21 Julho 2025
Projeto que fragiliza licenciamento ambiental, aprovado pelos deputados esta semana, facilita exploração de petróleo na costa do Amapá; 19 blocos foram concedidos a empresas dos EUA e da China, o que contradiz discurso do governo de ‘soberania nacional’.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicado por InfoAmazônia, 19-07-2025.
O Projeto de Lei (PL) 2159/2021 que fragiliza as regras do licenciamento ambiental, aprovado na madrugada desta quinta-feira (17) pela Câmara dos Deputados, abre caminho para acelerar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. As áreas que podem ser beneficiadas com as novas normas, caso o projeto seja sancionado, foram concedidas para as petroleiras estadunidenses ExxonMobil e Chevron, que arremataram 19 blocos, na costa do Amapá e do Pará, em parcerias com Petrobras e a estatal chinesa CNPC. O leilão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) ocorreu em 17 de junho, há apenas um mês da aprovação do PL.
Caso seja sancionado, o projeto de lei permitirá que essas áreas sejam enquadradas na chamada Licença Ambiental Especial (LAE), modalidade criada para empreendimentos classificados como de “interesse estratégico nacional”, a serem definidos por um grupo ligado ao governo. A medida estabelece um prazo máximo de 12 meses para concessão da licença e autorizações com validade de até dez anos – um cenário mais permissivo do que o enfrentado atualmente pela Petrobras, que já teve três pedidos negados pelo Ibama para perfuração no bloco 59, nesta mesma região.
A proposta da licença especial foi incluída por emenda do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), um dos principais articuladores da ofensiva política pela abertura da costa amazônica à indústria do petróleo.
A participação das empresas estrangeiras nos blocos de petróleo, ainda que haja participação da Petrobras como operadora em cinco áreas, expõe contradições no discurso do governo. Segundo especialistas, o resultado do leilão, além de confirmar o interesse estrangeiro em uma das regiões mais sensíveis do litoral brasileiro, derruba o discurso de “soberania energética” e “desenvolvimento regional” para defender a exploração de petróleo na Amazônia. A área é considerada de alta sensibilidade socioambiental e de difícil recuperação em casos de vazamento de óleo, segundo alertas de pareceres técnicos do próprio Ibama. O órgão que dá a palavra final sobre o licenciamento ambiental negou autorização para a Petrobras perfurar na região, destacando a ausência de dados confiáveis sobre correntes marinhas e impactos cumulativos na biodiversidade.
“O discurso da segurança energética e do desenvolvimento econômico não se sustenta com essa realidade [participação de empresas estrangeiras]. O que é distribuído pelas concessões em impostos não paga transição alguma, e o petróleo, caso venha ser encontrado, também não será do Brasil, mas das empresas que exploram”, afirma Juliano Bueno, do Instituto Internacional Arayara, organização que atua pelo uso racional e sustentável dos recursos naturais.
O engenheiro ambiental lembra o caso de Macaé (Rio de Janeiro), cidade brasileira que mais recebeu royalties do pré-sal. “Boa parte da sua população continua empobrecida: 15% não têm saneamento básico e existem problemas graves na educação e na saúde. O dinheiro do petróleo não foi convertido em benefício para a população”, lamenta. A Araya ingressou com cinco ações judiciais para barrar o leilão, buscando a exclusão de áreas com riscos socioambientais, como as da bacia da Foz do Amazonas – os processos ainda não foram julgados.
Para Luiz Afonso Rosário, um dos coordenadores da ONG 350.org, organização internacional que atua pelo fim do uso de combustíveis fósseis, o leilão revela uma contradição insustentável entre o discurso internacional do Brasil, sobre preservação do meio ambiente e transição energética, e sua prática interna. “Uma coisa é o discurso, outra é a prática. O que o governo brasileiro tem dito sobre a exploração de petróleo na Foz do Amazonas não se confirma em seus atos. A exploração nessa região vai aumentar as emissões de gases do efeito estufa e os riscos ambientais”, afirma.
Associar a exploração de petróleo à transição energética é um erro estratégico grave, segundo Rosário: “Quando o governo diz que vai explorar petróleo para promover a transição energética, a contradição fica ainda maior. As petroleiras usam esse discurso para justificar mais extração e excluem projetos sustentáveis inclusivos. Aqueles que mais serão impactados são justamente os que não têm voz”.
O presidente Lula (PT) tem defendido a exploração de petróleo na costa amazônica afirmando que o Ibama “precisa autorizar” perfurações na região. Entre os motivos, o presidente destaca que o país precisa do dinheiro do petróleo para fazer a transição energética.
Recentemente, mesmo contra os pareceres técnicos, a Petrobras conseguiu avançar junto ao Ibama para realizar simulações no processo de licenciamento do bloco 59, na costa do Amapá. A sonda destinada para a exploração do primeiro de uma série de poços em águas profundas foi enviada para a região, onde fará simulações de desastres.
