Trazer a igreja de volta ao seu primeiro amor. Entrevista com Paolo Ricca

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05 Junho 2023

Encontrar-se com o pastor Paolo Ricca, figura eminente do mundo evangélico não só italiano, é sempre uma experiência que enriquece, não só pela força do seu pensamento e pela envergadura teológica do mestre, a clareza absoluta da exposição sinal de um forte rigor intelectual e de um grande respeito por todos que o ouvem e leem, mas, eu diria, antes mesmo disso, porque se percebe a paixão do homem e a grande fé que acolheu e transmitiu durante a sua intensa vida de homem da igreja e de estudo. Em poucos outros senti essa força evangélica contagiosa como em Paolo Ricca.

Às vezes, em homens e mulheres menos conhecidos, mas cheios de fé, nos simples que estão salvando o mundo sem o perceber como escreve Borges na esplêndida lírica Los Justos. Por outro lado, e peço desculpas por esta pouco jornalística confissão pessoal, o mundo evangélico foi para mim, nascido no ambiente católico, lugar de amizade com pastores e com irmãos e irmãs que sempre senti como uma extraordinária riqueza na minha tentativa de me tornar um cristão e em cujos lugares de culto e vida sempre me senti em casa.

A entrevista é de Mariano Borgognoni, publicada por Rocca nº. 9, 01-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Gostaria de começar, professor Ricca, da crua realidade que estamos vivendo com uma feroz guerra justamente no nosso continente, aquele em cuja Constituição, posteriormente abortada, desejaríamos ter escrito a referência às raízes cristãs em letras garrafais. Em seu belíssimo texto "Dio. Apologia” fala-nos das muitas imagens de Deus e das críticas que lhe são dirigidas. Mas que imagem de Deus e dos cristãos emerge desse conflito?

Infelizmente, emerge a pior imagem de Deus e dos cristãos que se possa imaginar. Emerge o exato contrário do Deus anunciado pelos profetas de Israel, um Deus "árbitro entre muitos povos" (Isaías 2,4), ou “árbitro entre nações poderosas” (Miquéias 4,3), enquanto na guerra russo-ucraniana voltamos a ver um Deus que não é de forma alguma um "árbitro", mas, ao contrário, nacional, para não dizer nacionalista, um Deus russo de acordo com a Igreja Ortodoxa Russa e ucraniano de acordo com a Igreja Ortodoxa Ucraniana.

Assistimos impotentes a uma dupla nacionalização de Deus, um Deus "dos exércitos" no sentido literal da palavra, um Deus guerreiro e beligerante que – repito – é exatamente o oposto do Deus de Jesus, que declara "bem-aventurados" e "filhos de Deus" os "pacificadores", ou seja, aqueles que não falam da paz, mas promovem a paz (Mateus 5,9), que também é o Deus do apóstolo Paulo que surpreendentemente nos descreve a “armadura de Deus” (como se Deus fosse um guerreiro!), a partir da qual o apóstolo monta um verdadeiro strip-tease do legionário romano, que ele idealmente despoja de cada "pedaço" de sua armadura bem testada, para depois revesti-lo com armas completamente diferentes, ou seja, com a verdade como um cinto, a justiça como uma couraça, o zelo dado pelo evangelho da paz como calçados, a fé como escudo, a salvação como elmo, o Espírito que é a palavra de Deus como espada (Efésios 6,14-17).

De tudo isso, ou seja, do Deus acreditado e confessado por Jesus, por Paulo e – até prova em contrário - pela fé todos os cristãos, não vimos nem mesmo a sombra. Tanto que se Deus tivesse realmente que ser assim como aparece neste conflito, um Deus nacionalista e belicista – a única opção possível seria o ateísmo absoluto. Se até agora não abandonamos a fé cristã, é porque estamos profundamente convencidos de que Deus é completamente diferente do que emerge deste infeliz conflito.

O que acontece com a dimensão do ecumenismo nessa imagem?

Quanto aos cristãos, um discurso semelhante deve ser feito, em duas frentes: aquela ecumênica e aquela da paz (afinal intimamente ligadas entre si).

Na frente ecumênica, o conflito revelou que Igrejas irmãs no sentido próprio e pleno do termo, porque professam e vivem a mesma fé cristã segundo a mesma tradição ortodoxa, não foram capazes de fazer valer a sua fraternidade (ou sororidade) fundamental e vital, e dramaticamente se separaram: a sua pertença a duas nações diferentes sufocou em ambas a pertença comum à única Igreja, ou seja, ao único povo de Deus. Uma derrota inesperada, que suscita infinita tristeza e é motivo de confusão e humilhação para todo o cristianismo.

