16 Setembro 2025
“A violência é a marca registrada dos Estados Unidos. (...) Há dois séculos, os Estados Unidos vivenciam a ‘síndrome do carcereiro’: reproduzem internamente, de forma enrustida, a barbárie que espalham em suas 750 bases militares alastradas pelos cinco continentes”. A reflexão é de Jorge Elbaum, em artigo publicado por Página/12, 13-09-2025. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A violência é a marca registrada dos Estados Unidos. O intervencionismo, as invasões militares de países considerados vassalos, os bloqueios, a promoção de golpes militares, as punições econômicas, as ameaças de sanções, as associações espúrias com elites para controlar economias estrangeiras subordinadas e o uso da comunicação para manipular consciências globalmente constituem disposições de violência estrutural que necessariamente permeiam o cotidiano dos estadunidenses. Há dois séculos, os Estados Unidos vivenciam a “síndrome do carcereiro”: reproduzem internamente, de forma enrustida, a barbárie que espalham em suas 750 bases militares alastradas pelos cinco continentes.
Esse universo de violência externa reverbera em quem a pratica. Um fuzileiro naval que, durante sua permanência no Iraque, duas décadas atrás, contribuiu para o assassinato de famílias indefesas no Iraque, retornou ao seu país com a consciência dilacerada e o equilíbrio emocional abalado. Sua história de vida, multiplicada por centenas de milhares, somada à vida de jovens acostumados a conviver com armas em casa, explica em grande parte sangria interna sofrida diariamente por aqueles que temem outro tiroteio em escolas ou universidades. De acordo com uma pesquisa da Gallup, 44% dos adultos americanos possuem pelo menos uma arma de fogo. Esses adultos fazem parte de uma nação que possui 46% de todas as armas de uso civil no mundo, embora representem apenas 4% da população global.
De acordo com a organização suíça Small Arms Survey, nenhuma outra nação possui mais armas civis do que pessoas. Três países possuem legislação que permite o livre porte ou posse de armas de fogo para cidadãos civis: o México, a Guatemala e os Estados Unidos. No entanto, a taxa de posse nos dois primeiros é um décimo da taxa do país governado por Donald Trump. Atualmente, os homicídios por armas de fogo representam quatro por 100.000 habitantes, cerca de 18 vezes a média de outros países desenvolvidos. A taxa de mortes por armas de fogo entre civis é 22 vezes maior do que na União Europeia, segundo dados do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde. A cultura das armas, em uma sociedade repleta de violência centrífuga e interna, tende a justificar seu próprio derramamento de sangue: quase um terço dos adultos estadunidenses dizem que haveria menos crimes se mais cidadãos possuíssem armas.
A violência política nos Estados Unidos também tem componentes históricos, dada a polarização fomentada por visões de mundo supremacistas e aquelas moldadas por religiosidades fundamentalistas. O discurso de ódio não é uma inovação estadunidense, mas é nesse país onde é mais prevalente, e de forma aberta. Em nome da liberdade de expressão, afro-americanos podem ser humilhados, imigrantes insultados, mulheres menosprezadas e dissidentes sexuais abusados. Esses discursos impiedosos, além disso, podem ser expressos e disseminados – sem custo político ou legal – por líderes políticos e sociais, aumentando o ressentimento e o ódio. O influenciador trumpista, Charlie Kirk, assassinado em 11 de setembro, acreditava que a aprovação da Lei dos Direitos Civis, defendida por Martin Luther King Jr. e sancionada pelo presidente Lyndon Johnson em 1964, tinha sido um grave erro. Graças a essa legislação, os afro-americanos obtiveram o direito ao voto apenas um ano depois, em 1965.
Kirk também afirmou que “a comunidade gay era destrutiva” para o seu país e que esse grupo “deveria ser reduzido”. Em relação aos profissionais da saúde que trabalham com famílias de pacientes transgênero, ele acreditava que deveriam ser julgados como os nazistas em Nuremberg. Para apoiar a posição de Trump em relação aos migrantes, ele disse que “eles são responsáveis por roubar as casas dos estadunidenses”. Afirmou que a Segunda Emenda (que autoriza cidadãos americanos a portar armas) não deveria ser revogada, mesmo com a continuação dos tiroteios em massa. “Este é o preço a pagar pela liberdade”, enfatizou.
Sua caracterização dos setores progressistas consistiu em alertar que “a esquerda não vai parar até que você, seus filhos e os netos de seus filhos sejam eliminados”. Ao se referir a pessoas de ascendência africana, ele considerou que “os negros saqueadores estão por aí procurando diversão para atacar brancos”. E em relação a Gaza, foi eloquente: “As mortes de mulheres e crianças em Gaza são culpa do Hamas, não de Israel, assim como as mortes no Japão durante a Segunda Guerra Mundial foram culpa do Japão, não dos Estados Unidos”.
Trump descreveu Kirk como um “mártir da verdade e da liberdade” e culpou a “retórica da esquerda radical” pela violência política. Enquanto isso, um dos apoiadores famosos do presidente dos EUA, o ator James Woods, compartilhou uma mensagem nas redes sociais na qual alertava: “Caros esquerdistas: podemos ter uma conversa ou uma guerra civil. Mais um golpe de vocês e nunca mais terão essa opção”. O bilionário Elon Musk, por sua vez, referiu-se ao assassinato, afirmando que “a esquerda é o partido do assassinato”. De acordo com uma pesquisa de opinião pública divulgada na semana passada, mais de 20% dos eleitores de Trump apoiam a violência política em determinadas circunstâncias. Esse número é o dobro do apoio entre os eleitores democratas.
Em outubro de 2020, 13 homens foram presos enquanto planejavam a tentativa de sequestro da governadora de Michigan, Gretchen Whitmer. Em janeiro de 2021, milhares de republicanos furiosos invadiram o Capitólio para impedir a posse de Joe Biden. Em 2022, o juiz da Suprema Corte Brett Kavanaugh foi alvo de uma tentativa de assassinato. No mesmo ano, um supremacista branco invadiu a casa de Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos Representantes, e agrediu seu marido de 82 anos com um martelo. Em setembro de 2024, em plena campanha eleitoral, Trump sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Em abril passado, o governador democrata da Pensilvânia, Josh Shapiro, foi atacado com uma bomba incendiária em sua casa. Dois meses depois, a presidente democrata da Câmara dos Representantes de Minnesota, Melissa Hortman, foi baleada e morta, juntamente com seu marido, por um supremacista branco.
A taxa global de homicídios é de 5,8 mortes por 100.000 habitantes. Os Estados Unidos têm uma média de 7, liderando o caminho nesta pandemia de violência. Após o assassinato de Kirk, as ações da varejista de armas GrabAGun subiram 9,4%. Um dos membros do conselho é Donald Trump Jr. A razão tanática vincula organicamente o império à sua estrutura interna.
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