Em abril deste ano, o especial Até a Última Gota, da InfoAmazonia, revelou como a insistência da Petrobras, com apoio do governo, é estratégica para atender interesses de outras petroleiras na região, que nunca conseguiram avançar nos trâmites de licenciamento ambiental. Interlocutores do setor confirmam que nenhuma empresa conseguiria pressionar tanto pelo licenciamento de um bloco como a estatal – justamente por estar ligada ao governo.
Organizações ambientais consideram o leilão na Foz do Amazonas particularmente grave pela ausência de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) – estudo que, segundo especialistas, deveria ser obrigatório antes da oferta de blocos em regiões sensíveis. “Nenhuma comunidade costeira ou indígena foi consultada. Essas pessoas vivem da pesca tradicional, e sua atividade será diretamente impactada pela instalação de plataformas. Estamos falando de uma região onde o mar avança quilômetros pelos rios e mangues na maré cheia. Um vazamento comprometeria toda essa biodiversidade e meios de vida”, alerta Rosário, da 350.org.
Apesar das críticas, a ANP defendeu o modelo adotado. A agência defende que o processo passou por ajustes para excluir áreas consideradas mais sensíveis e que houve critérios adicionais para proteger terras indígenas, quilombolas e zonas de preservação.
Dos 19 blocos arrematados, 10 ficaram com a ExxonMobil em parceria com a Petrobras, e 9 com a Chevron, com participação minoritária da estatal chinesa CNPC.
Juliano Bueno, do Instituto Arayara, ressalta que os contratos ainda não foram assinados e que ações judiciais continuam em curso. “Considero que tivemos uma meia vitória, já que 80% dos blocos ofertados não foram arrematados. Os blocos vendidos estão em áreas com alto risco judicial, e os contratos ainda podem ser contestados”, afirma. A assinatura dos contratos está prevista para 28 de novembro.
No entanto, caso os contratos sejam firmados e o PL do Licenciamento seja sancionado pelo presidente Lula, os blocos poderão seguir um processo de licenciamento mais flexível do que aquele enfrentado pela Petrobras no bloco FZA-M-59 – onde o Ibama negou a licença ambiental, citando ausência de dados técnicos e risco elevado à biodiversidade. Os blocos arrematados na Foz do Amazonas estão próximos à região do Grande Sistema de Recifes da Amazônia, um ecossistema raro e pouco estudado que se estende por aproximadamente 9.500 km² entre a costa do Amapá e o Maranhão. Caso autorizada, a extração de combustível fóssil em alto mar acontecerá a menos de 40 quilômetros da barreira de corais, considerada de alta sensibilidade ambiental, segundo cientistas.
Desde a década de 1970, empresas como Shell, BP, Total e ExxonMobil vêm tentando fincar presença na região da Foz do Amazonas, considerada a nova fronteira petrolífera do país. A exploração há mais de 50 anos, no entanto, enfrentou entraves técnicos, ambientais e políticos. Só agora, após a Petrobras assumir blocos abandonados por essas petroleiras, as tentativas de exploração nessa área voltam a ganhar força com apoio do governo.
A ExxonMobil tem sido uma das persistentes. A empresa chegou a atuar na região amazônica ainda nos anos 1970, durante o regime militar, sob o guarda-chuva dos chamados “contratos de risco”, que permitiam a atuação de estrangeiras sem garantia de retorno financeiro. Embora tenha abandonado a região nas décadas seguintes, a Exxon nunca escondeu seu interesse na costa amazônica.
O avanço da ExxonMobil na Foz do Amazonas pode repetir um modelo de exploração já consolidado pela petroleira na Guiana, onde a estadunidense explora águas profundas desde 2015. No país vizinho, a petroleira realizou mais de 200 perfurações e anunciou mais de 30 descobertas, totalizando 11 bilhões de barris de petróleo.
“A Exxon está em busca de novos domínios no sul global, já que o Oriente Médio se tornou arriscado. O controle das áreas na Foz pode representar, no médio prazo, um domínio geopolítico sobre toda a região amazônica”, afirma Juliano Bueno, da Arayara.
A empresa tornou-se símbolo da nova dependência econômica da Guiana, que vive uma explosão de crescimento sem que a população experimente os prometidos benefícios sociais. Com contratos desfavoráveis, denúncias de violações ambientais, flaring (queima de gás excedente) irregular e ausência de garantias para desastres, a atuação da Exxon vem consolidando o país sulamericano como mais novo “petroestado”, altamente vulnerável aos interesses estrangeiros.
Ambientalistas alertam que a presença da Exxon na Foz do Amazonas pode representar a repetição dos mesmos riscos enfrentados pela Guiana, onde comunidades pesqueiras relatam queda drástica na oferta de peixes, e indígenas denunciam a ausência de diálogo e consultas sobre os projetos.