02 Julho 2025
"Não seria o momento de a Igreja, fiel ao ensinamento do papa sobre a superioridade da realidade sobre a ideia, reconsiderar suas posições, não para abandonar valores essenciais, mas para discernir como o Evangelho pode iluminar e acolher as diversas expressões do amor familiar que, a despeito de qualquer definição, já existem entre nós?", escreve João Melo e Silva Junior, licenciado em Filosofia e Matemática, bacharel em Teologia e mestrando em Educação na UERJ.
O artigo foi publicado no Blog Ignatiana, em 30-06-25.
"Todo aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mt 12, 50)
Com frequência, se ouve no discurso de autoridades religiosas que a família é formada apenas por um homem e uma mulher. Ficam assim, excluídas da concepção eclesial todas as outras famílias que existem.
A repetição dessa afirmação vem causando diversos impactos negativos, seja porque reforça estruturas preconceituosas da sociedade que excluem outros tipos de famílias, como famílias monoparentais e de pessoas LGBTs, seja por encorajar e justificar o desassistir de direitos humanos fundamentais a estas famílias, que, a despeito dessa afirmação, existem.
Em muitos lugares, ainda hoje, há famílias de pessoas LGBTs que não são reconhecidas pelo Estado. Isso segue colocando a vida e os direitos humanos dessas pessoas em uma situação de vulnerabilidade.
Entretanto, curiosamente, a repetição dessa inverdade também traz consequências para a própria estrutura eclesial, especialmente para a parcela do povo de Deus que são as novas gerações:
1 Êxodo: Muitas vezes, jovens, moças e rapazes católicos que aprendem que só existe um tipo de família possível e percebem que esse único modo não traduz a atração sexual e/ou identidade de gênero que possuem, eles irão para longe da Igreja, que então deixa de ser mãe acolhedora e espaço de medição para o encontro com Deus que é amor.
2 Busca pela “cura gay”: Outros jovens, ao contrário, tentarão mudar suas sexualidades ou identidades de gênero, que eles, iludidos, podem considerar transitórias. Esse tipo de opção é dolorosa e quase sempre traz consequências que põem em sério risco a vida desses jovens devido ao tamanho do sofrimento psíquico e repressão a que se submetem. Essa prática, inclusive, é proibida pela Conselho Federal de Psicologia e pela ONU.
3 Celibato: Outros jovens tentarão viver o celibato compulsório, isto é, sem relações sexuais para sempre, como orienta a doutrina atual da Igreja. Essa opção também causa, constantemente, muito sofrimento psicológico aos jovens devido à frustração afetiva e ao tempo e energia gastos na repressão dos desejos sexuais. Essa opção pode ser vivida como verdadeira mutilação afetiva, com consequências graves para a saúde mental da pessoa LGBT.
4 Vida consagrada e clerical: Alguns desses jovens, inclusive, buscarão na vida religiosa consagrada e no presbiterado um modo de vida que se adeque com o celibato que abraçaram por serem LGBTs. No fim das contas, toda vez que uma autoridade da Igreja afirma que família é formada somente por um homem e uma mulher, ela ajuda a engrossar a fila de vocações religiosas e clericais de pessoas LGBTs enrustidas.
5 Vida dupla: Outros jovens, ainda, abraçarão um estilo de vida dupla, isto é, viverão em suas comunidades eclesiais como pessoas não LGBTs, mas, no sigilo, buscarão viver seus afetos e identidades.
6 Católicos LGBTs: Há, também, um grupo de jovens LGBTs bem minoritário, mas que tem crescido nos últimos anos, que permanecerá na Igreja, vivendo seus afetos, tendo suas famílias e identidades dissidentes e que, mesmo em meio ao preconceito institucional, continuarão, naquilo que for possível, a participar da vida e missão da Igreja.
Para cada pessoa LGBT, o nível de liberdade interior e de integração à comunidade eclesial dependerá de uma série de fatores internos (culpa, medo, vergonha, liberdade, autoaceitação, etc.) e externos (acolhida, pertencimento, inclusão etc.).
“A realidade é superior à ideia” (Papa Francisco, Laudato Si', n. 110 e 201)
Seja como for, isto é, independentemente da frequência das afirmações sobre o que é e como é formada uma família que as autoridades da Igreja possam vir a repetir, sempre haverá famílias de todos os tipos, pois a realidade é superior à ideia de família que a Igreja possui.
Na exortação Evangelii Gaudium, o Papa Francisco afirmou que a realidade é mais importante do que a ideia (n. 231-233):
"[231] Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
[232] A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.
[233] A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus» (1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu dinamismo”.
Diante disso, cabe questionar: terão as autoridades eclesiásticas consciência das consequências reais que suas afirmações incoerentes sobre família provocam na vida dos jovens católicos? Será que aqueles que proclamam uma definição exclusiva de família refletem sobre o êxodo de fiéis, sobre o sofrimento psíquico e espiritual de jovens que buscam “cura” para algo que não é doença, sobre a mutilação afetiva de tantos que abraçam o celibato por coerção e não por vocação, sobre vocações religiosas nascidas não do chamado autêntico, mas da impossibilidade de viver sua identidade? Têm eles consciência de que, ao fecharem os olhos para a realidade das famílias diversas já existentes dentro e fora da Igreja, fomentam não apenas o sofrimento, mas também a hipocrisia e o distanciamento de tantos que poderiam encontrar em Cristo e na comunidade eclesial um porto seguro para sua fé? Não seria o momento de a Igreja, fiel ao ensinamento do papa sobre a superioridade da realidade sobre a ideia, reconsiderar suas posições, não para abandonar valores essenciais, mas para discernir como o Evangelho pode iluminar e acolher as diversas expressões do amor familiar que, a despeito de qualquer definição, já existem entre nós?
Jesus, ao ser informado de que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora esperando por ele, rompe radicalmente com as estreitas concepções de família de seu tempo: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”, pergunta, estendendo a mão para seus discípulos e afirmando: “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 50). Neste gesto profético, Jesus não apenas relativiza os laços de sangue, mas amplia incomensuravelmente o conceito de família para incluir todos aqueles que vivem no amor e na prática da vontade de Deus. É precisamente este exemplo cristológico de ruptura com as definições limitantes de seu tempo que convida a Igreja a olhar para a realidade das diversas famílias de hoje não com os olhos estreitos da tradição farisaica, mas com o olhar expansivo de Jesus que vê família onde há amor, fidelidade e compromisso com a vontade divina, independentemente de sua configuração.