20 Outubro 2023
"Não há nada que deva ser feito que esteja fora da cultura judaica e muçulmana; pelo contrário, está escrito em Isaías 61, Jesus o repropôs na sinagoga de Nazaré e é afirmado na teologia islâmica. E também o Papa concorda contra toda a tradição da Cristandade armada, “de Constantino a Hitler, como diz o historiador Heer, bem conhecido do Papa Francisco", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 19-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, se essas alternativas não forem postas em prática, nem mesmo nós nos salvaremos. Porque todos somos responsáveis: 'todos se desviaram, todos são corruptos; ninguém mais faz o bem, nem um sequer' (Salmos), 'Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só' (Paulo). São ditados sapienciais, laicos, não confessionais.
Eis o artigo.
Após o Holocausto infligido pela Europa do século XX ao povo judeu, o mundo disse: "Nunca mais!" e estabeleceu que os povos não devem matar-se uns aos outros, mas tornar-se concidadãos e irmãos. Com a fundação da ONU, o mundo esclareceu as suas ideias sobre o crime de genocídio e a sua singularidade em relação a toda outra forma de carnificina, matança ou massacre: uma diferença tão forte que inventou um novo nome para isso, dado que não existia a palavra nem o crime de genocídio antes da resolução das Nações Unidas de 11 de dezembro de 1946, seguida depois pela Convenção Internacional de 1948. Esta definia o genocídio, independentemente de ter sido perpetrado em tempos de paz ou em tempos de guerra, como cada um dos atos que fossem cometidos “com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal”. Entre esses atos era explicitamente mencionado “o fato de sujeitar deliberadamente o grupo a condições de vida destinadas a provocar a sua destruição física, total ou parcial”. Também era considerado crime “a tentativa de genocídio” e não eram chamados de “escudos humanos”, como são as vítimas do ataque, os membros do grupo mortos ou expostos a “lesões graves à sua integridade física ou mental”.
Instruídos por tal estatuto, podemos chamar pelo nome os eventos que estão dilacerando Israel e Gaza, desde a torpe carnificina do Hamas à terra arrasada fruto da punição coletiva de Israel, até ao massacre dos inocentes doentes e feridos no hospital de Gaza.
No meio da guerra é impossível calcular um balanço completo das vítimas; sabe-se com certeza que 1.200 israelenses foram mortos no ataque do Hamas e cerca de 200 foram feitos reféns. Quanto aos palestinos, toda a população de Gaza, tornada objeto da retaliação israelense, soma 2.200.000 pessoas, das quais mais de metade são menores e não têm qualquer responsabilidade pelas ações do Hamas, tendo nascido depois desse grupo ter vencido as eleições em 2006.
Infelizmente, nem a Europa nem o Ocidente têm condições de fazer algo para aliviar os sofrimentos em curso e promover a reconciliação e a paz. Aqui entre nós não nada além de uma briga para demonizar um ou outro, não há visão capaz de vislumbrar um futuro diferente. É claro, porém, que, uma vez fracassada a solução de dois povos em dois Estados, buscada em vão nas últimas décadas, será necessário pôr em campo novas ideias e propor novos arranjos, mesmo para além dos modelos existentes.
Não é dito que a soberania dos Estados deva continuar a ser aquela incondicional do modelo hobbesiano, nem que os conflitos identitários se possam resolver apenas pela perda das respetivas peculiaridades religiosas e culturais de acordo com o modelo de secularização ocidental. E se por um lado a identificação de Israel como Estado Judeu poderia levar a uma interpretação mais magnânima e também mais fiel ao âmago das Escrituras do que a forma atual do Estado de Israel, no Islã pode tornar-se uma cultura comum e imune aos focos de extremismo violento a visão recentemente enunciada no documento islâmico-cristão de Abu Dabi na carta que 126 líderes e estudiosos muçulmanos em 2014 enviaram para Al-Baghdadi e ao ISIS, reivindicando a primazia da misericórdia no Alcorão e uma leitura historicizada das guerras religiosas passadas com a afirmação de que o Islã não avança com a espada: “É proibido unir a ‘espada’ e, portanto, a raiva e o rigor, com a ‘misericórdia’ – dizia a carta – “Também não é lícito subordinar a ideia de ‘misericórdia para todos os mundos’ (atribuída a Maomé) à expressão ‘enviado com a espada’, porque isso seria o mesmo que dizer que a graça está subordinada à espada, o que é evidentemente falso. .. A Misericórdia que Maomé representa para todos os mundos não pode ser condicionada ao fato de ele ter empunhado a espada (num tempo, num contexto e por uma razão específicos). Não se trata aqui apenas de uma sutileza acadêmica...".
Portanto, não há nada que deva ser feito que esteja fora da cultura judaica e muçulmana; pelo contrário, está escrito em Isaías 61, Jesus o repropôs na sinagoga de Nazaré e é afirmado na teologia islâmica. E também o Papa concorda contra toda a tradição da Cristandade armada, “de Constantino a Hitler, como diz o historiador Heer, bem conhecido do Papa Francisco.
Se essas alternativas não forem postas em prática, nem mesmo nós nos salvaremos. Porque todos somos responsáveis: “todos se desviaram, todos são corruptos; ninguém mais faz o bem, nem um sequer” (Salmos), “Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” (Paulo). São ditados sapienciais, laicos, não confessionais.
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Que futuro. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU