25 Setembro 2025
O povo dá provas de determinação, consciência e capacidade de combate para se adonar de seu destino, e o faz com alegria, entusiasmo e otimismo.
O artigo é de Luiz Marques, docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado de Cultura no Rio Grande do Sul, publicado por Sul21, 24-09-2025.
Eis o artigo.
As mobilizações cívicas nas cidades brasileiras, dia 21 de setembro, véspera da estação das flores, mostraram o descontentamento do povo com a PEC da Bandidagem e o PL da Anistia. A opinião pública teve um registro midiático, estatístico e político que decerto vai influir nos humores de Brasília. A extrema-direita baixou a crista com as imagens, números e à potência da estética democrático-popular. A desaprovação com a desfaçatez da Câmara de Deputados é retumbante.
Não se pode afirmar que a opinião pública não existe, como fizeram teóricos cinquenta anos atrás. Um “ethos de classe” desfilou nas marchas que marcaram o domingo, remetendo a uma volta da esquerda e seu pluralismo às ruas, com o encantamento das mudanças devolvido à classe média. A posição do presidente Lula em defesa da democracia e da soberania nacional, no enfrentamento ao bolsonarismo e ao pesado tarifaço dos Estados Unidos, contribui para o despertar da letargia.
Ao se reapropriar de temas que dialogam com a comunidade nacional por meio de um projeto de nação, sem temer afirmar os valores cumulativos da civilização moderna e o princípio da soberania em direção à dignidade e à felicidade – o governo federal sintetiza com sucesso a retomada das lutas pela sociedade civil. É com gosto que as pessoas saíram de suas casas para fazer história.
Trata-se de um marco na conjuntura do país. Como uma epifania que ilumina a consciência coletiva, o momento reconstitui os afetos da nacionalidade e do patriotismo que o processo de globalização neoliberal, cantado em prosa e verso na imprensa corporativa, dissipa. O ardor pátrio caricatural (bolsonarista) reafirma as hierarquias sociais rígidas da dominação tradicional contra as organizações dos trabalhadores e os partidos e os movimentos do espectro progressista. No entanto, os conceitos voltam ao leito do “direito a ter direitos”, com coragem. É o sinal, de Norte a Sul.
O acontecimento não tem um caráter isolado. Compõe o mosaico de resiliência que se observa nas pesquisas que colocam o Brasil na vanguarda da luta pela cooperação mundial, para combater a crise comercial, bem como a crise climática e social. O Brics se fortalece como uma alternativa à unipolaridade e ao fracasso dos EUA na liderança global, com o protagonista que aprofunda os problemas que afligem a humanidade e o planeta no século XXI. Um novo mundo é possível.
O espírito universalista converge para um nacionalismo positivo, orientado para a globalização da solidariedade, não do capital financeiro, não dos algoritmos do capital-nuvem. O eco das demandas socioeconômicas e ambientalistas revela que as promessas de prosperidade do neoliberalismo, confundidas com promessas da própria democracia, se esfumam no ar. O espírito do tempo começa a ser captado pela esquerda (governo, partidos, movimentos). A extrema-direita parece que não compreende os ventos atuais: confinada em bolhas, perde a sintonia e o leme da opinião pública.
As opiniões que criam um universo paralelo já não convencem. O negacionismo com relação às vacinas continua a preocupar os epidemiólogos, porém, os que se colocam contra as campanhas de vacinação não têm audiência para se expressar publicamente. O conhecimento científico sobre a evolução das doenças e as medidas necessárias para preveni-las, na rede pública de saúde, retornam à condição de paradigma. O discurso contra a política in totum se esvazia. A apresentação espúria de propostas que afrontam o bom senso e a decência esbarram nas denúncias dos progressistas.
O jogo de opiniões que validava os absurdos, sem limites, resgata o crédito epistemológico sob a racionalidade não negacionista. A legitimidade das opiniões religa-se aos valores da democracia e da soberania nacional. Basta comparar o defendido nas manifestações obscurantistas, no início de setembro, com a agenda das mobilizações iluministas, muito mais robustas, convocadas pela Frente Brasil Popular e pelo Povo Sem Medo. A distinção de conteúdo era um fato intelectual; hoje é um fato de massas, contando com uma adesão transversal na população. As opiniões que exprimem interesses particulares são vencidas por aquelas que refletem a urgência dos interesses gerais.
O espaço para a manipulação se reduz. O terreno público é menos afetado pelas paixões que cegam o discernimento. A autenticidade das opiniões precisa da chancela dos direitos humanos, da empatia com o sofrimento dos concidadãos (concivis). A razão reencontra a política, e vice-versa. Agora a persuasão prevalece sobre a correlação de forças. Os procedimentos importam nas avaliações. Uma exigência ética se impõe no debate público, coisa que deixou de ocorrer em um período recente.
A liberdade se junta à responsabilidade na aferição da verdade. A política deixa de ser um octógono para os conflitos, que então se assemelhavam às lutas marciais em um vale-tudo da cintura para baixo. As regras devem ser respeitadas por todos e todas. A participação cidadã cobra coerência e veracidade das assertivas e narrativas. Fake news, mentiras, murcham fora do circo de horrores.
O povo dá provas de determinação, consciência e capacidade de combate para se adonar de seu destino, e o faz com alegria, entusiasmo e otimismo. A utópica caminhada atravessa o inverno. O horizonte se abre. A estrela brilha. A natureza floresce. É tempo de primavera. Quem vem lá.
A exemplo da canção “Jenny dos Piratas”, de Kut Weill com letra de Bertolt Brecht, o povo brasileiro ensina o mundo ao anunciar a primavera, protestando qual a camareira do hotel que se torna uma pirata temível para se vingar das injustiças na Ópera dos três vinténs, escrita sob o temor do autoritarismo crescente que pavimenta o mal do nazifascismo, na Europa de priscas eras.
“Meus Senhores, hoje aqui me veem estes copos lavar, / E faço a cama a qualquer malandro fiel. / E dão-me uns cobres, e eu digo ‘obrigada’ a saltar, / E os Senhores nem sequer sonham com quem estão a falar. / Mas uma bela noite vai haver gritaria no porto / E hão de ver-me sorrir cá com os meus copos / E dirão: Por que é que sorri esta? // E um navio de oito velas / E cinquenta canhões / acostará ao cais”. Os donos do mundo não entendem ainda por que sorrimos nos últimos dias.
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