19 Abril 2024
"Estamos pagando caro a forma inconsequente como estamos explorando os bens do planeta terra e a destruição irreversível por causa de algumas formas de agir e os efeitos da devastação da natureza já aparecem em calor e chuvas torrenciais, só para lembrar alguns. As culturas indígenas têm nos ensinado um modo de viver onde a vida, o espírito, os minerais são centrais que devem ser tratados como uma rede porque tudo está interligado
O artigo é de Luiz Rohden, decano da Escola da Humanidades da Unisinos e professor do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia – em parceria com a UFMG, de Belo Horizonte, o professor possui Mestrado em Filosofia pela PUCRS. Também é Doutor pela PUCRS com Doutorado Sanduíche pela Universidade de Heidelberg – Alemanha. Além disso, é Pós-Doutor em Filosofia no Boston College EUA, em 2006, e Pós-Doutor pela Penn State University – EUA, em 2015.
Quando, onde e por que fui conviver com os Rikbaktsa?
Por que narrar minha experiência de vida com os índios canoeiros?
Vivi entre os Rikbaktsa entre o dia 3 e 26 de dezembro de 1988. Como jesuíta [4], pedi então para realizar minha missão de férias junto a eles para conhecer sua forma de viver e o que eu poderia fazer por eles. Saindo de Belo Horizonte, depois de uma viagem de 15 horas de ônibus e duas horas numa voadeira, cheguei à aldeia indígena, às margens do rio Juruena, perto de Japuíra, no interior do estado do Mato Grosso. Lá me receberam o Padre Balduino Loebens, o estudante jesuíta Waldemar Bettio e a mineira Zilma, todos dedicados à causa indígena.
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Sim, aquela opção foi de causo pensado como se diz; nasci e vivi no Sul do Brasil, Rio Grande do Sul, na região das Missões, onde outrora foram construídas 7 cidades-estados das Missões guaraníticas. Como estudante SJ desejoso de contribuir, ajudar e defender os indígenas também nos nossos tempos ainda os mais fragilizados na sociedade brasileira e necessitados de solidariedade, optei então por realizar missão de férias entre eles.
Sim, sou professor de filosofia há 28 anos da Unisinos, sou pai abençoado de duas lindas filhas, Helena e Alice e vivo feliz com Juliana! Atualmente, também sou decano da Escola da Humanidades da Unisinos e, para celebrar e sensibilizar pela causa indígena por ocasião do dia 19 de abril, decidi partilhar e refletir sobre meu tempo vivido entre eles. Com eles aprendi lições atuais para minha vida que considero imprescindíveis para todos se quisermos viver melhor e contribuir para salvar nosso planeta das catástrofes ambientais, coisa que os povos indígenas de todo o planeta estão alertando. Seu modo de viver, sua noção de temporalidade e sentido da vida se constituem em forma de vida exemplar para revermos nossa maneira de ver e de agir para com a natureza.
Vou costurar minha reflexão com três linhas: apresentarei, inicialmente, hábitos, estilo de viver e relatar coisas do dia a dia que vi e vivi; a seguir, descreverei choques, impressões, fatos e dados marcantes de suas vidas; ao final, farei uma reflexão sobre o que aprendi e que me marcaram e lições para nossos tempos!
Retrato o que vi e como vivi naqueles dias: morei em uma choupana coberta de palhas, de chão batido e aprendi a dormir em rede. Meu primeiro desjejum foi mingau de milho, com banana e chá de cidreira e, a seguir ainda comi amoras. Meu primeiro almoço foi milho assado, com mingau de milho e as minhas preferidas mangas espada. Tomei, com muita relutância, chicha [5] de banana, que eles apreciavam.
Eram definidas as tarefas: os homens com suas funções claras de sair para caçar, trabalhar fora da choupana, pescar, ao passo que à mulher cabia a tarefa específica de cuidar da casa, cozinhar, cuidar das crianças. Me chamou a atenção ver meninas dadas em casamento após o ritual da menarca.
De cara, me fascinou, no geral, sua jovialidade, cordialidade, amabilidade e suas conversas entremeadas com muito humor e risos, por isso era importante o conto de piadas. Com jeito manso de falar, não gritavam.
Eu que era escravo dos horários, tocado pelo tempo do relógio, me chamou atenção de cara aquela vida sem horários, sem cronograma fixo, rígido. Faziam e seguiam, sim, planos, mas estes não eram seguidos à risca com minuto para iniciar e segundo determinado para terminar. Para eles, o que importava era viver aquele momento do dia sem que uma ideia abstrata, estranha ou lógica, determinasse o dia todo ou todos os seus dias.
Impressionou-me também a afabilidade no trato para comigo; desde logo me chamavam pelo nome como se fosse um antigo conhecido. Era como se houvesse uma conexão anterior que nos pusesse desde o início em sintonia. Em vários momentos me sentia como um membro da aldeia e fui inserido numa rede familiar que não conhecia bem.
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Como fui para conhecer aquele mundo, no meu primeiro dia, caminhamos, com vagar, de uma aldeia para outra, das 9h30min até às 18 horas. Era como se o importante não fosse o fim da caminhada, mas o caminhar junto; tipo numa pescaria com amigos, onde o que importa é muito mais o pescar mesmo, do que o pescado. Fiz muitas viagens com eles nas suas canoas (talhadas por eles) e nas voadeiras (construídas pelos brancos).
Sem idílios, já no primeiro dia, tive que trabalhar e minha tarefa foi buscar lenha no mato para fazer o fogo; também ajudei a colher quatro cachos de bananas. Lembro que um dia fomos capinar pelas 8 horas, em ritmo tri lento e com muita conversa e ainda antes das 10 horas Júlio me chamou para irmos caçar – eu trabalharia, seguindo minha lógica, até às 12 horas.
Nos dias subsequentes vivi no seu ritmo de vida: sendo que um dos trabalhos foi caçar, outro pescar, outro buscar patuá, limpar a roça de mandioca. A bela lição das caçadas e das pescarias residia no fato de que tudo era partilhado e servia para aquele dia, não caçavam ou pescavam para fazer reservas. Conscientes do cuidado com sua sobrevivência plantavam milho, mandioca, banana, mas não com escopo de acumular, fazer sobrar, mas apenas o necessário para viver e fazer festa, sem a neurose de garantir a vida futura se matando de trabalhar no tempo presente.
Me chamava muita atenção ao fato de estarem totalmente ligados ao seu contorno sem projeções ou especulações vazias, se atinham a elaborar, a expressar e a organizar suas vidas pela contação de histórias, que eram em geral sobre temas e assuntos que os mais velhos contavam.
Também ajudei a construir uma casa, com tábuas e telhado de palha. A construção foi em mutirão, quando todos se organizaram para construí-la conjuntamente.
Apreciadores e amantes da música e da dança, fiquei impressionado quando ouvi o velho Geraldino tocar, numa festa de casamento, sua flauta feita de osso, lindas músicas cujas letras eram motivadas pelas experiências de convívio com a natureza que os cercava ou mesmo imitação dos sons dos cantos dos pássaros; e, em seguida ao momento musical, tive o privilégio de ouvir os anciãos dando conselhos aos recém-casados sentados nas suas redes. Mas impressionou muito também o fato de cantarem, à época, o tá na hora, tá na hora... da Xuxa, bem como churrasco e bom chimarrão... cantado pelos gaúchos.
Ver as queimadas de árvores centenárias; sentir-se sufocado pela fumaça da mata ardendo em fogo; passar ao largo de incontáveis fazendas com gado nos pastos a perder de vista; olhar aquele mar verde das plantações de soja; sentir e saber da mineração de ouro que despejava mercúrio nos rios envenenando seus peixes, me foi muito chocante e marcante. Uma coisa é saber dessas notícias pelas mídias, outra coisa é padecer no corpo a destruição da natureza.
Como era dolorido ver que vendiam seus peixes a preço irrisório e os brancos os revendiam por 5 vezes mais pelo que lhes pagavam. Eram corriqueiros os relatos sobre assassinatos por conta do conflito de interesses na extração de madeira, garimpo e outras formas extrativistas.
