19 Agosto 2025
Um esquadrão secreto do exército vasculhou a Faixa de Gaza em busca de material para reforçar a propaganda israelense, incluindo alegações questionáveis que justificariam o assassinato de jornalistas palestinos.
A reportagem é de Yuval Abraham, publicada pela revista +972 e reproduzida por CTXT, 18-08-2025.
O exército israelense tem uma unidade especial chamada “Célula de Legitimação”, encarregada de reunir informações sobre Gaza que possam reforçar a imagem de Israel na imprensa internacional, de acordo com três fontes de inteligência que falaram à +972 [revista semanal israelense] e ao Local Call [site noticioso em língua hebraica] e confirmaram a existência da unidade.
Criada após 7 de outubro, a unidade buscava informações sobre o uso de escolas e hospitais pelo Hamas para fins militares, bem como sobre lançamentos fracassados de foguetes por grupos armados palestinos que causaram danos a civis no enclave. Também foi incumbida de identificar jornalistas sediados em Gaza que possam ser apresentados como agentes secretos do Hamas, em um esforço para apaziguar a crescente indignação global com os assassinatos de repórteres por Israel, como o do jornalista da Al Jazeera, Anas Al-Sharif, morto em um ataque aéreo israelense na semana passada.
Segundo fontes, a motivação da Célula da Legitimação não era segurança, mas relações públicas. Alimentados pela raiva de que repórteres com sede em Gaza estivessem "manchando o nome de Israel aos olhos do mundo", membros da unidade estavam ansiosos por encontrar um jornalista que pudessem vincular ao Hamas e atacar, segundo uma fonte.
A fonte descreveu um padrão recorrente no trabalho da unidade: sempre que as críticas a Israel se intensificavam na mídia sobre uma questão específica, a Célula de Legitimação era ordenada a buscar informações que pudessem ser desclassificadas e usadas publicamente para combater a narrativa.
"Se a mídia mundial relata que Israel está matando jornalistas inocentes, há um esforço imediato para encontrar um jornalista que possa não ser tão inocente, como se isso de alguma forma tornasse aceitável matar os outros 20", disse a fonte de inteligência.
“A equipe coletava regularmente informações que pudessem ser usadas para hasbara (propaganda) — por exemplo, um esconderijo de armas do Hamas encontrado em uma escola — qualquer coisa que reforçasse a legitimidade internacional de Israel para continuar lutando”, explicou outra fonte. “A ideia era permitir que o exército operasse sem pressão, para que países como os Estados Unidos não parassem de fornecer armas”.
A unidade também buscou evidências ligando a polícia de Gaza ao ataque de 7 de outubro, a fim de justificar sua perseguição e o desmantelamento da força de segurança civil do Hamas, de acordo com uma fonte familiarizada com o trabalho da Célula de Legitimação.
Duas fontes de inteligência relataram que, em pelo menos um caso desde o início da guerra, a Célula de Legitimação distorceu informações de inteligência de tal forma que permitiu que um jornalista fosse falsamente retratado como membro do braço armado do Hamas. "Eles se apressaram em rotulá-lo como alvo, como terrorista, para dizer que era aceitável atacá-lo", lembrou uma fonte". Disseram: 'De dia ele é jornalista, à noite é comandante de pelotão'. Todos estavam entusiasmados. Mas houve uma série de erros e atalhos. No fim, perceberam que ele realmente era jornalista", continuou a fonte, e o jornalista não foi atacado.
Um padrão semelhante de manipulação é evidente nas informações apresentadas sobre Al-Sharif. De acordo com documentos divulgados pelos militares, que não foram verificados de forma independente, ele foi recrutado pelo Hamas em 2013 e permaneceu ativo até ser ferido em 2017, o que significa que, mesmo que os documentos fossem precisos, ele não desempenhou nenhum papel na guerra atual.
O mesmo se aplica ao jornalista Ismail Al-Ghoul, morto em um ataque aéreo israelense em julho de 2024, junto com seu cinegrafista, na Cidade de Gaza. Um mês depois, os militares alegaram que ele era "membro da ala militar e terrorista de Nukhba", citando um documento de 2021 supostamente recuperado de um "computador do Hamas". No entanto, esse documento afirmava que ele havia recebido sua patente militar em 2007, quando tinha apenas 10 anos, sete anos antes de ser supostamente recrutado pelo Hamas.
Uma das primeiras iniciativas de destaque da Célula de Legitimação ocorreu em 17-10-2023, após a explosão mortal no Hospital Al-Ahli, na Cidade de Gaza. Enquanto a mídia internacional, citando o Ministério da Saúde de Gaza, noticiava que um ataque israelense havia matado 500 palestinos, as autoridades israelenses alegaram que a explosão foi causada por um foguete da Jihad Islâmica que falhou no disparo e que o número de mortos foi muito menor.
Uma investigação da agência investigativa britânica Forensic Architecture concluiu que, embora a causa exata da explosão permaneça obscura, é provável que tenha sido um míssil interceptador israelense — não um foguete da Jihad Islâmica — que atingiu o hospital.
No dia seguinte à explosão, o exército divulgou uma gravação que a Célula de Legitimação havia localizado em interceptações de inteligência, apresentada como uma ligação telefônica entre dois agentes do Hamas, atribuindo o incidente a uma falha da Jihad Islâmica. Muitos veículos de comunicação internacionais posteriormente consideraram a alegação crível, incluindo alguns que conduziram suas próprias investigações, e a divulgação representou um golpe significativo na credibilidade do Ministério da Saúde de Gaza, o que o exército israelense considerou uma vitória para a célula.
Um ativista palestino de direitos humanos disse à +972 e ao Local Call em dezembro de 2023 que ficou chocado ao ouvir sua própria voz na gravação, que, segundo ele, era apenas uma conversa inocente com outro amigo palestino. Ele insistiu que nunca havia sido membro do Hamas.
Uma fonte que trabalhou com a Célula de Legitimidade disse que publicar material confidencial, como um telefonema, era altamente controverso. "Não está no DNA da Unidade 8200 expor nossas capacidades para algo tão vago quanto a opinião pública", explicou.
Mesmo assim, todas as três fontes de inteligência afirmaram que os militares tratavam a mídia como uma extensão do campo de batalha, permitindo-lhes desclassificar informações sensíveis para divulgação pública. Até mesmo pessoal de inteligência fora da Célula de Legitimidade foi solicitado a sinalizar qualquer material que pudesse ajudar Israel na guerra de informação. "Havia uma frase: 'Isso é bom para a legitimidade'", lembrou uma fonte. "O objetivo era simplesmente encontrar o máximo de material possível que servisse aos esforços de hasbara".
*Após a publicação deste artigo, fontes oficiais de segurança confirmaram à +972 e ao Local Call que, nos últimos dois anos, diversas equipes investigativas foram formadas dentro da inteligência militar israelense para expor as mentiras do Hamas. Afirmaram que o objetivo era desacreditar jornalistas que supostamente estavam reportando a guerra na televisão de forma confiável e precisa, mas que, segundo eles, pertenciam ao Hamas. Segundo as fontes, essas equipes investigativas não estão envolvidas na seleção de alvos individuais a serem atacados.
Em 10 de agosto, o exército israelense matou seis jornalistas em um ataque que admitiu abertamente ter como alvo o repórter da Al Jazeera, Anas Al-Sharif. No fim de julho, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) alertou que temia pela vida de Al-Sharif, afirmando que ele era "alvo de uma campanha de difamação do exército israelense, que ele acredita ser um prelúdio para seu assassinato".
Depois que Al-Sharif postou um vídeo viral em 20 de julho, no qual ele aparecia chorando enquanto cobria a crise alimentar em Gaza, o porta-voz em árabe do exército israelense, Avichay Adraee, divulgou três vídeos separados atacando-o, acusando-o de "propaganda" e de participar da "campanha falsa de fome do Hamas".
Al-Sharif identificou uma ligação entre a guerra midiática de Israel e sua guerra militar. "A campanha de Adraee não é apenas uma ameaça midiática ou destruição de imagem; é uma ameaça real", disse ele ao CPJ. Ele foi morto apenas 20 dias depois, e os militares apresentaram o que alegaram ser informações desclassificadas sobre sua filiação ao Hamas para justificar o ataque.
Em outubro de 2024, os militares já haviam alegado que seis jornalistas da Al Jazeera, incluindo Al-Sharif, eram agentes militares, acusação que ele negou veementemente. Ele se tornou o segundo da lista a ser alvo, depois do repórter Hossam Shabat. Desde a acusação de outubro, seu paradeiro é bem conhecido, levando muitos observadores a questionar se o assassinato de Al-Sharif, que regularmente fazia reportagens da Cidade de Gaza, fazia parte do plano israelense de impor um bloqueio de notícias antes dos preparativos militares para capturar a cidade.
Em resposta a perguntas da revista +972 sobre o assassinato de Al-Sharif, um porta-voz do exército israelense reiterou que "o exército israelense teve como alvo um terrorista do Hamas que operava sob o disfarce de jornalista da Al Jazeera no norte da Faixa de Gaza" e declarou que o exército "não fere intencionalmente indivíduos não envolvidos, particularmente jornalistas, de acordo com o direito internacional".
Antes do ataque, o porta-voz acrescentou: "foram tomadas medidas para reduzir o potencial de danos civis, incluindo o uso de armas de precisão, observações aéreas e inteligência adicional".
Com apenas 28 anos, Al-Sharif tornou-se um dos jornalistas mais reconhecidos de Gaza. Ele é um dos 186 repórteres e profissionais de mídia mortos na Faixa de Gaza desde 7 de outubro, segundo o CPJ, o período mais letal para jornalistas desde que o grupo começou a coletar dados em 1992. Outras organizações estimam o número de mortos em 270.
“Se estas palavras chegarem até você, saiba que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz”, escreveu Al-Sharif em sua mensagem final, publicada postumamente em suas redes sociais. “Eu experimentei a dor em todos os seus detalhes, experimentei o sofrimento e a perda muitas vezes, mas nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorções ou falsificações”.