvolvimento sustentável dependerá de mudanças estruturais, de decisões políticas corajosas, de uma educação/conscientização que reconheça que os recursos naturais são finitos. Esse novo conceito representa verdadeiramente uma nova ordem econômica, que leve em conta a preservação ambiental e o bem viver das pessoas", escreve Heitor Scalambrini Costa, professor associado aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.
Eis o artigo.
As soluções energéticas propostas para frear o avanço do aquecimento global, impedindo seus impactos ainda mais dramáticos, inclui o caminho apontado pela ciência, a da utilização de fontes renováveis de energia: solar, eólica, biomassa e hidrelétricas. Abandonando assim as fontes não renováveis: petróleo e derivados, gás natural e carvão mineral; e consequentemente reduzindo as emissões de gases de efeito estufa (GEE’s).
No Brasil, diferentemente da grande maioria dos países, principalmente os do norte global, onde o setor de energia é o maior emissor de GEE's, em torno de 70% das emissões são de responsabilidade do desmatamento, das queimadas, abrindo caminho para a agropecuária extensiva, liderado pela fermentação entérica produzida pelo processo digestivo do gado, liberando metano; e pelo uso de fertilizantes nitrogenados nas monoculturas. É no setor industrial e no transporte que se concentra a queima de combustíveis fósseis.
Um exemplo de como o Brasil se distingue no cenário internacional é sua matriz elétrica cuja composição é majoritariamente de fontes renováveis. A energia solar, energia eólica e as hidrelétricas, produzem 88% da energia consumida no país.
A geração centralizada de energia com fontes renováveis solar e eólica, apoderando de grandes áreas, tem crescido exponencialmente nos últimos anos, com ocupações predatórias, desmatando e degradando o meio ambiente, principalmente no Nordeste. Estes empreendimentos insustentáveis de geração em larga escala (Disponível aqui), são promovidos por volumosos investimentos de grupos corporativos multinacionais, fundos de pensão, articulados pelos estados e agentes privados, com o apoio e incentivo financeiro do Estado brasileiro, tendo à frente o Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco do Nordeste (BNB).
Os negócios no setor de energias renováveis no país são altamente lucrativos, pois conta com o Sol brilhando o ano inteiro, ventos de excelente qualidade, recursos naturais abundantes e com uma biodiversidade única no planeta. Todavia, como não existe energia limpa, e a produção de energia elétrica renovável em larga escala, no modelo centralizado de geração, acarreta que a agenda da sustentabilidade fica reduzida a um mero discurso, subjugada a interesses econômicos que comprometem o que ela tem de mais essencial: as pessoas e o meio ambiente.
Hoje, contribuindo com aproximadamente 1/3 da matriz elétrica, a geração centralizada eólica e solar no Nordeste, concentra mais de 2/3 destas instalações. Considerada como um novo vetor do desmatamento que assola o bioma Caatinga, tem provocado graves danos e destruição pela expansão acelerada, afetando não somente o meio ambiente, mas também as populações que habitam nesses territórios. Como consequência do desmatamento provocado para abrigar os componentes das usinas de geração, a desertificação é outro grande desafio que ameaça o futuro. Atualmente, cerca de 13% do bioma, que ocupa 86,2 milhões de hectares, o equivalente a 10,1% do território nacional; já se encontra em estágio avançado desse processo.
O que estamos assistindo são decisões cruciais, tomadas à margem da maioria da população brasileira, comprometendo diretamente o presente e futuro dos povos da Caatinga, conhecidos como catingueiros (sertanejos, vaqueiros, agricultores, populações indígenas e quilombolas, entre outros). Seus territórios estão sob ameaça, com seus direitos constitucionais violados como nunca, e com danos irreversíveis à biodiversidade e a seus modos de viver..
Segundo o Censo do IBGE (2022), a região Nordeste, tem a segunda maior população indígena do Brasil, com 528,8 mil pessoas, representando 31,22% do total nacional, em 1.211 localidades. As Comunidades Quilombolas são cerca 5.386, com a maior população, 906.337 de pessoas no NE, correspondendo a cerca de 63,8% do total existente. Nesta região também vivem uma grande população de pescadores artesanais, com cerca de 460 mil pessoas atuando nessa atividade, e que terão em breve a ocupação de parte significativa de seus territórios de pesca pelas instalações “offshore” de usinas eólicas. Em relação a populações camponesas, ribeirinhas, de “fundo de pasto”, não existem dados específicos. É este contingente de pessoas que estão ameaçadas diretamente.
Além do ataque da mineração destrutiva, do agronegócio predatório, da criação de grandes rebanhos de gado, territórios estão sendo expropriados para os chamados projetos verdes. O bioma também sofre pressão devido aos gigantescos sistemas de geração de energia com painéis solares e aerogeradores, que tem desmatado extensas áreas, como mostra os relatórios da rede MapBiomas, organização sem fins lucrativos que monitora, com imagens de satélite, o uso do solo. Em 2023, o desmatamento associado aos projetos energéticos aumentou 24% em comparação a 2022.
Todavia, a ciência mostra que todo processo de geração de energia acaba produzindo algum tipo de poluição, de emissões de GEE’s, desmatamento, agressão e desrespeito/desprezo as populações que vivem próximas aos empreendimentos. São transformações sociais e ambientais que ocorrem para estes moradores, muitas vezes obrigados a deixar seus territórios.
Não existe “energia limpa”, e em nome dela não se pode continuar cometendo as atrocidades, e impactos socioambientais identificados e denunciados pelos vários estudos técnicos-científicos acadêmicos, relatórios de organizações não governamentais, manifestações e protestos populares, denúncias aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.
A transição energética justa, popular e inclusiva não pode e deve ser a simples troca de energéticos. Assim, não haverá a garantia da sustentabilidade, uma relação amigável e de respeito com as pessoas, e com a natureza. Para que realmente caminhemos para um futuro mais justo é necessário que haja uma profunda mudança estrutural nas relações de consumo e produção, do próprio modo de vida de uma sociedade capitalista, consumista e perdulária.
Se há um país no mundo que goza das melhores oportunidades ecológicas e geopolíticas para ajudar a formular uma matriz energética menos agressiva ao meio ambiente – à base da água, do vento, do Sol, das ondas do mar e da biomassa -, este país é o Brasil. Ele é a potência das águas, possui ainda a maior biodiversidade do planeta, as maiores florestas tropicais.
Infelizmente, temos avançado para um modelo de desenvolvimento econômico e social excludente, concentrador de riquezas que privilegia o uso intensivo de recursos naturais, com o apoio governamental a grandes empresas, que são historicamente contrárias a ter limites no uso dos recursos. O que é contrário aos interesses de um desenvolvimento sustentável.
Os bens da natureza são para sustentar a vida humana e não para satisfazer os cofres das companhias multinacionais ou nacionais, dos magnatas, que aliás, nem sempre lembram que o fim último de suas atividades é manter a vida sobre a Terra, e não destruí-la para o benefício limitado de umas poucas pessoas ou empresas.
Portanto, o maior desafio no século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização. É preciso construir uma nova ordem internacional, que respeite a soberania dos povos e das nações. Deslocar, num curto espaço de tempo, o eixo da lógica - viver é produzir sem fim e consumir o mais que pode-, para uma lógica em função do bem-estar social, do exercício da liberdade, da democracia, da solidariedade e da cooperação entre os povos.
Para ser alcançado o desenvolvimento sustentável dependerá de mudanças estruturais, de decisões políticas corajosas, de uma educação/conscientização que reconheça que os recursos naturais são finitos. Esse novo conceito representa verdadeiramente uma nova ordem econômica, que leve em conta a preservação ambiental e o bem viver das pessoas.
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