“Nenhum governo pode exigir moralmente que o seu povo sofra privações incompatíveis com a dignidade humana”, disse o Papa Francisco numa mensagem originalmente escrita em espanhol e dirigida aos participantes num seminário internacional sobre “Enfrentar a crise da dívida no Sul Global”, uma atividade promovida pela Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. Embora no breve texto, de pouco mais de uma página, não seja mencionado nenhum governo ou pessoa em particular, não é difícil interpretar que a afirmação de Bergoglio também surge no cruzamento de declarações do presidente argentino Javier Milei, que apenas alguns poucos dias afirmou que “se as pessoas não conseguissem sobreviver já teriam morrido” e nesta situação não é necessária a intervenção do Estado porque “de alguma forma vão decidir algo para não morrer”.
O Papa fez o seu discurso numa audiência especial concedida aos participantes do seminário, entre os quais economistas, acadêmicos, líderes políticos e sociais de todo o mundo e autoridades eclesiásticas. Entre os participantes estão o ex-ministro da Economia, Martín Guzmán e o ex-secretário de Assuntos Estratégicos, Gustavo Béliz, que são membros da Pontifícia Academia das Ciências. Participarão também do encontro, entre outros, Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia; Carlos Body, ministro da Economia espanhol; Fernando Haddad, ministro da Economia brasileiro, e a vice-diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Antoinette Sayeh.
O objetivo do seminário é “estabelecer um diálogo sobre a implementação de políticas que ajudem a resolver o problema da dívida que aflige muitos países do sul global, que aflige milhões de famílias e pessoas no mundo”, como afirmou o próprio Bergoglio.
Na ocasião, o pontífice também fez um convite a “sonhar e agir juntos na construção responsável da nossa casa comum” porque “ninguém pode viver nela com paz de consciência quando sabe que ao seu redor há multidões de irmãos e irmãs que passam fome e também estão imersos na exclusão e vulnerabilidade social”. Para Francisco, “deixar isso passar é um pecado, um pecado humano, mesmo que não se tenha fé, é um pecado social”.
“Depois de uma globalização mal gerida, depois da pandemia e das guerras, encontramo-nos perante uma crise de dívida que afeta principalmente os países do sul do mundo, gerando miséria e angústia, e privando milhões de pessoas da possibilidade de um futuro digno”, disse o Papa.
Segundo Francisco, “para tentar quebrar o ciclo financiamento-dívida seria necessária a criação de um mecanismo multinacional, baseado na solidariedade e na harmonia dos povos, que tenha em conta o significado global do problema e as suas implicações económicas, financeiras e implicações sociais”. E acrescentou que “a ausência deste mecanismo favorece o ‘cada um por si’, onde os mais fracos perdem sempre”.
Para o Papa, a questão da dívida dos países deve ser resolvida com base “nos princípios de justiça e solidariedade” para os quais “é essencial agir de boa fé e verdade, seguindo um código de conduta internacional com padrões de valor que orienta as negociações" e baseada em "uma nova arquitetura financeira internacional, ousada e criativa".
Porque, afirmou, “não qualquer forma de financiamento funciona para as pessoas, mas sim aquela que implica uma responsabilidade partilhada entre quem o recebe e quem o concede”. E “o benefício que pode trazer para uma sociedade depende das suas condições, da forma como é utilizado e dos quadros em que são resolvidas as crises de dívida que podem ocorrer”.
Francisco recordou que João Paulo II considerou que a questão da dívida externa “não é apenas de natureza económica, mas afeta também os princípios éticos fundamentais e deve encontrar espaço no direito internacional” e apoiou o convite feito pelo seu antecessor para “perdoar as dívidas ou pelo menos reduzi-los”.
Para Bergoglio, uma iniciativa deste tipo é “hoje mais urgente do que nunca, tendo em conta que “a dívida ecológica e a dívida externa são duas faces da mesma moeda que hipotecam o futuro”.