02 Abril 2024
Da “loucura da guerra” aos “rostos de crianças que já não sabem mais sorrir”, de quem usa “o teclado para insultar e publicar sentenças" à incapacidade de ver Cristo "nos cristos humilhados pela prepotência e pela injustiça".
A reportagem é de Mimmo Muolo, publicada por Avvenire, 30-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O nome de Jesus foi dito quatorze vezes. Quatorze invocações que encerram os textos da Via Sacra da Sexta-feira Santa no Coliseu. Um coroamento das meditações escritas pela primeira vez nesse pontificado pelo próprio Papa, divulgadas pela manhã, e proclamadas durante o avanço da Cruz entre as ruínas da antiga Roma.
Francisco, porém, não esteve presente no Coliseu na noite de sexta-feira. Não muito antes do início do rito, um breve comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé informou os jornalistas que “para preservar a saúde em vista da Vigília de sábado e da Santa Missa do Domingo de Páscoa, o Papa Francisco acompanhará de Casa Santa Marta a Via Sacra no Coliseu". A ausência do Papa foi de alguma forma compensada pelas suas meditações, que como marcos cadenciaram o caminho da via Dolorosa, diante de uma multidão silenciosa e em oração (medidas de segurança reforçadas). A carregar a cruz foram algumas freiras de clausura e um eremita, uma família, pessoas com deficiência, sacerdotes confessores nas basílicas romanas, um grupo de migrantes, alguns catequistas e jovens, párocos romanos e agentes da Caritas diocesana. As tochas iluminaram o caminho.
Francisco escreveu quase um diálogo com o Senhor, “santo juiz que me chamará pelo nome”, embora não faltem referências a acontecimentos atuais. No fundo é como se, no Ano de Oração, antes do Jubileu, o Papa Bergoglio quis mostrar-nos como reza quando está sozinho diante do Crucificado e Ressuscitado. E ofereceu-nos uma razão pela sua esperança. “O sofrimento, com Deus não tem a última palavra", afirma Francisco. Ou com referência às muitas exposições mediáticas de hoje lembra: “Basta um teclado para insultar e publicar sentenças”. Esse é o comentário na estação de Verônica.
Em outros textos há também a exortação a reconhecer “a grandeza das mulheres, que ainda hoje são descartadas, sofrendo ultrajes e violências”. O Papa Bergoglio denuncia mais uma vez a “loucura da guerra", diz que chora diante das tragédias do mundo e dá voz à dor diante dos "rostos de crianças que já não sabem mais sorrir, de mães que as veem desnutridas e famintas e não têm mais lágrimas para derramar. Você Jesus – escreve na meditação sobre o encontro das mulheres de Jerusalém com o Senhor – chorou por Jerusalém, chorou pela dureza dos nossos corações. Sacude-me por dentro, dê-me a graça de chorar enquanto oro e de orar chorando". O diálogo continua. E assim diante Jesus que grita o seu abandono na cruz (décima primeira estação) o Papa pede: “Faça com que lhe reconheça e ame nas crianças não nascidas e naquelas abandonadas, em muitos jovens, à espera de quem vai ouvir o seu grito de dor, em tantos idosos abandonados, nos presos e naqueles que estão sozinhos, nos povos mais explorados e esquecidos".
As invocações se sucedem. “Cure meu coração e dê sentido à minha dor. Cure-me da inveja e do ressentimento. Liberte-me da suspeita e da desconfiança. Ajude-me a amar e perdoar, a superar a intolerância e a indiferença, a não reclamar".
Jesus, continua o Pontífice, apresento-lhe os pastores do seu povo santo: a sua oração sustenta o rebanho; encontrem tempo para estar na sua frente, deixe seus corações se conformarem com o seu. Eu lhe abençoo pelos contemplativos e contemplativas, cuja oração, escondida do mundo e por você apreciada, salvaguarda a Igreja e a humanidade. Trago diante de você as famílias e as pessoas que rezaram em suas casas esta noite, os idosos, especialmente os que estão sozinhos, os doentes, joias da Igreja que unem os seus sofrimentos aos seus”.
O Papa, em seguida, almeja que essa sua “oração de intercessão chegue às irmãs e aos irmãos que em muitas partes do mundo sofrem perseguições por causa do nome de Jesus; daqueles que sofrem o drama da guerra e de quantos, haurindo força de você, carregam pesadas cruzes. E, finalmente, invoca novamente: “livre-me dos julgamentos precipitados, das fofocas e das palavras violentas e ofensivas".
São textos de grande profundidade espiritual. Para exemplo, aquele em que Francisco (nona estação, Jesus é despido) nos lembra que também hoje é possível ver Jesus crucificado “nos cristos humilhados pela prepotência e pela injustiça, por ganhos iníquos obtidos às custas de outros na indiferença geral. Eu olho para você, Jesus, despido das vestes, e entendo que me convida a me despir de tantas exterioridades. Deixe-me nu também. Por que é fácil falar, mas depois eu lhe amo de verdade nos pobres, na sua carne ferida? “Agora entendo – comenta na mesma estação – essa sua insistência em identificar-se com os necessitados: você foi preso; foi estrangeiro, levado para fora da cidade para ser crucificado; você está nu, despido das vestes; você, doente e ferido; você, sedento na cruz e faminto de amor. Deixe-me ver você nos sofredores e ver nos sofredores você, porque você está aí, naqueles que estão despidos de dignidade”.
Várias meditações referem-se ao poder da oração. Assim, quando fala de José de Arimateia, que pede a Pilatos o corpo de Jesus (décima quarta estação). “José, lembra-nos que a oração insistente dá frutos e até atravessa as trevas da morte; que o amor não fica sem resposta, mas dá novos começos. Seu sepulcro que – único na história – será fonte de vida, era novo, apenas escavado na rocha”. E ao comentar essa estação Francisco invoca: “De mim, com preguiça de me converter, tenha piedade, Senhor. Senhor, tenha piedade do nosso mundo infestado pelos sepulcros do egoísmo. Acima de tudo, lembre-me, Jesus, que a minha oração pode mudar a história”, escreve na décima segunda estação (a do bom ladrão).
Também é muito delicada a relação com Nossa Senhora, de quem o Papa é extremamente devoto. “Maria, somos pobres de ‘sim’ e ricos em ‘se’: se eu tivesse tido pais melhores, se tivesse sido mais compreendido e amado, se a minha carreira tivesse corrido melhor, se não houvesse aquele problema, se ao menos eu não sofresse mais, se Deus me ouvisse... Perguntando-nos perenemente o porquê das coisas, temos dificuldades para viver o presente com amor. Você teria muitos ‘se’ para dizer a Deus, mas ainda diz ‘sim’. Forte na fé, acredita que a dor, atravessada pelo amor, produz frutos de salvação”.
Aqui, justamente está o sentido último dessas meditações. Que embora, como em todas as vias sacras, chegam a acompanhar Cristo até à sua deposição no sepulcro, já deixam entrever a alegria da ressurreição.