21 Agosto 2025
Ao abordar os temas anunciados no título dessa matéria, Marcus Tulius enfatiza que “o desafio imposto à sociedade é deslocar o debate da espetacularização para a reflexão crítica. Isso significa compreender que as plataformas, ao mesmo tempo que democratizam a expressão, também estabelecem métricas e formatos que influenciam profundamente os comportamentos. Tratar desses fenômenos exige considerar que a exposição midiática não é neutra”.
Marcus Tullius é mestre em Comunicação e coordenador de comunicação da Cáritas América Latina e Caribe. Atuou como coordenador da Pascom Brasil entre 2018 e 2024 e integra o Grupo de Reflexão sobre Comunicação (Grecom) da CNBB. Apresenta o programa Igreja Sinodal em emissoras de inspiração católica.
Nas últimas semanas, dois fenômenos aparentemente opostos dominaram as redes sociais brasileiras: a denúncia sobre a adultização de crianças, feita pelo influenciador Felca – publicada no dia 6 de agosto e com mais de 40 milhões de visualizações em 8 dias –, criticando e denunciando a exposição precoce a estéticas e comportamentos adultos, e a viralização dos adultos usando chupeta como forma de aliviar o estresse ou gerar humor. Embora distintos, ambos se entrelaçam no mesmo tecido cultural: a sociedade midiatizada, onde práticas sociais são moldadas e amplificadas pelas redes, em permanente disputa de sentidos e narrativas.
Certamente, dois assuntos tão complexos são multifatoriais e não podem ser tratados de maneira superficial. A adultização infantil não se resume a uma criança “parecer” adulta, mas envolve um deslocamento, por vezes sutil, dos referenciais da infância para territórios antes reservados a fases posteriores da vida. Esse processo se manifesta no vestir, falar, gestual e nas expectativas projetadas sobre a criança, acelerado por estéticas e narrativas que circulam nas telas. Neste contexto, a erotização infantil arranca a criança do espaço seguro que lhe pertence e a projeta em um cenário de exposição e vulnerabilidade, onde passa a ser vista como portadora de atrativos sexuais e comportamentos antecipados de fases posteriores da vida.
Tal exposição, que muitas vezes rende aplausos rápidos no palco digital, pode ter implicações profundas para o desenvolvimento e a integridade infantil, além de serem a oportunidade perfeita para predadores que estão à espreita para consumirem seus desejos sexuais e cometerem abusos. Um dos citados no vídeo de Felca, o influenciador Hytalo está sendo investigado pelo Ministério Público da Paraíba (MPPB) e Ministério Público do Trabalho (MPT) por exploração e exposição de menores de idade em conteúdos produzidos para as redes sociais, foi preso preventivamente na sexta-feira, 15 de agosto.
A outra faceta deste texto, o fenômeno da infantilização dos adultos, embora possa parecer apenas uma trend humorística, revela-se mais complexo. Pode ser um gesto de aproximação com a infância, seja como refúgio nostálgico ou provocação lúdica diante das pressões da vida adulta. Psicólogos apontam que crescer já não significa cortar vínculos com referências afetivas de outras fases da vida.
No ambiente digital, esse gesto é frequentemente performático, mas tem sido apontado como mecanismo de autorregulação emocional diante de ansiedade, estresse crônico ou esgotamento, especialmente em contextos de sobrecarga laboral. No entanto, quando transformado em espetáculo público e repetido à exaustão, torna-se mais uma resposta condicionada aos incentivos algorítmicos, ou seja, mais uma “modinha”.
Nesse vai e vem, não se trata tanto de um simples “trocar de papéis”, mas de perceber que as identidades de infância e adultez já não vivem em territórios isolados. A sua re-configuração à luz — e à pressão — das telas, num mundo em que tudo se espalha rapidamente, convida-nos a pensar não apenas quem está agindo “fora do seu tempo”, mas porque essa fronteira parece importar cada vez menos.
Em uma sociedade hipermidiatizada, não é apenas a vida que aparece nas mídias, mas a própria vida se reorganiza segundo os formatos e expectativas delas. Conteúdos são pensados para a câmera e para o algoritmo, buscando impacto visual e potencial de compartilhamento. Num ecossistema alimentado pela economia da atenção, imagens que quebram expectativas – como uma criança com maquiagem pesada ou um adulto com chupeta – ativam curiosidade, humor ou choque, gerando engajamento e, consequentemente, lucro.
Em Sociedade da transparência, Byung-Chul Han aborda essa era onde o imperativo da visibilidade e da ausência de mistério destrói as fronteiras e os espaços de privacidade, tornando tudo imediatamente acessível. Segundo o filósofo, “o capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo tudo como mercadoria e votando-o à hipervisibilidade” [1].
