08 Julho 2025
Figuras como o relator da ONU nos lembram que se a lei não é para todos, ela não é um direito, mas uma arma.
A reportagem é Diego García-Sayan, publicado por El País, 05-07-2025.
Há momentos na história em que uma única voz, pelo peso de sua coerência, pode questionar toda a arquitetura da impunidade. Francesca Albanese é uma dessas vozes.
Em um sistema internacional saturado de silêncios convenientes e diplomacia calculada, a figura desta jurista italiana emerge como uma anomalia moral. Como Relatora Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, seu trabalho tem sido tão preciso quanto desconfortável.
Desconfortável para governos que preferem ignorar o assunto. Desconfortável para aqueles que construíram suas políticas externas com base na negligência institucional com o povo palestino.
Seu relatório mais recente, "Anatomia de um Genocídio", apresentado em março de 2024 ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, é uma poderosa dissecação jurídica. Albanese argumenta, com base na Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, que há motivos razoáveis para alegar que o governo de Netanyahu está cometendo "atos de genocídio" em Gaza. Ele não afirma isso apenas como um "estatuto"; ele argumenta com base em evidências, no peso do testemunho e em uma leitura rigorosa do direito internacional.
Reações cúmplices
A reação foi imediata. Governos que se dizem "defensores" da ordem baseada em regras apressaram-se a rejeitar suas conclusões — ou a questionar sua abordagem por não enfatizar o "direito à legítima defesa". Outros se refugiaram no silêncio, como se a neutralidade diante do horror fosse uma posição ética. Mas entre acadêmicos, advogados, ativistas e cidadãos, sua voz encontrou eco. Há momentos em que descrever o horror não é coragem, é urgência.
Albanese foi acusada de parcialidade, antissemitismo e excesso de autoridade. Este é o preço pago por aqueles que dizem o que os poderosos não querem ouvir. Mas ela responde com compostura jurídica: seu trabalho não é agradar aos poderosos, mas proteger as vítimas. E as vítimas, neste caso, têm nomes, idades e corpos sob os escombros.
O maior ato "subversivo" de Francesca Albanese é sua coerência. Ela não se contenta com as palavras vazias da diplomacia; ela exige que o direito internacional seja aplicado sem exceções, sem dois pesos e duas medidas, sem geopolítica. É por isso que ela está sendo atacada. Não por seus erros, mas por sua precisão.
Numa época em que a impunidade se disfarça de realismo e a diplomacia se submete à chantagem geoestratégica, figuras como Albanese nos lembram que, se a lei não é para todos, não é lei. É uma arma.
E ela se recusa a usá-lo da maneira errada.
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