“Ilhas de compaixão num mar de indiferença” (Papa Francisco). Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: Jiarong Deng | Pexels

27 Setembro 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 16,19-31.

Eis o texto.

“...há um grande abismo entre nós” (Lc 16,26).

A parábola deste domingo talvez seja uma das mais “escandalosas” e verdadeiras do Evangelho. Certamente, seu conteúdo é impactante e desmascara a profunda divisão que há entre “epulões” e “lázaros” em nosso mundo; parábola inquietante porque coloca em questão a “ordem” econômica na qual estamos inseridos.

Sob esta perspectiva, a parábola conta a verdade invertida de nossa humanidade: o mundo “epulão”, próprio daqueles que só vivem para alimentar sua vaidade e seu prazer à custa dos pobres, está destinado à destruíção, não por castigo externo de Deus, mas por sua própria condição de fechamento e indiferença; eles se alimentam e engordam para a morte, ao rejeitarem o caminho de vida que se faz visível na ajuda mútua e no amor aberto aos mais necessitados.

Este é o tema: um rico fechado em sua riqueza apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito algo contra o pobre Lázaro, mas porque não demonstrou compaixão com aquele que é vítima de uma estrutura social e econômica injusta.

Sabemos que em toda parábola o ouvinte passa por uma transformação interior; ele se abre porque ela o fascina, e, sem perceber, a narrativa o leva a outro nível. De repente, o ouvinte se sente envolvido na cena. Algum aspecto seu, que até então havia permanecido no escuro, é iluminado; agora é capaz de olhar-se de modo diferente.

Uma parábola “dá o que pensar”. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos detalhes. Dizem os especialistas que, quando Jesus contava parábolas, apelava aos sentimentos mais primários de seus ouvintes (muitas vezes adversários) para fazê-los mudar. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, ou do filho pródigo que retorna à casa, estaria dizendo aos seus adversários: “Vocês não sentem compaixão por essa pobre gente? Não sentem revirar suas entranhas?”

Talvez ao contar a parábola do rico e de Lázaro”, estaria nos dizendo: “Vocês não se envergonham de viver em um mundo assim, de ricos e de lázaros, de milionários e de famintos?...”

Se esta parábola não provoca em nós nenhum tipo de incômodo, se não desperta nossa vergonha, se não nos faz sentir afetados pelo que ali há de insulto ao pobre, se não nos mobiliza para uma superação desse escândalo..., é sinal de que a desumanização chegou ao fundo do poço.

Na parábola do evangelho de hoje aparecem três personagens: o pobre Lázaro, o rico sem nome e o pai Abraão. De um lado, a riqueza agressiva. Do outro, o pobre sem recurso, sem direitos, coberto de úlceras, impuro, sem ninguém que o acolha, a não ser os cachorros que lambem suas feridas. O abismo que separa os dois é a porta fechada da casa do rico.

A coexistência de riqueza e pobreza é, em si mesma, ruptura fundamental da solidariedade humana, negação de humanidade; é um flagrante violação da convivência humana, uma ofensa ao fundamento dos direitos humanos. “O luxo de uns converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Puebla 28).

O “rico e Lázaro” constituem um enorme escândalo em nosso mundo. É uma ofensa que se faz aos pobres pelo simples fato de serem indigentes ao lado de opulentos.

O foco para compreender o sentido da parábola é o pobre Lázaro, sentado à porta. Ele representa o grito calado dos pobres do tempo de Jesus e de todos os tempos. Deus vem até nós na pessoa do excluído, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o abismo intransponível que a riqueza criou.

A parábola é cheia de ironia. Para começar, o rico aparece sem “nome”: não ter nome naquela cultura era praticamente sinônimo de não existir; às vezes o rico é designado como “epulão”, mas é um adjetivo, que tem sua raiz no costume romano dos “épulos” ou banquetes; o pobre, pelo contrário, se chama “Lázaro”, ou seja, “Deus ajuda”. Ele tinha identidade; o rico era tão pobre que só tinha bens.

Com sua morte, o mendigo “é levado pelos anjos para o seio de Abraão”; o rico, pelo contrário, “morreu e foi enterrado”. O “seio de Abraão” é a fonte de vida, de onde nasceu o povo de Deus. Lázaro, o pobre, faz parte do povo de Abraão, do qual era excluído enquanto estava à porta do rico. Este pensa ter fé e ser filho de Abraão; mas só há um jeito de estar com Abraão: abrir a porta ao necessitado. A salvação para o rico não é Lázaro trazer uma gota de água para lhe refrescar a língua, mas é ele, o próprio rico, abrir a porta fechada para o pobre e, assim, transpor o grande abismo que os separa.

A chave de compreensão da parábola podemos encontrá-la justamente nesta expressão: “um grande abismo”. Um abismo que se revela não só após a morte, mas que ficara visível na indiferença do rico frente a presença do pobre à sua porta. Ele não tinha feito mal ao necessitado; simplesmente não o tinha visto.

O rico não vê o pobre, não vê a Deus; não escuta o pobre, não escuta a Deus. Não está contra Deus, nem contra o pobre; unicamente está cego. A riqueza o cega e o impede de viver para o outro; a riqueza endurece seu coração e o torna insensível. Esse “não ver” (“olhos que não veem, coração que não sente”) é o que cria um abismo intransponível em nossas relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.

A vivência da compaixão requer uma sensibilidade limpa e uma afetividade livre. Tanto o endurecimento (ou petrificação) da sensibilidade como o bloqueio afetivo impedem sentir-com-os-outros.

Não é estranho que o evangelho denuncie, com todo vigor, a indiferença, como a atitude mais negativa que rompe toda possibilidade de encontro. É totalmente coerente se temos em conta que a indiferença é justamente o oposto à compaixãoque constitui o núcleo da mensagem de Jesus.

A compaixão nos faz tremer “nas entranhas” frente à dor, alheia ou própria, e nos move a lhe dar uma resposta eficaz. A indiferença nos adormece no pequeno refúgio do ego. A compaixão é a linguagem de Deus que nos salva da indiferença e do fechamento em nós mesmos. É um amor que nos expande em direção aos outros, sobretudo os mais excluídos e perdidos.

Assim afirmou o Papa Francisco: “os cristãos devem ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.

A conclusão de tudo isso parece clara. Para viver a compaixão, precisamos, antes de mais nada, despertar nossa sensibilidade diante dos outros, sobretudo aqueles que estão à nossa porta e não os vemos. A cegueira diante dos outros, sintoma de uma sensibilidade rígida ou congelada, torna impossível a compaixão. Precisamos restabelecer o contato com nossos sentimentos; despertada nossa capacidade de sentir, poderemos depois sentir-com-os-outros, ou seja, experimentar compaixão.

A transformação do coração exige um despertar de nossa sensibilidade. O discípulo de Jesus, com sua sensibilidade cristificada, não fugirá da realidade das pessoas e da natureza, mas se relacionará com elas, buscando também nelas a presença de Deus. Nesse sentido, a sensibilidade cristificada é o motor da sua vida e da sua conduta. E os “abismos” serão superados.

Portanto, mediante uma acolhida contemplativa da Parábola deste domingo, vamos transfigurando nossos sentidos e convertendo nossa sensibilidade, para aproximar-nos da realidade como Jesus se aproximava, com uma sensibilidade cada dia mais parecida com a d’Ele.

À medida que vai se realizando esta conversão de nossa sensibilidade, nós nos fazemos capazes de nos tornar presentes junto aos mais necessitados à maneira de Jesus de Nazaré, abrindo a porta de nossas casas para acolhê-los.

Para meditar na oração 

Em chave de interioridade: carregamos um pobre Lázaro em nosso interior (feridas, fracassos, traumas...) que está à porta do rico ego e que clama por alimento, atenção, cuidado... O ego está cheio de si, prepotente, perfeccionista e não é capaz de abrir a porta do próprio interior para deixar o “lázaro” entrar em sua casa.

Criamos um abismo interior: divisão, conflito... que se transforma em um inferno. Basta abrir a porta para acolher o Lázaro: é através dele que Deus entra em nossa vida.

Quem tem sensibilidade e compaixão para acolher seus “lázaros interiores” também terá sensibilidade para acolher os lázaros vítimas das estruturas sociais e econômicas injustas.

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