24 Março 2025
Vitória, de Andrucha Waddington, traz Fernanda Montenegro em uma janela indiscreta carioca. Protagonista se encontra em posição análoga à do espectador: entre a emoção, a impotência e o desejo de agir, perante a violência cotidiana.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema, publicado por Blog do IMS e reproduzido por Outras Palavras, 20-03-2025.
Eis o comentário.
Vitória, de Andrucha Waddington, o novo sucesso de público do cinema brasileiro depois de Ainda estou aqui, tem duas virtudes em comum com o filme de Walter Salles: narra com eficiência uma história de grande impacto e conta no elenco com a maior atriz brasileira em atividade, a nonagenária Fernanda Montenegro.
Como se sabe, a história é inspirada no caso real da idosa de Copacabana que filmou a atividade de traficantes do morro contíguo e fez de tudo para que a polícia tomasse as devidas providências. No filme, ambientado em 2005, essa mulher valente é a ex-empregada doméstica e hoje massoterapeuta Nina (Fernanda Montenegro), que só consegue fazer a polícia e a justiça se mexerem com a ajuda de um repórter investigativo, Flavio Godoy (Alan Rocha).
Não cabe aqui entrar nos meandros do enredo, mas destacar que o primeiro acerto de Andrucha Waddington foi o de, num filme ambientado em Copacabana, recusar quase até o último minuto a tentação do cartão postal. Eu disse “quase” porque, pouco antes do final, há uma cena de pôr-do-sol na praia que fica entre o epifânico e o pictórico. De resto, o filme parece parafrasear o poema de Manuel Bandeira que diz: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?/ – O que eu vejo é o beco”.
O que Nina (rebatizada depois de Vitória por razões de segurança) vê de sua janela é o beco. Ali acontece a venda de drogas, o justiçamento de alcaguetes, os tiroteios, a corrupção de policiais, o aliciamento de crianças cada vez mais novas para o crime. Mais que uma mera trama policial, é todo um quadro social dramático que se dá a ver naquela tela retangular.
Janela para o mundo
A janela aberta para o mundo como metáfora do cinema é um mote recorrente. O paradigma supremo dessa linhagem é Janela indiscreta (1954), de Hitchcock, mas podemos citar também Dublê de corpo (1984), de Brian De Palma, Não amarás (1988), de Krzysztof Kieslowski, e até O homem que copiava (2003), de Jorge Furtado, entre muitos outros. São sempre situações em que o protagonista se vê na posição análoga à do espectador de cinema, entre a emoção, a impotência e o desejo de agir.
Assim como o fotógrafo de Janela indiscreta e sua namorada, Dona Nina/Vitória ousa sair da posição passiva para intervir na realidade. Para isso, compra uma pequena câmera de vídeo e passa a coletar provas e incitar a polícia a cumprir seu papel. Faz, literalmente, cinema, que poderíamos chamar de cinema-verdade.
Se desenvolve essa situação com bastante competência, o filme não está isento de algumas deficiências, sobretudo nas subtramas que compõem a tessitura da narrativa ao traçar a trajetória de diversos personagens secundários: a cabeleireira trans (Linn da Quebrada) vizinha de Nina, o repórter Flavio, o menino Marcinho (Tawan Lucas). O que há de mais discutível, a meu ver, é o destino de Marcinho, retratado com certo determinismo social, como se estivesse fadado ao crime desde sempre só por ter nascido negro na favela.
Há também uma sequência – a do sequestro de Nina por traficantes – encenada com uma truculência espetaculosa e inverossímil (dentro da construção realista do filme), que parece estar ali só para dar um susto no espectador, induzindo-o a uma interpretação errônea do que se passa, para depois recompensá-lo com o alívio quase cômico. Esse artifício, que parece apostar mais na manipulação do público do que no seu esclarecimento (tudo bem, Hitchcock vivia fazendo isso, mas em outro registro), não chega a derrubar a construção, mas a arranha um bocado.
Forte e vulnerável
O filme cresce quando “cola” em Nina, com a câmera muito próxima de seu corpo e de seu rosto, captando cada nuance da expressão dessa atriz extraordinária, capaz de passar da perplexidade à compaixão, da revolta ao horror com um sutil movimento dos olhos, uma mudança na inflexão da voz ou nos músculos do rosto. Acompanhando a caminhada da personagem pelas ruas movimentadas de Copacabana, sentimos toda a vulnerabilidade e toda a força daquela mulher que optou por se insurgir contra o desconcerto do mundo.
Duas informações relevantes: Vitória é dedicado a Breno Silveira, fotógrafo e cineasta que deveria dirigir o filme, mas morreu inesperada e prematuramente no primeiro dia da produção. A tarefa passou então para as mãos do amigo Andrucha Waddington, seu parceiro na produtora Conspiração. Joana Zeferino da Paz, a idosa real que inspirou a personagem Nina/Vitória, só teve sua identidade revelada depois de morrer, em 2023, aos 97 anos. Era uma mulher negra. O repórter policial que a ajudou, Fábio Gusmão, era branco. No filme isso se inverteu. Ambos aparecem na sequência dos créditos finais.
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