21 Dezembro 2023
Em 17 de dezembro, a população chilena rejeitou a segunda proposta de Constituição, esta última redigida pela direita. O que acontecerá agora?
A reportagem é de Jaime Bordel Gil, publicada por El Salto, 21-12-2023.
No último domingo, o Chile rejeitou novamente uma proposta constitucional, encerrando um processo constituinte que foi referência no mundo e chegou a iludir, em seu momento, uma ampla maioria da população. O país que encheu as ruas para, entre outras coisas, derrubar a Constituição de Pinochet, votou majoritariamente por manter o texto redigido pelos colaboradores do ditador como mal menor diante de uma proposta ainda mais regressiva.
Apesar da derrota a longo prazo, as forças progressistas chilenas podem considerar um alívio ter evitado um mal maior: uma constituição projetada pelo ultraconservador José Antonio Kast. No entanto, a situação não permite muitas celebrações. O Chile está diante de um horizonte incerto, e o encerramento do processo constituinte representa uma derrota inequívoca para as forças progressistas, que foram as principais impulsionadoras do processo.
Também é uma derrota para Gabriel Boric, que não será o presidente da nova Constituição, um dos principais objetivos de seu mandato. O presidente escapou por pouco, já que a vitória do "A Favor" o teria deixado em uma posição delicada, mas se no dia em que assumiu o cargo nos dissessem que em seu mandato não haveria uma nova carta magna, todos concordaríamos que seria uma decepção notável.
Analisadas até a exaustão nos últimos dias as causas que levaram a uma nova rejeição, é hora de focar em como esse resultado influenciará o panorama político chileno. O resultado do segundo plebiscito constitucional tem impacto em duas áreas muito importantes: os horizontes constituintes do país e a reconfiguração da direita. Dois temas que provavelmente marcarão os próximos meses.
A primeira grande consequência desse resultado é que o Chile se despede do processo constituinte iniciado com os protestos em 2019. Este ciclo, que há muito tempo mostrava sinais de esgotamento, encerrou-se definitivamente com uma segunda etapa do processo marcada pela indiferença e pelo cansaço. Os tempos em que uma ampla maioria da população se entusiasmava para redigir uma nova Constituição estão distantes, e agora inicia-se uma fase em que, como afirmam do governo, é hora de se concentrar em outras questões.
O processo constituinte se encerra aqui por dois motivos palpáveis e dolorosos: a população não o considera mais prioritário e ninguém está disposto a arriscar seu capital político em uma terceira tentativa. Pesquisas há meses vêm indicando a queda do interesse no processo, e temas como criminalidade, insegurança e inflação estão há muito tempo à frente das preocupações dos chilenos.
Não é apenas que as pessoas tenham outras prioridades, mas também deixaram de acreditar que uma nova carta magna possa resolver seus problemas. A última pesquisa do Centro de Estudos Políticos (CEP) reflete essa realidade, e enquanto durante o levante social (dezembro de 2019) 56% acreditava que um novo texto ajudaria a resolver os problemas do Chile, hoje esse número não chega a 20%.
Além da perda de interesse da população, há outro ponto fundamental no encerramento do processo: ninguém está disposto a se comprometer em uma empreitada de benefícios duvidosos. Até agora, o processo constituinte tem sido uma trituradora de capital político, e figuras tão relevantes quanto o presidente Gabriel Boric ou o líder da ultradireita José Antonio Kast sofreram as consequências.
Boric se envolveu no primeiro plebiscito quando mal completara alguns meses no cargo, e a estrondosa derrota da proposta causou uma forte queda em sua popularidade, obrigando-o a reformar profundamente o governo e a se apoiar na centro-esquerda tradicional. Nessa segunda tentativa, o principal prejudicado foi Kast, que à medida que o processo avançava, perdeu muito impulso nas pesquisas, enfrentou uma divisão em seu partido e está cada vez mais questionado internamente. Com esse histórico, nem o governo nem ninguém em todo o espectro político chileno quer arriscar ressuscitar um processo que hoje em dia conta com pouco apoio social.
Parece que a Constituição de Pinochet continuará regendo o país por muitos anos além do esperado. A derrota política e social que isso representa é evidente. A reflexão a ser feita é como se chegou a uma situação como essa, vindo de onde se vinha. Quatro anos após um levante social que levou metade do país às ruas e três anos após 80% dos eleitores chilenos votarem no referendo para iniciar um processo constituinte, o resultado é que o Chile ficará com a Constituição que tanto contestou na época. Passarão anos até que as condições para iniciar um novo processo constituinte se apresentem novamente, e após dois fracassos na última década - o de Bachelet em 2014 e o atual - parece que a Constituição de Pinochet continuará regendo o país por muitos anos além do esperado. A derrota política e social que isso representa é evidente.
A outra grande consequência que o resultado do plebiscito pode ter é uma possível reconfiguração na relação das direitas chilenas. Nos últimos meses, no Chile, ocorreu um caso paradigmático de subordinação das direitas moderadas ao programa e à agenda da direita radical. A vitória de José Antonio Kast no primeiro turno de 2021 e seu confronto com Gabriel Boric no segundo turno abriram o caminho para uma tendência que se consolidou com os resultados da eleição para a segunda câmara constituinte, onde os ultraconservadores foram a força mais votada.
Esse resultado fez com que os republicanos de Kast liderassem esta segunda etapa do processo constituinte. Com 22 dos 50 conselheiros na câmara, a ultradireita pôde redigir um texto alinhado aos seus interesses, apoiando-se nos 11 assentos do centro-direita para excluir a esquerda dos pontos mais espinhosos do texto.
No entanto, esse protagonismo agora se voltou contra eles após a derrota do texto nas urnas. José Antonio Kast foi apontado como o principal responsável, e nessa segunda etapa nem conseguiu manter a unidade entre suas próprias fileiras. A cisão de parte de seu partido liderada pelo senador Rojo Edwards se soma à lista de problemas do candidato ultra, cuja proposta foi derrotada com números muito semelhantes aos que ele mesmo obteve no segundo turno das eleições presidenciais.
Diante dessa situação, a relação entre os dois partidos de direita pode mudar. Até então, a direita moderada chilena havia sido "obrigada pelas circunstâncias" a se submeter aos desígnios de Kast, já que não apoiá-lo no segundo turno ou alinhar-se com a esquerda na redação da Constituição poderia ter custos em seu eleitorado. No entanto, agora a situação é diferente, pois muitas vozes começam a apontar que Kast pode ser um fardo para as aspirações conservadoras no poder.
A derrota nas urnas com números semelhantes aos do segundo turno contra Boric coloca Kast sob os holofotes, e algumas vozes da direita moderada começam a dizer que sua figura enfrenta muitas adversidades e que sua estratégia tem um teto eleitoral de 45%. Essas teses defendem que a submissão da centro-direita ao programa de Kast é contraproducente e que ela deveria se distanciar o mais rápido possível para liderar o espaço nas eleições presidenciais de 2025.
A vitória do "Contra" não causou nenhum terremoto no mapa político, como aconteceu com a rejeição em setembro de 2022. No entanto, suas sequelas serão mais duradouras do que inicialmente poderia parecer. A consolidação da Constituição de 1980 e o possível retorno da direita tradicional ao comando do espaço conservador são as duas grandes consequências que esse resultado poderia ter. Um retorno à ordem que ninguém teria previsto alguns anos atrás, mas que, após inúmeros erros e derrotas, hoje é uma realidade. Temos Constituição de Pinochet para um longo período.
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Chile. Temos a Constituição de Pinochet para um longo período - Instituto Humanitas Unisinos - IHU