14 Dezembro 2023
"Para enfrentar essa miríade de desafios, é necessária uma mudança de mentalidade, de uma mentalidade em que as fronteiras, o território e os bens de uma nação são quase a única coisa que importa, para uma mentalidade em que vemos os benefícios mútuos e o bem público da ação coletiva e do compartilhamento de responsabilidades. Cooperação não é igual a capitulação, e compaixão não é fraqueza".
O artigo é do alto comissário do ACNUR, Filippo Grandi, publicado por The Guardian, 10-12-2023, e reproduzido por ACNUR, 11-12-2023.
Em uma época de múltiplos conflitos, profundas divisões geopolíticas e números crescentes de pessoas forçadas a deixar suas casas, afirmar que uma conferência internacional pode encontrar soluções para todas as pessoas refugiadas do mundo pode parecer um exagero na definição de otimismo.
De acordo com nossas últimas estimativas, há 36,4 milhões de pessoas refugiadas em todo o mundo, em uma população total de deslocados (incluindo deslocados internamente) de impressionantes 114 milhões. Essa população global refugiada dobrou nos últimos sete anos, um reflexo da violência e das violações dos direitos humanos que parecem estar afligindo mais e mais países.
Ao mesmo tempo, muitos Estados estão cortando a ajuda humanitária e os orçamentos de desenvolvimento. E, em vez de esforços para abordar as causas básicas do deslocamento, ouvimos discursos duros – principalmente de Estados ricos e com recursos abundantes – sobre rejeitar pessoas de fora, dificultando a busca pelo direito ao asilo e transferindo a responsabilidade para outros.
Portanto, pode parecer um momento pouco auspicioso para a realização do segundo Fórum Global sobre Refugiados, que ocorrerá em Genebra nesta semana. Mas eu discordo. O Fórum é um momento muito necessário de unidade global, no qual aqueles que estão determinados a continuar buscando soluções se reunirão para enfrentar o enorme desafio do deslocamento forçado.
Uma série de participantes – Estados, setor privado e fundações beneficentes, instituições financeiras internacionais, agências da ONU, organizações humanitárias e de desenvolvimento de todos os portes, autoridades locais e municipais, ONGs, organizações lideradas por refugiados, grupos religiosos e outros – apresentarão compromissos e contribuições concretas e transformadoras e farão um balanço do progresso alcançado desde o primeiro fórum em 2019.
Compartilhar responsabilidades é fundamental. Atualmente, quase 75% das pessoas refugiadas estão em países vizinhos aos seus, principalmente em países de baixa e média renda. Esses países fazem o que podem, geralmente com recursos limitados, mas merecem um apoio internacional muito maior para manter essa generosidade.
Esse apoio pode assumir várias formas: assistência financeira, material ou técnica; locais para reassentamento e outros caminhos para admissão em terceiros países, permitindo que os países com melhores recursos compartilhem a responsabilidade pelas pessoas refugiadas; medidas para evitar conflitos e promover a paz; e outras ações, como políticas e práticas para promover a inclusão e a proteção delas, ou um melhor monitoramento e pesquisa.
Como sempre, nos esforçaremos a fim de criar as condições para que pessoas refugiadas retornem aos seus lares com segurança e dignidade, inclusive enfrentando desafios de longa data, como os enfrentados por pessoas afegãs, rohingyas, centro-americanas, somalis, sul-sudanesas, centro-africanas, sírias e muitas outras, buscando maneiras inovadoras e responsivas de apoiá-las e protegê-las em circunstâncias muitas vezes difíceis e imperfeitas.
Estamos fazendo isso para que todas as crianças refugiadas possam ir à escola; para que as pessoas refugiadas possam usar suas habilidades e conhecimentos para contribuir com as novas sociedades; e para que as pessoas refugiadas, um sintoma da violência e dos conflitos, possam ser agentes da paz. Mas também estamos fazendo isso porque elas correm o risco constante de serem esquecidas, e nós não permitiremos que isso aconteça.
No início deste ano, quando forças rivais começaram a lutar no Sudão, a violência foi notícia de primeira página. Quando visitei o vizinho Sudão do Sul no verão – observando como a prestação de serviços de saúde, saneamento e abrigo foi levada ao limite pelo grande número de pessoas forçadas a se deslocar – a atenção internacional já estava diminuindo.
Agora, após a terrível violência em Israel e no Território Palestino Ocupado, o mundo está em silêncio sobre o Sudão, assim como está em silêncio sobre os conflitos na Etiópia, na Síria, no Afeganistão, na República Democrática do Congo, no Sahel e em muitos outros lugares. Até mesmo a guerra na Ucrânia, que forçou milhões de pessoas a deixarem suas casas, está perdendo espaço na agenda de notícias.
No entanto, essa nova rodada do conflito israelense-palestino nos deu uma evidência terrível do que acontece quando os elementos essenciais para uma paz justa e duradoura são negligenciados. Espasmos de violência seguidos por calmarias temporárias se tornaram uma “estratégia”. Que grave erro de cálculo foi esse, e como eu gostaria que ele não estivesse se repetindo em outros lugares.
Outros desafios e crises são abundantes, e cada novo desafio coloca os demais em segundo plano. Os naufrágios e afogamentos de pessoas refugiadas e migrantes passam quase sem comentários. A perseguição, os abusos dos direitos humanos e as violações do direito internacional tornaram-se a norma, não a exceção. Mesmo com o ímpeto da COP28, muito pouco é feito para lidar com a seca, a fome, as enchentes, os incêndios e outras calamidades ambientais que afligem as regiões que abrigam milhares, talvez milhões de pessoas refugiadas ao lado das populações locais.
Para enfrentar essa miríade de desafios, é necessária uma mudança de mentalidade, de uma mentalidade em que as fronteiras, o território e os bens de uma nação são quase a única coisa que importa, para uma mentalidade em que vemos os benefícios mútuos e o bem público da ação coletiva e do compartilhamento de responsabilidades. Cooperação não é igual a capitulação, e compaixão não é fraqueza.
Cada pessoa refugiada é um sintoma do nosso fracasso coletivo em garantir a paz e a segurança. As situações de refugiados não precisam se transformar em crises se trabalharmos juntos para enfrentá-las e gerenciá-las. Todos podem fazer sua parte, e eu os convido a fazer isso.
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Refugiados são um sintoma de fracasso coletivo - somente trabalhando juntos será possível enfrentar as causas básicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU