"A indústria de combustíveis fósseis tem um lobby: os trabalhadores que morrem no sol, não". Entrevista com Friederike Otto

Mulheres trabalhando em uma plantação de arroz em Madagascar | (Foto: Marcel Crozet/OIT)

21 Julho 2025

A climatologista alemã e cofundadora da World Weather Attribution (WWA) está lançando um novo livro que foca naqueles que sofrem, morrem ou se perdem devido à emergência climática; vítimas, em sua maioria, ainda invisíveis para o mundo.

A entrevista é de Ariadna Martínez, publicada por El Salto, 21-07-2025.

"Quando as temperaturas subirem acima de 1,5°C, muitas das pessoas que lerem este livro só perceberão pelos noticiários. Outras nem perceberão, tendo perdido tudo em uma enchente repentina quando o mundo atingiu 1,3°C ou tendo morrido em uma onda de calor quando ela atingiu 1,4°C. Se considerarmos 1,5°C como um mero limite físico, essas mortes e danos serão completamente invisíveis, assim como a necessidade de investir em adaptação. [...] Cada décimo de grau de aquecimento global traz perdas e danos cada vez maiores, mas quem e como sentem esses efeitos tem muito pouco a ver com o clima".

É um dos fragmentos mais devastadores do novo livro de Friederike Otto, climatologista cofundadora da World Weather Attribution (WWA), no Centre for Environmental Policy, da Imperial College London, iniciativa científica internacional responsável por analisar se as mudanças climáticas estão influenciando os diferentes fenômenos meteorológicos extremos que estão ocorrendo e em que medida.

"Injustiça Climática: por que precisamos combater a desigualdade global para combater as mudanças climáticas" [em tradução livre] (Greystone Books, 2025) é um livro em que a especialista investiga por que a crise climática é, além de um limite físico, uma crise social. Nele, a autora explora a questão "como o clima se torna um desastre?", levando o leitor a diferentes cenários: Gâmbia, Alemanha, Madagascar, Paquistão, Brasil, África do Sul e Canadá.

“A mudança climática assume o papel tradicionalmente desempenhado por Zeus, Thanos e outras entidades cósmicas, mas a vulnerabilidade humana é causada por ações humanas”, conclui, ao mesmo tempo que nos insta a quebrar o encanto da narrativa “fóssil-colonial”.

Eis a entrevista.

Seu trabalho como cientista se preocupa em determinar até que ponto as mudanças climáticas contribuíram para a magnitude de vários eventos climáticos extremos. No entanto, ao mesmo tempo, você pede o fim da culpabilização do clima como causa de grandes desastres.

Sim. As mudanças climáticas são um fator muito importante porque, por exemplo, as ondas de calor que estamos vivenciando na Europa são muito mais intensas do que teriam sido sem elas. Mas, é claro, se um evento extremo se torna um desastre depende crucialmente de quem e o que está em risco: o que normalmente chamamos de "vulnerabilidade" e "exposição". Por exemplo, em 2023, houve uma tempestade no Mediterrâneo chamada Daniel. Foi uma tempestade muito forte que matou 17 pessoas na Grécia e mais de 4 mil na Líbia, um país devastado pela guerra.

O clima era o mesmo e, embora seja trágico perder 17 vidas na Grécia, a situação era muito diferente das mais de 4 mil perdidas na Líbia. Na Grécia, houve alertas antecipados, então as pessoas sabiam que a tempestade estava chegando. Lá, também, a infraestrutura estava em boas condições porque havia sido mantida. Na Líbia, muitas das mortes foram causadas por uma barragem que não recebia manutenção há 20 anos, que simplesmente não conseguiu lidar com a água e se rompeu, pegando as pessoas de surpresa à noite. Esses fatores subjacentes não têm nada a ver com o clima, mas com a preparação de nossas sociedades para eventos climáticos extremos, e são absolutamente cruciais.

No livro, você fala de como a narrativa "fóssil-colonial" prevalece e impacta este mundo. Qual o papel dessa narrativa?

Acredito que há uma narrativa que, embora muitas vezes não seja explicitamente nomeada, continua sendo a base de todas as nossas discussões. Essa narrativa, que chamo de "fóssil-colonial", basicamente pressupõe que o mundo em que vivemos é sustentado pela queima de combustíveis fósseis e, portanto, constrói ideias como a de que todos deveríamos ter nossos próprios carros.

Por outro lado, também pressupõe que o mundo é sustentado pela discrepância entre o Norte Global e o Sul Global em termos de renda e do tipo de trabalho que as pessoas realizam nessas duas partes do planeta. Em outras palavras, o Sul Global fornece os ingredientes para o consumo do Norte Global. Além disso, nos faz acreditar que o status quo no Norte Global é, de alguma forma, o único tipo de mundo em que poderíamos viver para alcançar um alto padrão de vida. E acho que precisamos desafiar essa narrativa subjacente, ou então as coisas não mudarão.

A crise climática é vivenciada de forma diferente dependendo de onde nascemos. Você explora isso em profundidade no livro e fornece exemplos específicos. Como é, por exemplo, vivenciar uma onda de calor sendo uma mulher grávida em um país como Gâmbia?

Mulheres grávidas que vivem em áreas rurais de países como Gâmbia se veem praticamente sem opções. Lá, há uma divisão social muito rígida entre o que os homens fazem e o que as mulheres fazem. As mulheres são responsáveis por prover alimentos para a família, enquanto os homens trabalham, por exemplo, em plantações comerciais, portanto, têm direitos trabalhistas, como não trabalhar durante as horas mais quentes do dia.

No entanto, as mulheres precisam trabalhar ao ar livre, no campo, independentemente do calor. O calor extremo já é perigoso, mas é ainda mais durante a gravidez, pois a temperatura corporal já está mais alta. Portanto, resfriar o corpo é mais difícil, e os efeitos do calor afetam não apenas a gestante, mas também o feto. Mas elas ficam presas nessa estrutura social, sem opção de descanso.

E quanto à seca em Madagascar?

Em Madagascar, a situação é relativamente semelhante. A seca no sul do país, por exemplo, ocorreu paralelamente à era da COVID-19. A seca praticamente destruiu a agricultura naquela área, mas as pessoas não podiam sair, não podiam ir para o norte em busca de opções por causa das restrições. No sul, não havia mais oportunidades de emprego, não havia indústria. E as poucas oportunidades de emprego que existiam só eram acessíveis se você tivesse treinamento. Mas as pessoas lá, especialmente as mulheres, carecem disso.

A situação tornou essas pessoas 100% dependentes de ajuda externa para alimentação, o que também foi difícil devido às restrições de viagem. Tudo terminou com pessoas morrendo de fome.

Você ressalta que, além disso, a maior parte da África carece de bancos de dados próprios sobre eventos climáticos extremos ou de modelos climáticos próprios. Isso é extremamente alarmante, considerando o grau de vulnerabilidade deste continente, certo?

Sim, mas não é como se não houvesse pesquisa lá. Há pesquisadores africanos fantásticos na Universidade da Cidade do Cabo e em outras universidades sul-africanas. No entanto, nenhum modelo climático foi desenvolvido na África e para a África, o que é um grande problema. Os modelos climáticos são representações imperfeitas do sistema climático, portanto, todos têm pontos fortes e fracos. É por isso que eles são sempre projetados para funcionar melhor no país onde foram criados. O modelo do Reino Unido é muito bom em representar o clima britânico, mas não foi projetado para funcionar bem na Gâmbia.

Além disso, embora existam estações meteorológicas, em muitos casos não há pessoal remunerado no escritório para operá-las, o que resulta em muitas lacunas nos registros, que muitas vezes não são mantidos por anos, o que significa que nem sabemos como estará o tempo hoje. E se não sabemos como estará o tempo hoje, não podemos desenvolver sistemas eficazes de alerta precoce, e vemos repetidamente que o alerta precoce é realmente o que faz a grande diferença entre eventos extremos com alto número de mortes e eventos extremos com baixo número de mortes.

Na Espanha, a enchente em Valência ceifou 200 vidas. Quando o sistema de alerta foi ativado, muitas pessoas já estavam submersas. O político envolvido [Carlos Mazón] não só se recusa a renunciar após oito protestos contra ele, como também, há poucas semanas, deu sinal verde para novas construções em áreas de inundação. Será este um exemplo claro de como a crise climática é frequentemente mais uma injustiça do que um "desastre natural"?

Acho que é um exemplo claro e bastante assustador de como a crise climática é ignorada e como isso leva a uma grande injustiça, porque as casas que serão construídas nesta área de inundação não serão habitadas por ele ou seus assessores, mas provavelmente por pessoas que não têm dinheiro suficiente para morar em outro lugar, em algum lugar mais seguro.

Assim, quando outro evento como o do ano passado ocorrer, suas casas estarão submersas e danificadas ou destruídas. Se não tiverem seguro, ficarão sobrecarregados com dívidas enormes, a desigualdade na região aumentará e aqueles que realmente menos merecem pagarão pelo impacto das mudanças climáticas. E tudo isso em benefício de um número muito pequeno de pessoas que já têm dinheiro suficiente.

No nosso país, também houve 458 mortes relacionadas ao calor em junho, somente em Barcelona e Madri. Muitas pessoas estão perdendo suas vidas todos os dias ao redor do mundo devido à inação diante da crise climática, mas isso não é suficiente para mudar as coisas. Por quê? O que está faltando?

Acho que essa parte que falta nos traz de volta ao início desta conversa, quando falamos sobre por que a narrativa é tão importante. Há um lobby global extremamente poderoso associado à indústria de combustíveis fósseis que tem tido enorme sucesso em enganar a opinião pública sobre as mudanças climáticas. E embora agora haja muito apoio global para o combate às mudanças climáticas, aqueles que estão no poder são particularmente influenciados pela indústria de combustíveis fósseis porque é onde muito dinheiro ainda é investido. Agricultores, faxineiros e aqueles que trabalham no setor de serviços sob o sol, no entanto, não têm um lobby. E são suas vidas que estão sendo perdidas.

Enquanto acreditarmos na mentira de que fazer algo sobre as mudanças climáticas é caro, nada mudará. Em todas as campanhas eleitorais, as pessoas dizem: "Não podemos combater as mudanças climáticas porque será caro", mas ninguém fala sobre as vidas que já foram perdidas, porque essas não são as vidas dos ricos nas salas de reuniões. Existem sindicatos e partidos políticos que foram fundados para apoiar os pobres e os trabalhadores que continuam a apoiar indústrias como a automotiva, e apenas aqueles que trabalham nela, mas a grande maioria dos trabalhadores não trabalha na indústria automotiva. Enquanto isso continuar, será realmente difícil. Será difícil até encontrarmos uma maneira de dar mais voz a pessoas reais e não apenas a lobistas.

A Cidade do Cabo é um bom exemplo que resume essa enorme lacuna, certo?

Sim. Nos bairros pobres da Cidade do Cabo, a maioria dos cidadãos trabalha na indústria agrícola. Essa indústria parou em 2018 devido à ameaça do Dia Zero [a data prevista em que as torneiras da cidade supostamente parariam de fornecer água devido a uma seca severa. Isso forçaria os cidadãos a começarem a se deslocar até os pontos de coleta de água].

Devido à paralisação da indústria agrícola, essas pessoas perderam seus empregos. Os afetados também vivem em bairros onde dependem do abastecimento público de água. O racionamento era tão grande que eles não conseguiam regar seus jardins, que muitas vezes são usados para cultivar alimentos para consumo próprio.

Nessas áreas, a água foi racionada muito antes do que nas casas dos ricos. Os mais pobres nem sequer tinham água para se lavar, enquanto em muitas das áreas ricas da cidade o racionamento era muito menos severo, e muitas casas tinham até poços próprios nos jardins, o que as tornava independentes do abastecimento público de água. Embora o Dia Zero não tenha ocorrido, sua ameaça destruiu os meios de subsistência de grande parte da população pobre.

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