Fiquei impressionado ao saber que o sonho de muitos jovens era de comprar óculos escuros, de namorar uma branca e de ganhar muito dinheiro. Os mais velhos, lastimavam então que os mais jovens não sabiam mais manejar arcos e flechas.
No movimento mimético de viver a vida de brancos, renegavam sua identidade, matavam lentamente sua história e cultura pelo esquecimento de sua língua. E quantas decepções, dores e sofrimentos vividos pelos jovens que deixavam suas aldeias para trabalhar com os brancos nas fazendas, garimpos ou madeireiras.
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Era muito comum se entregarem ao vício da cobiça e à traição dos seus vendendo suas forças, seus corpos e sua alma mediante míseros reais ou benefícios de toda natureza, mas também assim estavam conhecendo o mundo que os envolvia e com o qual teriam que conviver inexoravelmente. Ingênuo que era, quebrou-se-me de vez então, a imagem ou o mito do bom selvagem, puro, angelical em seu estado natural, isento do mal que participa da natureza humana.
Foi chocante me deparar com o enfraquecimento físico e moral daquelas populações por causa do álcool negociado com os brancos. Seduzidos pela bebida se tornavam presas fáceis para diferentes tipos de manipulações que os conduziam à morte. O enfraquecimento do corpo provocado pela cachaça produzia efeitos nefastos em sua vida familiar, social e de trabalho. Sem o vigor físico e moral, deixavam de cultivar sua cultura, seus hábitos, seus costumes e sua língua que, como sabemos, condensa e comporta sua vida, sua história, sua identidade.
Não era por acaso que uma das maiores preocupações dos missionários jesuítas era contribuir com escolas específicas e diferenciadas, na saúde para que não morressem de malária, nas atividades culturais tradicionais e no resgate e no cultivo da sua língua que os jovens já não queriam mais falar por influência do português. Destruir uma língua equivale a destruir uma cultura, um modo de viver, um modo de se relacionar consigo, com os outros, com a natureza, com as divindades.
Harari nos brindou uma bela obra com suas 21 lições [6] para vivermos com mais qualidade e ele inspirou a retratar as experiências e lições marcantes para minha vida pessoal e para nossos tempos que aprendi com os Rikbaktsa.
Sem relógio no pulso, sem agenda na mão, sem prazos e tarefas a cumprir, experienciei o prazer de viver outra dimensão do tempo, mais lenta, mais intensa, mais densa e saborosa; e daí me lembrei que Fernando Pessoa se comprazia em seu fazer poético: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada./ O sol doira/ Sem literatura”. [7]
Eu que vivia a agenda do meu mestre Libânio, para quem “o que não está escrito na agenda, não existe”, restringia minha vida essencialmente apenas ao que estava agendado. Valeu, mas vi lá com os Rikbaktsa o quão restrito isso é para minha vida que extrapola qualquer tipo de conceito, programação prévia e agendamento. Sem dúvida, de todas as experiências, esta foi a mais marcante: como não estava hiper-mega atarefado, passava a maior parte do tempo apenas comigo mesmo, o que me fez rever e refletir sobre minha forma de viver. Condensei essa iluminação no meu diário nos seguintes termos: “aqui onde não há horários/onde hoje é hoje sem amanhã/ onde ainda tudo é virgem/ o Juruena e muitos matrinchãs/ volta a velha atual pergunta, o que é afinal, viver agora?” [8]
E, cá para nós, não será esta, ao final de todas as contas, de todas as tarefas, o que importa mesmo em nossas vidas? Não será esta a tarefa mais saborosa, isto é, renovar, todos os dias, o desejo de viver feliz, pleno e todo em tudo que fazemos?
Vi, vivi e experienciei a relação que viviam em relação ao trabalho: não possuíam aquela avidez de se matar trabalhando para ajuntar bens ou garantir uma vida folgada num futuro fim da vida que não existe. Não viviam em função de viver um dia apenas a vida de aposentado sentado em suas conquistas materiais. Isso me lembrou Sêneca que nos dizia:
Como vivem intensamente o momento presente, o carpe diem diário, é possível dizer que são pragmáticos no sentido de não se aterem a se alimentarem, no dia-a-dia, mas viverem isso intensamente, com sentido de festa, construir relações duradouras e intensas. Vivem uma lógica ou temporalidade presencial onde trabalham para viver e não vivem para trabalhar, ou acumular bens. Atendo-se ao momento presente, potencializam o tempo para cultivar seus aprendizados milenares, ancestrais, contarem histórias de caçada, de roçadas, de pescarias, onde vão repassando fatos e feitos às novas gerações. Valorizavam e viviam o seu tempo e infelizmente, como já nos alertava Sêneca “ninguém valoriza o tempo, faz-se uso dele muito largamente como se fosse gratuito”. [10] Com eles aprendi o que com Sêneca um dia havia lido: “assim, somente o tempo presente pertence aos homens ocupados, tempo este tão breve que não pode ser alcançado e que é retirado deles já que estão distraídos com muitas coisas”. [11]
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Foi maravilhoso ver seu senso e práticas de partilha de vida intensamente identificados na sua etnia e cultura, de solidariedade entre eles e para comigo. Tapema, o cacique, me dava sempre as melhores mangas e frutas. Filho da Modernidade, afeito aos meus interesses particulares, fui intimado a partilhar minhas coisas e retratei então esta experiência na seguinte sentença do meu diário: “preciso dos índios aprender/ a virtude de tudo dar/ sem ficar esperando em troca sem com isso querer impor/ou buscar votos de louvor”. [12] Longe da civilização moderna, naquele retiro, pude me ater mais à vida e me motivei ao final a cultivar a arte de “partilhar, dar, distribuir, não canhar, não [viver para] acumular” [13] e, por isso, com estas lições voltei melhor, maior, mais ético e livre. Destaco ainda a empatia do cacique Tapema, para quem, ao final da minha estadia, dei meu punhal de presente e de quem, meses mais tarde, recebi, em retribuição, um cocar que desde então orna minha sala de jantar.
Outra lição indelével de seu modo de viver para nossos tempos diz respeito à lógica temporal, à sensibilidade, à integração com a natureza. Sentindo-se parte dela não a tomando como algo externo ou objetificável ou instrumentalizável, sabem conviver com ela cultivando-a e extraindo apenas o necessário para o bem viver, sem destruí-la ou envenená-la. Sentiam-se partícipes da natureza, sabiam ouvir seus sons, sentir seus cheiros e por isso a tratam com carinho, com cuidado como a uma mãe.
Enfim, o fato é que fui para ajudar, mas eu é que fui ajudado a ver e a viver melhor; fui para dizer coisas importantes, mas foram eles que me mostraram o que é o mais importante na vida; fui para ensinar, mas foram eles que me deram lições indeléveis que ainda me esforço para concretizar; e se antes lia sobre Ecologia, hoje sei que são eles que nos legaram a forma de responsabilidade ambiental que devemos assimilar para salvar nosso planeta.
Confesso que não foi fácil – na verdade, não consegui – me inteirar do modo de viver dos Rikbaktsa; essa dificuldade, ao final, me levou a refletir e se converteu em lições indeléveis para minha vida pessoal e nossa vida social. Simples, somos ocidentais por demais, isto é, marcadamente racionalistas, utilitaristas, pragmáticos e, no geral, reproduzimos os padrões de comportamentos antropocêntricos que estão na causa da destruição do nosso planeta.
Um dos aprendizados mais importantes com os Rikbaktsa diz respeito à minha forma de me relacionar com o outro. Mais que saber lidar ou tratar o outro como nós gostaríamos de ser tratados segundo a Regra de Ouro da moral segundo a qual devemos “fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem”, deveríamos conhecer e incorporar a Regra de Cobre da moral, segundo a qual devemos “fazer aos outros o que eles gostariam que fizéssemos a eles”. [14] Sábias e necessárias diretrizes morais no trato para com o outro, proponho uma costura entre ambos, que corporifiquei na Regra de Platina, onde não apenas procura tratar o outro como gostaria de ser tratado, mas, ao mesmo tempo, exercita-se em tratar o outro como ele gostaria de ser tratado. Não conseguiremos compreender e dizer a palavra apropriada ou agir de modo justo para com os indígenas se não aprendermos a ver e a nos sensibilizar com o que eles gostariam que nós fizéssemos a eles em razão do seu horizonte de vida, que considero sábio, sustentável e saudável.
