18 Abril 2024
Monica Minardi, acaba de ser reeleita presidente da MSF Itália: desde jovem esteve nos teatros de guerra e carestia, com os frades da Etiópia e com dom Leo Commissari no Brasil. Nos navios você escolhe quem salvar. A médica de Ímola há anos alterna o compromisso em casa com as famílias locais com aquele das missões estrangeiras mais exigentes. Mulher, esposa e mãe, clínica geral (a antiga “médica de família”) com paixão pelas vítimas das grandes injustiças. Desde domingo foi reeleita presidente da seção italiana da Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização não governamental que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999 e que opera em 80 países com 65 mil agentes humanitários.
No entanto, Monica Minardi, de 54 anos, simplifica: “Se os MSF são uma gota no oceano das grandes crises humanitárias, eu não sou nem uma gota, no máximo um vapor de água”. Ela esteve desde jovem nos teatros de guerra e carestia, quando a ideia de estudar medicina começava a dar forma ao seu verdadeiro interesse, “tentar sanar as diferenças entre aqueles que, como eu, sem méritos nasceram onde existem direitos, e aqueles que sem deméritos nasceram onde não há esperança. Ainda hoje, para mim, a medicina tem um aspecto quase artístico no encontro próximo com o paciente, em manter o meu olhar ao nível do seu...”. Experiências que vive nas zonas mais pobres do mundo como no seu consultório como “médica de família” em Ímola, porque, garante, quando se está doente todos ficamos vulneráveis e todos precisam desse olhar.
A entrevista é de Lucia Bellaspiga, publicada por Avvenire, 16-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como surgiu a sua paixão pelos últimos?
Quando estudante, já estava em missão com os frades capuchinhos em Kambatta, na Etiópia. Eu olhava o padre Leonardo e a sua equipe de frades cirurgiões especialistas em alongamento de tendões, porque as crianças ficavam confinadas à cama durante meses e seus membros se deformavam. Sempre durante a universidade estive no Brasil na favela de São Bernardo, onde logo após minha partida Dom Leo Commissari foi morto: era um sacerdote incômodo, não estava próximo das vítimas, mas junto a elas. Voltando para casa eu me disse “é isso que quero ser” e depois de me formar fui para Liverpool fazer meu mestrado em Medicina tropical, requisito indispensável para ingressar na MSF... Desde então eu olhava para a Médicos sem fronteiras, mas nunca imaginei que um dia me tornaria presidente! Na realidade ainda hoje fico espantada. Naquele período parti para a Eritreia, onde passei 4 meses num dispensário dirigido por freiras leigas organizadíssimas e, ao retornar à Itália, imediatamente me candidatei ao MSF. A seleção foi difícil, mas me recrutaram, só que a vida vira os planos de cabeça para baixo: nesse ínterim, conheci o homem que agora é meu marido.
Conheceu no hospital?
Na verdade, na discoteca, foi amor à primeira vista. Mas antes de nos casarmos ele tinha que saber quem eu era, e eu também tinha que conhecer o homem com quem construiria minha família, assim parti para Angola durante a guerra civil como responsável do departamento pediátrico da MSF. Ele passou pelo teste, porque seis meses depois, quando voltei, ele ainda estava me esperando! Casamo-nos em 2001 numa cerimônia mista, eu sou católica, ele é senegalês e islâmico, hoje temos duas filhas que se orgulham da sua dupla cultura. A Angola foi a experiência mais dramática da minha vida, em todo o lado havia pessoas amputadas pelas minas, na pediatria tínhamos 80 leitos para 130 crianças internadas, duas por cama, depois eclodiu uma epidemia de meningite. Naquele período minha fé entrou em crise diante de tanto horror, mas eu disse para mim mesma “faço o que posso dentro das minhas possibilidades”, era o mais próximo que sentia para ser cristã.
Ser mãe e cuidar do mundo não é uma vida fácil.
Não podia mais sair, só em 2009 participei de uma missão no Paquistão, em Mardan, onde um milhão e meio de pessoas deslocadas internamente se concentraram para escapar dos talibãs. Mas um mês depois eu estava em casa novamente, tanto porque as meninas eram pequenas quanto por razões econômicas, a MSF paga o pessoal, mas obviamente o salário é muito inferior ao de um médico. No ano seguinte partimos para Sussex, onde finalmente consegui fazer a especialização em Medicina de Emergência que eu nunca teria condições de me permitir no meu país, e voltamos para a Itália dez anos depois... justamente durante a Covid! Com a pandemia havia grande necessidade de médicos e eu não saí mais, até que, nem sei como, em abril de 2022 me vi presidente da MSF, uma emoção imensa: a serviço de uma organização que nunca olha para o outro lado eu colocava a minha competência como médica e a paixão pelos valores do movimento. Ontem foi a reeleição como presidente e tanta alegria no meu coração.
O seu casamento tem alguma coisa a ver com essa paixão?
No início dos anos 1990 meu marido chegou do Senegal sentado em um avião, na época não havia mortes no mar, se podia partir como nós italianos partimos hoje, ele tinha um visto de turista que se transformou em visto de trabalho assim que encontrou um emprego, era uma coisa normal. Ele era um migrante econômico exatamente como são os nossos filhos hoje: não se vivia mal no Senegal, mas era um jovem que tinha um sonho, como os nossos garotos que hoje vão estudar e trabalhar no estrangeiro. Mesmo quando fui para Inglaterra não vivia mal aqui, mas tinha o meu sonho. É estranho que os jovens africanos também tenham um sonho? Hoje existem passaportes “importantes” com os quais você viaja para todos os lugares e passaportes que, em vez disso, te excluem, parece um sistema projetado para manter uma desigualdade em nível global.
Seus anos como presidente da MSF foram em um período particularmente difícil…
Entre a pandemia e as guerras foram dois anos difíceis, mas veja, nunca faltam crises humanitárias, mesmo quando não se fala a respeito, basta pensar no Haiti, no Sudão, no Tigré. No ano passado eu estive em missão justamente no Tigré no norte da Etiópia, e poucos dias atrás estava a bordo do Geo Barents, o Navio da MSF. Estar lá no convés do navio e assistir ao resgate dos nossos corajosíssimos técnicos de socorro, é uma coisa completamente diferente, é arrebatadora a gratidão das pessoas que se sentem a salvo, as crianças não te conhecem, mas pulam nos teus braços, tornam-se homens e mulheres, não números. Resgatamos 261 pessoas e a primeira mulher que visitei foi uma mãe que fugiu da guerra na Síria com dois filhos: agradecia e pedia perdão, “lamentamos incomodar vocês, não gostaríamos, mas estamos entre o fogo e a água e a única solução é a água", dizia, e depois pedia desculpas "por qualquer mal que árabes ou muçulmanos tenham feito a vocês, somos islâmicos, mas temos orgulho de não ser como eles." Havia também duas garotas de 15 anos da Etiópia, também com sinais das torturas e diversas vezes abusadas na Líbia...
O que é mais doloroso para você, como médica, nesses casos?
Ter que escolher quem salvar e quem não é contra a ética médica. Vou explicar: as diretivas italianas de 2023 obriga-nos a desembarcar os migrantes em dois portos sucessivos, ambos distantes das zonas de resgate, para nós foram designadas Civitavecchia e Gênova. Então quando você salva 261 pessoas você tem que elaborar imediatamente um ranking das mais vulneráveis que desembarcam no primeiro porto, enquanto as demais devem continuar até o segundo, mas como decodificar quem é mais frágil? Em poucas horas não dá para entender se uma menina ou um menino foram abusados. Além disso, você também tem que manter as famílias unidas... Para ligar Civitavecchia e Gênova de ônibus bastariam 4 horas, de navio demoramos mais 26 horas de navegação, que é um gasto enorme para nós e mais um estresse para aquela pobre gente, com ondas quatro metros. Depois de Gênova o navio deve regressar para o sul, no Mediterrâneo, e quando chegarmos para muitos é tarde demais. Por que essa política dos duplos portos que nos mantém afastados das zonas de naufrágios? Você se pergunta o motivo e a resposta não é bonita.
Para além do fenômeno migratório, todo o planeta é um amontoado de injustiça. Saúde, educação, liberdades dependem de onde você veio ao mundo... Nos últimos anos tem havido um aumento da desnutrição, a África Subsaariana e a Ásia pagam o preço enorme de desertificações e carestias, e a isso se sobrepõe a lógica da guerra vista como a única solução possível, voltamos a um rearmamento insano e a negociação nem sequer é considerada. Vejamos o que está acontecendo agora em Gaza: em 7 de outubro, as milícias do Hamas cometeram um crime pavoroso contra a humanidade, mas o massacre que está matando a população civil palestina não tem precedentes, os nossos operadores veem de perto um cerco que bloqueia na passagem de Rafah milhares de caminhões carregado de ajudas humanitárias. Leo Cans, nosso chefe de missão, no hospital al-Shifa vê as pessoas morrer literalmente porque não comem, as mais sortudas estão vivas graças à ração animal. O problema, portanto, não é logístico: uma população está morrendo de fome devido a escolhas políticas. Hoje nos acusam de estar em Gaza e não em Israel, mas já estávamos lá há anos, e em 7 de outubro oferecemos apoio a Israel, mas isso nenhum jornal escreve.
Estamos nos desumanizando?
Se você é um migrante e morre afogado, não terá o mesmo peso específico de outra pessoa. No naufrágio do Cutro em fevereiro de 2023, cem pessoas morreram a poucos metros da costa da Calábria, o mar estava muito agitado, mas se fosse um barco de cruzeiro, temos certeza que os teríamos deixado se afogar? Realmente não teríamos enviado os socorros?
Você ocupa o papel que foi de Carlo Urbani, o médico que parou a Sars em 2003, salvando o planeta, mas perdendo a vida. Foi ele quem recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1999 e naquela ocasião fez um discurso memorável aos médicos da MSF, inflamando-os de paixão.
O fogo da paixão nos é dado pela ação médica que cura a todos sem distinção, e isso o inesquecível Urbani o vivia com profunda fé. Mas não é preciso ir longe, mesmo aqui num pronto-socorro italiano, a deontologia médica é independente de todas as afiliações. O outro fogo da MSF é a capacidade contínua de sempre nos questionarmos, debatemos muito, decidimos tudo de forma colegial, reiteramos a nós mesmos os princípios humanitários hoje esquecidos que precisam ser postos no centro.
Quando os MSF decidem sair?
A organização MSF foi fundada por profissionais de saúde e jornalistas, e é por isso que as duas almas que ainda guiam as nossas ações são, por um lado, a assistência médica aos frágeis e, por outro, o testemunho/denúncia dos abusos. O problema, porém, é que por vezes a denúncia nos faz perder o acesso às populações, vou explicar: em Angola teríamos que gritar ao mundo que na base da guerra estava o tráfico de diamantes, mas seríamos expulsos e abandonaríamos os pobres, então o que escolher? É um constante pesar os prós e os contras.
O que em sua vida nunca faria?
Certamente a plantonista avulsa. Dada a extrema necessidade de médicos, os hospitais agora estão cheios de plantonistas avulsos: você escolhe o turno, volta para casa logo e é pago pelo plantão como profissional liberal. É um princípio inaceitável. Vi na Inglaterra os danos que esse sistema criou.
Suas filhas absorvem tudo isso?
São duas garotas de sorte, respiram o amor e o respeito mútuo dos pais, na Páscoa e depois também no final do Ramadã fizemos uma bela festa em casa com os amigos. Sempre as avisamos: “vocês têm um baú mais pesado para arrastar porque carregam duas culturas, mas se abrirem encontrarão o dobro de riquezas lá dentro: abram!”.