Na frente do serviço à paz, registrou-se o enésimo, completo fracasso cristão: a impotência da Igreja para ser o que deveria ser, mas nunca foi em vinte séculos de história: um corpo de paz entre os povos.

Se a Igreja (quando digo “Igreja”, quero dizer todas as Igrejas vistas como uma única, grande Comunidade espalhada no mundo) é, como afirma ser, o "corpo de Cristo" na terra, e Cristo é acreditado e confessado como "príncipe da paz", a Igreja só pode ser o "corpo" do príncipe da paz, portanto, "corpo de paz". A palavra "corpo" deve ser levada muito a sério: não "corpo místico" (do qual a Escritura nunca fala), nem mesmo "corpo espiritual" que será o da ressurreição (1Coríntios 15,44), mas "corpo", entendido simples e fisicamente, como físico era aquele do filho de Maria.

Assim são as almas e corpos físicos dos cristãos e das cristãs (não as almas sem os corpos!) que constituem o "corpo de Cristo" como "corpo de paz". Mas como pode o corpo de Cristo ser concretamente entre os povos um corpo de paz?

Qual poderia ser uma proposta profética e evangélica para fazer e implementar?

A única "escolha evangélica profética" a fazer é - a meu ver obrigatória – aquela da não-violência.

Seria uma revolução, porque essa escolha a Igreja nunca fez. Seria uma virada de época, nasceria uma Igreja bastante diferente. Cada paróquia ou comunidade deveria tornar-se um ginásio de não-violência, no qual se ensina a teoria dessa disciplina e se aprendem as técnicas pelas quais é praticada. Todas essas coisas são desconhecidas dos cristãos e não é certo uma lição que possa ser aprendida em pouco tempo.

Mestres podem ser, nesse âmbito, Gandhi e Martin Luther King, e na Itália também podemos pensar em Dom Lorenzo Milani com seu discurso aos capelães militares, de muitas décadas atrás. Se a Igreja realmente quer ser um "corpo de paz" e assim superar a sua impotência crônica para impedir a guerra, ou seja, o homicídio coletivo planejado e praticado (homicídio que, espiritualmente, é ao mesmo tempo também suicídio!), não há outro caminho senão escolher a não-violência. A diplomacia é importante, mas nunca foi capaz de impedir as guerras.

Isso só pode ser obtido por um "corpo de paz", que é algo diferente de um corpo diplomático. Adotando a não-violência, a Igreja arrebata as armas das mãos de seus filhos e, sobretudo, os impede de atirar, matar e destruir. Em segundo lugar, a Igreja apresenta-se como "corpo de paz" no meio de exércitos postos em campo e os impede de se enfrentar, justamente como fez aquele homem usando apenas uma camisa que com o próprio corpo se colocou diante de quatro tanques gigantescos na praça Tiananmen na China, e os deteve. Aquele homem é o ícone (como se fala hoje) da Igreja “corpo de paz". Ou a Igreja se torna isso ou continuará sendo a enfermeira que cuida dos feridos e enterra os mortos, mas não impede nem uns nem os outros.

Neste fechamento étnico, nacionalista das Igrejas (não há apenas Kirill) não haverá necessidade de redescobrir o caráter constitutivamente católico do cristianismo? Eu lhe pergunto isso também porque o ouvi falar (no Vaticano!) do carisma da universalidade, de alguma forma guardado pela Igreja de Roma. É possível imaginar uma forma de serviço à unidade dos cristãos, no reconhecimento das diversidades? Também porque a sua divisão enfraquece sua credibilidade em uma fase já marcada por uma crescente marginalidade.

A catolicidade é até mais que um carisma, é uma estrutura permanente e sustentadora da Igreja cristã, que desde seus primórdios é "una, sancta catholica, apostolica". E realmente é surpreendente constatar que sua consciência de ser uma comunidade universal estava presente no Igreja do primeiro século que, numericamente, era muito pequena: uma vasta diáspora de pequenos grupos espalhados por todo o imenso Império Romano.

Agora me parece evidente que não seja casual que aquela de Roma seja a única grande Igreja que manteve em seu nome oficial o adjetivo “católica” e também que seja a única que fez do papado – que desde sempre declarou estar a serviço da unidade cristã - o pivô institucional de todo o edifício católico romano, inclusive fazendo dele, com o Vaticano I, um dogma, isto é, um artigo de fé.

Mas aconteceu, na história da Igreja, que justamente o papado tenha se tornado ocasião e até mesmo artífice ou concausa de divisão entre cristãos nos séculos XI, XVI e novamente no século XIX; e seja ainda hoje um dos maiores obstáculos para a recomposição da unidade cristã, independentemente das pessoas que desempenham aquele papel. Precisamente porque a Igreja de Roma manteve mais do que todas as outras a consciência de sua universalidade e sempre considerou que o papado fosse uma instituição "a serviço da unidade cristã" (e não apenas a serviço da unidade católica romana), parece-me que a ela cabe a tarefa repensar radicalmente o papado – tratar-se-ia realmente de refundá-lo - para realmente fazer dele um instrumento a serviço da unidade dos cristãos, e não só daquela católica, como tem sido até agora, há mais de mil anos.

Como imaginar uma tarefa tão árdua?

Não é fácil imaginar se e como essa refundação poderia ser possível. Mas é fato que dois papas, João Paulo II e Francisco, falaram publicamente em documentos oficiais de uma necessária e desejável "conversão de Pedro", referindo-se obviamente não à pessoa dos pontífices, mas à instituição que eles representam. Se essa "conversão" (palavra extremamente exigente!) realmente acontecesse, sem dúvida abriria novas perspectivas inéditas na história do papado.

Já que estamos no tema do ecumenismo, para o desenvolvimento do qual o senhor muito contribuiu, permita-me uma pergunta que espero não ser apenas uma curiosidade. O que o Pastor Ricca aprecia particularmente na tradição católica e na ortodoxa e qual considera o dom mais precioso que a tradição protestante pode oferecer aos cristãos do nosso tempo?

Da tradição católica aprecio o esforço para manter unidas universalidade e unidade herdada do Império Romano (mas sem recorrer ao exército!) dois grandes valores humanos e cristãos, porque a humanidade é uma só apesar de ser diferente, e é a mesma em todos os lugares, mesmo com todas as diferenças que a distinguem.

Também no âmbito do Conselho Ecumênico das Igrejas se vivem esses dois valores, mas a Igreja Católica persegue-os de maneira sistemática, embora dentro da sua parcialidade confessional. Da tradição ortodoxa, sobretudo a liturgia que parece ter sido composta no limiar entre a terra e o céu, entre tempo e eternidade, e que na sua celebração empenha admiravelmente todos os cinco sentidos humanos, envolvendo, juntamente com a alma, também o corpo, “templo do Espírito" (1 Coríntios 6,19). Da tradição protestante, o dom mais precioso é, sem dúvida, a centralidade e autoridade superior reconhecida à Escritura para a vida da Igreja e da fé. Mas também uma sinodalidade não episódica, mas congênita à própria Igreja, que a vive em estruturas permanentes de governo e de tomada de decisões.

Que passos foram dados especialmente depois do Concílio e quais são os principais nós a desatar para ter uma partilha mais plena entre cristãos de diferentes confissões? Também uma hospitalidade Eucaristia que para tantos batizados certamente não seria um problema?

Depois do Concílio, além do clima geral de relação entre as Igrejas, melhorou enormemente a qualidade das relações também e precisamente no nível de base. A hospitalidade eucarística é uma possibilidade real que, no entanto, ainda é proibida pelas autoridades católicas e está completamente excluída – eu diria quase execrada! – pelas Igrejas Ortodoxas que a consideram uma prática herética. No entanto, como explica a bela palavra “hospitalidade”, no fundo nada mais é do que reconhecermos juntos que, à mesa de Senhor, todos somos convidados por Ele! E, como diz a liturgia católica, nenhum de nós é digno de aproximar-se daquela mesa, nem ousaria aproximar-se se não tivesse ouvido o convite que Jesus dirige a todos, até a Judas! Talvez nenhuma Igreja tenha ainda refletido o suficiente sobre o fato, testemunhado por todos os Evangelhos, que Jesus quis celebrar a Última Ceia também com Judas. É provável que se essa reflexão acontecesse, tantas barreiras não poderiam deixar de desaparecer.

Vou me manter sobre a atualidade. No país onde governa uma mãe cristã, acontece que a 100 metros da costa de Cutro afunda um barco e com ele a vida de tantas pessoas, sobretudo meninas e meninos. Fome, guerras, mudanças climáticas e regimes opressivos empurram milhões das pessoas a migrações justamente bíblicas. Existe uma palavra que não soe retórica e que como cristãos, podemos dizer com credibilidade?

A única palavra que poderia não soar retórica na situação ilustrada pela tragédia de Cutro é uma confissão de pecado por parte do povo italiano cuja maioria ainda se declara cristã e que confiou a direção do país a um governo incapaz de reconhecer seus próprios erros ou suas próprias deficiências que, indubitavelmente, contribuíram para a ocorrência daquela tragédia.

Em seu texto, o senhor aborda desde o início todas as principais objeções do pensamento moderno à fé em Deus. Quantas delas contribuíram para purificar a imagem de Deus que dominou por séculos no ambiente cristão? Depois disso, permaneceu o mistério da existência, também para a filosofia (por que o ser e não o nada?), que legitima a razoabilidade do desafio teológico. Mas a tarefa da teologia não seria talvez eliminar as falsas imagens de Deus mais que as construir em positivo? Nesse sentido, não é uma espécie de “gaia ciência”?

Que eu saiba, a Europa é o único continente do mundo no qual, aproximadamente a partir do século XVII em diante, houve uma crítica à religião, portanto sobretudo ao cristianismo, que não é excessivo definir implacável ou feroz, mesmo que uma parte das críticas objetivassem mais as Igrejas do que a Deus. A contestação foi, em certo sentido, benéfica porque geralmente tratou-se de críticas sérias e, em parte, fundadas. No entanto, elas documentavam um desafeto crescente e generalizado pelo cristianismo e obrigaram os cristãos a iniciar um processo de autocrítica duplo: aquele da distância entre a mensagem cristã e a vivência cristã, e aquele da coerência (ou não!) entre a atual doutrina e práxis cristãs e o ensinamento e a vida de Jesus de Nazaré, em cujo nome ainda hoje a Igreja fala e age.

E é também tarefa da teologia?

Essa é também, em todas as épocas, a tarefa da teologia: não a de fazer a apologia da Igreja assim como é, independentemente do que diga ou faça, à insígnia de um fatal “a Igreja tem sempre razão”, que seria uma espécie de suicídio da teologia; sua função é ser uma sentinela, que incansavelmente esforça-se por reconduzir a Igreja ao seu "primeiro amor", tão fácil de abandonar, como já aconteceu no século I à Igreja de Éfeso (Apocalipse 2,4), ou seja, reconduzi-la àquela Palavra evangélica da qual nasceu e graças à qual vive e sempre de novo revive. Tota vita et substantia ecclesiae est in verbo Dei (Lutero): "Toda a vida e substância da Igreja está na palavra de Deus".

Nesse sentido, a teologia que vive na Palavra e a seu serviço, não pode deixar de ser também uma “gaia ciência”, na esteira desta bela afirmação de Karl Barth (1934): “Entre todas as ciências a teologia é a mais bela, aquela que põe a mente e o coração em movimento no maior número de direções; aquela que mais se aproxima da realidade humana e proporciona o olhar mais claro sobre a verdade que toda ciência busca; aquela que mais se aproxima daquilo que o nobre e profundo nome de ‘Faculdade’ significa: uma paisagem com as perspectivas mais distantes ainda nítidas como as da Úmbria ou da Toscana, e uma obra de arte tão superior e tão bizarra como a catedral de Colônia ou Milão. Pobres teólogos ou pobres tempos na teologia aqueles que não tivessem notado nada de tudo isso!"

Deus é uma palavra que os homens carregaram de muitos significados, sobre os quais projetaram tantos desejos, que tentaram capturar fazendo dela um ídolo. E, por outro lado, dentro da mesma Escritura existem diferentes imagens de Deus. Como se regular como cristãos? E como ler de forma madura e inteligente a Bíblia?

É verdade que na Bíblia existem várias imagens de Deus, mas no final só existe uma: Jesus. É ele "a imagem do Deus invisível" (Colossenses 1,15; II Coríntios 4,4). “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito [...] é quem o deu a conhecer" (João 1,18). Jesus, a sua história, a sua a vida e o seu ensinamento, são o espelho no qual vemos refletida a realidade profunda de Deus.

Não é por acaso que o segundo dos Dez Mandamentos é a proibição de fazer uma imagem de Deus (seja que for), justamente porque o Deus que imaginamos é sempre um Deus imaginário, uma construção de nossos desejos ou das nossas frustrações ou medos. Nenhum de nós jamais teria imaginado um Deus humano, teríamos desejado que ele fosse o mais divino possível; não teríamos imaginado um Deus que nunca é tão divino como quando se torna homem, nunca poderíamos ter pensado que Deus pudesse e quisesse ser homem mortal, que o Criador quisesse se tornar criatura. Mas é o que aconteceu e nos leva a dizer que a única imagem de Deus é Jesus.

Na fase que alguém definiu como “agnosma” difuso, indiferença, colocação de Deus em stand by, onde não há mais contraposição militante em relação à religião (neste sentido penso que se possa dizer que o ateísmo também está em crise, para usar uma brincadeira: não existem mais os ateus de antigamente) por onde recomeçar a proclamar o Evangelho? Qual é o específico cristão que o subtrai à única dimensão ética, em relação à qual o cristianismo pode também ser útil, mas certamente não é necessário? Eu ouvi o senhor falar sobre a crise da fé de um abandono por parte de muitos daquilo que não conhecem. Achei uma expressão muito interessante. Pode explicar o que quer dizer?

É verdade que muitos pensam que Deus é tão insignificante que nem vale a pena se esforçar para negar sua existência: o fato dele existir ou não existir, não mudaria nada. Em vez disso, tudo muda. Aliás, na primeira década do século XXI assistimos a um ressurgimento do ateísmo militante, com o qual não estamos acostumados há muito tempo. Richard Dawkins, ilustre homem da ciência, escreveu em 2006 um grande livro de 400 páginas intitulado The God Delusion (Deus, um Delírio), e publicou-o com uma expectativa que o próprio autor formula nestes termos: “Se este livro funcionar do modo como espero, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem”. Quem conhece a língua inglesa sabe que delusion é, sim, parente de ilusão, mas também significa, além de "ilusão", também "mania", "fixação".

O autor especifica ainda mais sua ideia dizendo que, de acordo com o dicionário Microsoft Word, delusion indica uma crença falsa que persiste apesar das fortes evidências contrárias, particularmente como um sintoma de transtorno psiquiátrico, e concorda com um escritor estadunidense que diz: “A ilusão de que uma pessoa é vítima chama-se doença mental; a ilusão de que muitos são vítimas chama-se Religião”. Lendo esses discursos de nem vinte anos atrás, não parece que o ateísmo esteja em crise ou tenha parado de procurar prosélitos.

Mas qual Deus (deus) combatem esses "ateólogos"? Precisamente esse livro, como tantos outros do mesmo teor publicados depois de 2000 (ad exemplo Christopher Hitchens, Deus não é grande. Como a religião envenena tudo, Globo Livros 2016. Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto. A religião como fenômeno natural, Globo 2012.) portanto, em nosso século, demonstram que esses autores combatem contra um Deus que tem pouco ou nada a ver com o Deus que aprendemos a conhecer pelo menos "em parte" (1 Coríntios 13,9), através de sua história narrada na Bíblia e, mais do que nunca, através de Jesus de Nazaré.

Richard Dawkins declara expressamente que combate o Deus do Antigo Testamento, definido como “um valentão misógino, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, nocivo, megalomaníaco, sadomasoquista e maligno segundo o seu capricho” (p. 38). Inútil dizer que um Deus desse tipo não tem nada a ver com o Deus do Antigo Testamento, que foi também aquele de Jesus. O Deus como Dawkins o vê e descreve está tão longe da realidade de Deus que não consegue nem mesmo ser uma sua grotesca caricatura.

Mas, os cristãos, eles também conhecem bem, tanto quanto é possível, o que eles chamam de Deus?

Infelizmente, também no âmbito cristão há uma grande ignorância sobre Deus, até porque a própria Igreja pouco fala sobre esse tema. Assume que é conhecido e, portanto, não o ensina. A própria instrução catequética, em geral, é insuficiente. Contentamo-nos com um conhecimento superficial. Prega-se mais o amor ao próximo do que o amor a Deus, de modo que nem um nem outro é obtido; segundo Jesus, o amor a Deus é o fundamento e a razão do amor ao próximo.

Hoje reina na Igreja a Diaconia. Grande importância é dada ao imposto de 8/1000 repassado das declarações de renda. A diaconia é necessária e indispensável, mas não é o tema da pregação cristã. Jesus fez diaconia de manhã à noite, todos os dias, incluindo o sábado (transgredindo a Lei!). Mas nunca fala sobre isso. Fala do Reino de Deus próximo, conta as parábolas do Reino. A Igreja deve falar sobre isso: fazer muita diaconia, mas falar sobre reino de Deus próximo. É esse, somente esse, o tema da pregação cristã.

Alguém falou anos atrás de uma amnésia escatológica do cristianismo. De um desvio da balança para o “já” que gradualmente se livrou do “ainda não”, a dimensão do além meta-histórico e também metafísico.

O que pensa sobre isso? E não é possível que a remoção progressiva do além meta-histórico tenha enfraquecido o empenho em realizar outros além históricos na direção da justiça? Afinal, a fé na ressurreição não é uma espécie de continuação da luta pela justiça por outros meios?

O problema levantado por essa questão agudizou-se na Modernidade, mas começou muito antes. Já no grande Credo niceno-constantinopolitano (325 e 381), chamado ecumênico (e em certo sentido o é), fala-se de um “Reino que virá” (sabe-se lá quando, num futuro indeterminado), mas Jesus falava do Reino “que vem”, no presente. Seu aparecimento, segundo Jesus, não estava longe, mas iminente. No entanto, ainda é uma vida após a morte que se aproxima, mas ainda está por vir e por isso, no Pai Nosso (única oração ensinada por Jesus) é invocado.

Na consciência do cristão europeu médio de hoje, a vida após a morte não existe: aparece na sua consciência apenas por ocasião dos funerais. É verdade, e também significativo, que a Bíblia é muito sóbria em seu discurso sobre a vida após a morte, e também Jesus insistiu muito, especialmente no Evangelho de João, no aqui e agora do juízo final individual na escolha entre fé e descrença (3,18-19,36); a vida eterna começa aqui, às três "coisas que duram": fé, esperança, amor (1 Coríntios 13,13). E Bonhoeffer falou com autoridade de “transcendência da vida aquém a morte”. Mas é um fato - para retomar o pensamento formulado na pergunta - que hoje a balança cristã está toda "desequilibrada" para o “aquém” e a dimensão do não ainda é amplamente ignorada e talvez secretamente considerada alienante.

O silêncio sobre a vida após a morte é um aspecto do silêncio mais amplo sobre Deus, que paradoxalmente caracteriza a cristandade de hoje que fala de tudo menos de Deus. O silêncio sobre a vida após a morte é um grande empobrecimento da proclamação cristã, uma atrofia da esperança que animava os primeiros cristãos e em particular os mártires da fé, uma sufocante contração do horizonte que Jesus e Paulo revelaram precisamente com a mensagem da ressurreição.

A vida após a morte é efetivamente o mundo da ressurreição. Não saberia dizer se a fé na ressurreição também possa ser vista “como uma espécie de continuação da luta pela justiça por outros meios”, porque a ressurreição é a obra suprema de Deus que supera toda nossa imaginação e capacidade, é a "possibilidade impossível" exclusiva de Deus. Aquilo de que estou certo é que a ressurreição é a conclusão vitoriosa da luta de Deus contra a morte e os milhares de sombras que lança sobre o nosso mundo e sobre as nossas vidas e, portanto, é a vitória da justiça de Deus, que não condena o ímpio, mas o redime, não o abandona na morte, mas lhe abre as portas da vida eterna.

Prezado Pastor, ao final desta entrevista, na qual muito se falou sobre o silêncio sobre Deus, gostaria de lhe perguntar como é possível treinar ouvidos, olhos e coração para a escuta de Deus, visto que, como o senhor escreve, a questão não é tanto que Deus existe, mas que Deus fala, busca, faz história conosco, é força vital.

Respondo a essa pergunta com Dietrich Bonhoeffer que em uma de suas últimas cartas da prisão – a de 21 de agosto de 1944 – na qual, comentando o versículo bíblico de 2Coríntios 1,20, escreve: “Efetivamente, tudo depende do ‘estar nele’ [isto é, em Jesus Cristo]. Tudo o que nos é lícito esperar e implorar a Deus, encontra-se em Jesus Cristo. O Deus de Jesus Cristo não tem nada a ver com tudo o que um Deus como nós o imaginamos deveria ou poderia fazer. Temos que mergulhar sempre de novo, por longo tempo e com muita serenidade na vida, na palavra, na ação”.

A resposta, portanto, à pergunta é: ouvidos, olhos e coração são treinados para a escuta de Deus, imergindo-se na história de Jesus, que é "o caminho" (João 14,6): tanto o caminho de Deus para nos alcançar quanto o nosso caminho para chegar a Deus.

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