3.2.3. Agora, com Ailton Krenak, retomo minha vivência com os Rikbaktsa mirando o futuro da humanidade no que diz respeito a uma relação sustentável com a natureza. À luz das reflexões de Krenak, retomo algumas dimensões da vida dos Rikbaktsa que são lições decisivas para nos sensibilizarmos e nos responsabilizarmos para com a salvação da nossa mãe natureza. Urge aprendermos a lidar bem com o outro, com a natureza, que não seja o modo ocidental antropocêntrico. Nos caminhos de Krenak, que é um filósofo originário, que “desentranha do pensamento indígena uma forma que os ocidentais se habituaram a reconhecer como filosofia e a confronta, à medida que também a aproxima, com os modos especulativos europeus e outras cosmovisões tradicionais”. [15]
Movidos por modos de viver não predatórios nessa mãe-terra, seus pensamentos e suas práticas não envenenam, nem destroem o meio ambiente; antípodas da lógica capitalista que “só percebe os rios como potencial energético para construção de barragens ou como volume de água a ser usado na agricultura e, assim, o Brasil segue exportando sua água através de grãos e minério. Tratam os rios de maneira tão desrespeitosa que dá a impressão de que sofreram um colapso afetivo em relação às preciosidades da Terra”. [16]
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Na verdade, nos termos de Krenak, “os humanos estão aceitando a humilhante condição de consumir a Terra. Os orixás, assim como os ancestrais indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimentar a vida, cantar e dançar, mas parece que a vontade do capital é empobrecer a existência. O capitalismo quer um mundo triste e monótono, em que operamos como robôs”. [17]
Sim, precisamos reaprender a ver nossa consciência e modo de viver para com a natureza e avaliar o imaginário antropológico que rege nossas ações. Com Krenak, “temos que reflorestar o nosso imaginário e, assim, quem sabe, a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida, em vez de ficarmos repetindo os gregos e os romanos. Vamos erguer um bosque, jardins suspensos de urbanidade, onde possa existir um pouco mais de desejo, alegria, vida e prazer, ao invés de lajotas tapando córregos e ribeirões”. [18]
A vivência com os Rikbaktsa me mostrou, na esteira de Krenak, que o bem viver implica conviver bem com as pessoas, com os antepassados, e também manter uma relação íntima com o meio ambiente:
Estamos pagando caro a forma inconsequente como estamos explorando os bens do planeta terra e a destruição irreversível por causa de algumas formas de agir e os efeitos da devastação da natureza já aparecem em calor e chuvas torrenciais, só para lembrar alguns. As culturas indígenas têm nos ensinado um modo de viver onde a vida, o espírito, os minerais são centrais que devem ser tratados como uma rede porque tudo está interligado. Com eles aprendemos, nos passos de Krenak, que “nossa sociabilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres – humanos e não humanos”. A experiência de vida de Krenak é uma lição para nossos dias:
Enfim, outra lição para nossos tempos nos dá Krenak:
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Enfim, como canta Elis, ainda vivemos e somos os mesmos [23] e até parece, piores que nossos pais, pois ainda somos colonizadores e conquistadores, porque continuamos controlando e destruindo nosso planeta de forma irresponsável e crescente. Por isso, a saída dos meus horizontes e a vivência no horizonte indígena me mostrou que é no encontro com o diferente, com o outro, com aquele que não foi maculado pelo vírus do capitalismo selvagem que temos a chance de revisarmos nossa forma de ver, de viver. E o grau de verdade e intensidade de uma experiência, como foi aquela, se mede pela emersão da pergunta central na vida de qualquer um de nós, a saber, o que é, como vivemos nossas vidas?
É no encontro com o outro que temos a chance de espelharmos nosso modo ocidental, predador de ser. O indígena é um Outro, muito melhor e muito maior que nós, não apenas porque era o dono destas terras, mas porque vive de modo mais saudável, não predatório, não destruidor da vida; e mas ainda nos deixa o legado e nos ensina sobre um outro cultivo de consciência, planetária, coletiva.
Foto: Acervo de Luiz Rohden
Assim, reconhecer seus direitos ao seu território tradicional, sem enganação como essa do Marco Temporal, não é mais que nossa obrigação moral enquanto país que se constitui sobre um território que era indígena no todo. A defesa dos povos primeiros, dos que estiveram aqui antes dos europeus é dito como uma causa pela qual vale a pena viver – replicável e válida para todas as causas humanitárias – não é uma questão ou tarefa específica só de cada um desses grupos. Eu, branco, descendente de migrantes alemães, de olhos verdes, ocidental, preciso fazer desta a minha luta também, simplesmente porque somos todos seres de um planeta, de uma mãe que nos gerou, nos alimenta, nos cuida.
E assim, neste dia 19 de abril de 2024, à luz da razão e da minha experiência de vida com as lições de vida e de responsabilidade ambiental aprendidas com os Rikbaktsa convido a aprendermos com as crianças indígenas a colocar nossas mentes e corações no ritmo da terra.
[1] Esta narrativa nasceu em função da provocação da profa. Juliana Chaves que me encorajou e me deu mil motivos para retomar minha vivência junto aos índios canoeiros com escopo de destacar as lições para minha vida pessoal que tive o privilégio de receber e que servem para nossa sociedade; obrigado por isso e por dar dicas na tessitura desta narrativa. Agradeço ao meu amigo pe. Aloir Pacini, sj, dedicado e exemplo de vida comprometido com a defesa dos povos indígenas. Registo ainda meu agradecimento à colega profa. Márcia Junges que leu e revisou o texto para ser publicado nesta versão.
[2] Rikbaktsa são, segundo informações do Museu do Índio, um povo que vive em aldeias às margens dos rios Juruena, Sangue e Arinos, no Mato Grosso. São conhecidos como índios canoeiros por se talharem e se locomoverem em canoas.
[3] Rohden, Luiz. Meu diário em 15 de dezembro de 1988.
[4] Graças à Vida, tive o privilégio de viver muitas vidas nesta vida e nesta travessia, vivi seis anos como estudante da Companhia de Jesus e seguir jesuíta por 12 anos até 1995 e sigo vinculado à sua obra educacional, Unisinos, desde 1996.
[5] Chicha é uma bebida fermentada à base de tubérculos, milho e de outros cereais produzidos pelos povos indígenas de toda a América Latina que os missionários que chegaram não tiveram dificuldade em chamar também de vinho.
[6] HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
[7] PESSOA, Fernando. 1995, p. 244.
[8] ROHDEN, Luiz. Meu Diário em 15.12.1988.
[9] SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre, RS: L&PM, 2007, p. 32.
[10] SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre, RS: L&PM, 2007, p. 44.
[11] SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre, RS: L&PM, 2007, p. 50.
[12] Rohden, Luiz. Meu Diário em 17 de dezembro de 1988.
[13] Rohden, Luiz. Meu Diário em 26 de dezembro de 1988.
[14] Expresso negativamente, diz: “Não faça aos outros o que eles não gostariam que você fizesse a eles”. HUANG, Young. Cultural Hermeneutics: Interpretation of the Other. In: Inter-Regional Philosophical Dialogues: Democracy and Social Justice in Asia and the Arab World. Edited by Inwon Choue, Samuel Lee, and Pierre Sané. Korean National Commission for UNESCO, 2006, p. 195.
[15] SODRÉ, Muniz in KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo : Companhia das Letras, 2022, contra capa do livro.
[16] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 22.
[17] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 38.
[18] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 71.
[19] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 83-84.
[20] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 101.
[21] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 102-103.
[22] KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 117-118.
[23] REGINA, Elis. Como nossos pais.