Diante dessa lógica mercantil, Han sugere que "o dedo que digita torna tudo consumível. O dedo indicador que pede mercadorias ou alimentos transfere forçosamente seu hábito consumista para outras áreas. Tudo em que ele toca se transforma em mercadoria. [...] Despojado de sua alteridade, o outro também se torna consumível" [2]. Se tudo se torna consumível e as interações são mediadas pela lógica do engajamento e da audiência, acentua-se, ainda mais, a dimensão do outro como um objeto. Esvazia-se a alteridade de sua dimensão ética, pois o que importa não é o encontro com o diferente, mas sim o que o outro pode oferecer em termos de valor de mercado e capital simbólico.
Essas dinâmicas abrem espaço para um debate mais amplo sobre questões éticas e regulação de redes sociais. No caso da adultização infantil, o problema ultrapassa o campo do gosto ou da estética para entrar na esfera dos direitos da criança e do adolescente, reconhecidos como sujeitos em desenvolvimento e, portanto, merecedores de proteção especial. Na Câmara dos Deputados, será criado um grupo de trabalho para elaborar um projeto de lei para combater a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais. Já está no radar do governo federal, o envio ao Congresso Federal depois dessa discussão, de um projeto de lei que regulamenta as plataformas com foco na proteção de usuários contra golpes, crimes e violações aos direitos de crianças e adolescentes.
A erotização precoce ainda levanta questões não só sobre consentimento, exploração de imagem e responsabilidade legal dos responsáveis e das próprias plataformas, senão, um dos pontos mais importantes, que é a responsabilização das plataformas digitais em todos os casos, com um destaque para a exploração sexual infantil. Quando se toca em regulação, o assunto divide opiniões e ainda não foi suficientemente debatido com a ampla maioria da sociedade.
Por outro lado, os comportamentos ligados à infantilização de adultos podem parecer inofensivos à primeira vista — e muitas vezes são defendidos como manifestações legítimas de liberdade individual ou como válvula de escape para o cotidiano —, mas também suscitam reflexões mais amplas sobre os limites do discurso, a exploração de vulnerabilidades emocionais e os incentivos algorítmicos que premiam comportamentos extremos.
A repetição constante dessas imagens nos feeds pode normalizar a busca por refúgio em expressões “infantis” não tanto como gesto espontâneo, mas como resposta condicionada a um ecossistema de recompensa digital, no qual likes, comentários e compartilhamentos funcionam como reforços positivos que mantêm o ciclo ativo. Esse cenário desafia não apenas a compreensão psicológica do fenômeno, mas - uma vez mais! - a responsabilidade ética das plataformas em lidar com conteúdos que, mesmo sem risco aparente imediato, podem influenciar padrões coletivos de comportamento e percepção.
Nesse cenário, é urgente que as plataformas de redes sociais, controladas pelas big techs, adotem mecanismos mais eficazes de moderação de conteúdo, não para cercear, senão para contribuir para o bem-estar social de maneira compartilhada com usuários, famílias e demais órgãos da sociedade civil. A regulação, no entanto, não pode ser pensada e vista apenas como controle punitivo, mas como parte de uma política cultural que equilibre liberdade de expressão, proteção de direitos e promoção de ambientes digitais mais saudáveis.
O desafio imposto à sociedade é deslocar o debate da espetacularização para a reflexão crítica. Isso significa compreender que as plataformas, ao mesmo tempo que democratizam a expressão, também estabelecem métricas e formatos que influenciam profundamente os comportamentos. Tratar desses fenômenos exige considerar que a exposição midiática não é neutra.
Cada trend que cruza a linha entre idade, identidade e papel social nasce de uma cultura em que o “agora” vale mais do que o processo e onde o entretenimento frequentemente engole a complexidade da questão. Tanto a adultização infantil quanto a infantilização dos adultos, embora de naturezas distintas, se encontram na mesma lógica mercadológica que transforma expressões de vida — e até de exaustão — em produtos de consumo rápido. A primeira desloca precocemente a criança para um mercado de imagens e comportamentos adultos; a segunda oferece ao adulto exausto um refúgio performático, embalado para engajar e vender. Em ambos os casos, o cansaço e a lógica da visibilidade convergem para alimentar um ciclo de exposição e mercantilização que dificilmente se rompe. Talvez, em poucas horas ou dias, surja outra trend e este assunto, de extrema relevância, se perca na próxima onda viral, desperdiçando-se a oportunidade de ampliar o olhar crítico e criar estratégias para lidar com essas novas fronteiras.
Notas
[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 59.
[1] HAN, Byung-Chul. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 44.