14 Agosto 2023
Frente ao drama dos migrantes, precisamos nos livrar daquela falsa consciência que nos engana, fazendo-nos passar a vida em busca de uma felicidade consumista que nunca conseguimos alcançar e aferrar plenamente, porque a nossa verdadeira felicidade não está aí, mas na empatia.
O comentário é do padre italiano Mattia Ferrari, capelão da ONG Mediterranea Saving Humans, na linha de frente do apoio aos migrantes. O artigo foi publicado por La Stampa, 11-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Tenham empatia conosco!”: esse é o grito desesperado que vem do último vídeo dos migrantes deportados da Tunísia para o deserto na fronteira com a Líbia. O movimento social de migrantes Refugees in Libya informou, ao mostrar os vídeos, que centenas de pessoas ficaram retidas durante seis semanas na passagem de Ras Ajdir, 174 no total, incluindo 14 crianças, presas em um espaço de 10 por 5 metros e cercadas por arame farpado, enquanto, em outro local, a dois quilômetros de distância, mais de 200 pessoas estão presas, além de outras tantas na vizinha Al-Assa.
Pessoas presas em condições desumanas, com as crianças sendo forçadas a beber água do mar. “Ajudem-nos, estamos morrendo um após o outro”, gritavam essas pessoas nas últimas semanas. O grito delas não foi ouvido, e assim muitos delas morreram nesse meio tempo.
Segundo a Al Jazeera, há atualmente pelo menos 27 vítimas, entre elas Fati e a pequena Marie, cuja história foi contada pelo La Stampa. Na tarde do dia 10 de agosto, a Refugees in Libya informou que o Ministério do Interior da Líbia anunciou que havia transferido 174 pessoas para a região de Al-Assa, para serem repatriadas para seus países de origem.
Essa violência brutal é consequência das políticas europeias: o memorando assinado no mês passado entre a Itália e a Tunísia não contempla o respeito aos direitos humanos, enquanto prevê apoio econômico em troca da contenção dos migrantes.
Esse é o ápice da violência desencadeada contra as pessoas do Sul do mundo que escolheram buscar uma vida digna batendo às portas daquele Ocidente colonizador que depredou e continua depredando os povos mais pobres e a natureza.
Nas últimas horas, a Tunísia e a Líbia anunciaram um acordo para resolver o nó dos migrantes africanos deportados para a fronteira entre os dois países, segundo o qual a Tunísia se encarregaria de um grupo de 76 homens, 42 mulheres e oito crianças, enquanto a Líbia se encarregaria dos 150 migrantes restantes. No entanto, os números não correspondem aos relatados pelos ativistas, segundo os quais os deportados seriam cerca de 600. Além disso, esse gesto da Líbia corre o risco de significar simplesmente a transferência do deserto para os campos de concentração.
O relatório do Unicef divulgado no dia 8 de agosto reitera que os migrantes e os refugiados na Líbia continuam sofrendo violações sistemáticas dos direitos humanos e informa que se estima que cerca de 30% da população nos centros de detenção líbios são compostos por crianças.
Enquanto isso, aumentam também os massacres no mar. Nos últimos dias, houve pelo menos quatro naufrágios, com um total de mais de 100 vítimas. O último naufrágio, ocorrido na quarta-feira, 9 de agosto, matou afogadas 41 pessoas, incluindo três crianças.
A Alarm Phone já tinha disparado o alerta na sexta-feira, 4 de agosto, informando que tinha avisado todas as instituições para a presença no mar de cerca de 20 pequenas embarcações em perigo devido ao mau tempo iminente. A nossa indiferença mata.
Segundo o Missing Migrants Project da Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 1.800 pessoas já morreram e desapareceram ao longo da rota neste ano. Mas o Mediterrâneo é apenas o segundo maior cemitério, como afirmou o Papa Francisco no domingo passado na coletiva de imprensa a bordo do avião: “O Mediterrâneo é um cemitério, mas não é o maior cemitério. O maior cemitério é o norte da África”.
A nossa culpa na Itália é grande, porque somos nós, com os acordos assinados com a Líbia em 2017 e depois sempre renovados, e com os acordos assinados com a Tunísia neste ano, que causamos essa violência desumana.
Há duas semanas, uma menina de 14 anos do grupo de escoteiros para o qual eu presto serviço, o Roma 147, ao saber dos migrantes deportados entre a Tunísia e a Líbia, me perguntou: “Como é possível que ninguém faça nada para salvar essas pessoas? É incrível que estejamos tolerando tudo isso!”. A garota tem razão. Se, diante de tudo isso as nossas consciências se sentem tranquilas, significa que estão doentes.
De fato, o sistema capitalista e patriarcal tenta domesticar as nossas consciências, para que acreditem que a felicidade está nos produtos a serem comprados e consumidos, e no bem-estar material individual. Assim nasce aquela que um dos mestres inspiradores de 1968, Herbert Marcuse, definia como falsa consciência.
Se essa for a nossa consciência, então nunca haverá espaço para o grito dos migrantes, que assim permanecerão presos nos campos de concentração.
Mas, ao mesmo tempo, nós também ficaremos presos, prisioneiros dessa falsa consciência que nos engana, fazendo-nos passar a vida em busca de uma felicidade consumista que nunca conseguimos alcançar e aferrar plenamente, porque a nossa verdadeira felicidade não está aí, mas na empatia.
A prova disso está na alegria que os jovens manifestaram na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de Lisboa ou nas outras experiências que vão se concretizando neste verão europeu, como os acampamentos de escoteiros, os acampamentos da Libera e muitas outras.
Nos últimos dias, por exemplo, eu tive a alegria de participar de uma das experiências que constroem ativamente outra sociedade: o Revolution Camp, o acampamento estudantil organizado todos os anos em nível nacional pela Rede dos Estudantes e pela União dos Universitários.
O acampamento foi realizado na Fattoria dei Sogni, administrada pela cooperativa social Al di là dei Sogni e realizada na propriedade confiscada da Camorra “Alberto Varone”, em Maiano di Sessa Aurunca, na região de Caserta.
Lá, onde se luta contra a máfia, milhares de estudantes do Ensino Médio e Superior estiveram juntos e quiseram ouvir muitas experiências, como as da Libera, Mediterranea, Spin Time de Roma, LGBTQIA+ e muitas outras. Todas experiências unidas pelo amor visceral que nos leva a lutar e a construir ativamente, a partir dos nossos corpos e das nossas relações, outro mundo possível, onde a fraternidade se faz carne, gera um novo paradigma político e leva à alegria verdadeira.
É preciso descolonizar corpos e cérebros, como diz Vandana Shiva. A chave para fazer isso é aquela empatia que nos liberta das amarras que esse sistema impõe aos nossos corações e às nossas vidas, e nos leva a construir outra sociedade, aquela que se vislumbrou nos últimos dias no Revolution Camp e em outras realidades.
Eis, então, que o grito dos migrantes deportados para o deserto entre a Tunísia e a Líbia, “Tenham empatia conosco!”, mostra o caminho para salvar não só eles, mas também nós mesmos, todos nós. Que os políticos e a sociedade inteira tenham a coragem de acolher esse grito, deixem de tratar os migrantes como objeto e reconheçam a eles sua dignidade de sujeitos, evacuem-nos e tratem-nos como verdadeiros interlocutores: só assim, juntos, animados pela empatia e pela fraternidade encarnada, encontraremos os caminhos para enfrentar a crise atual, construindo juntos uma nova sociedade, verdadeiramente feliz, como os jovens estão nos ensinando.
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Aquelas crianças separadas com arame farpado nos campos de refugiados na Tunísia. Artigo de Mattia Ferrari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU