O desaparecimento da teologia acadêmica: onde está o futuro da “fé em busca de entendimento”? Artigo de Massimo Faggioli

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27 Março 2023

O desaparecimento da teologia tornará nossos campi católicos menos diversos e inclusivos. E também menos católicos.

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix Internacional, 23-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Ele pergunta: "é possível ser um teólogo dentro da academia católica hoje? A Inquisição que os teólogos acadêmicos que trabalham em universidades voltadas para o mercado mais temem hoje em dia não é o Santo Ofício no Vaticano, mas sim aquela dirigida por tecnocratas leigos que são independentes da autoridade eclesiástica, mas muito dependentes de outros poderes, ainda menos visíveis".

Eis o texto.

Sou um leigo, feliz por ser professor no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos de uma universidade católica. Eu amo o meu trabalho, especialmente por ter a oportunidade de lecionar para estudantes de graduação com pouco ou nenhum interesse pré-existente em teologia, que devem fazer meu curso para cumprir um requisito básico. Mas o futuro da minha profissão está muito em dúvida.

Um caso recente abalou a comunidade dos teólogos católicos nos Estados Unidos. Em fevereiro passado, o conselho administrativo da Marymount University – uma universidade católica em Arlington, Virgínia, que as Irmãs do Sagrado Coração de Maria fundaram em 1950 – votou unanimemente para cortar vários programas de artes liberais, incluindo a teologia.

Essas disciplinas não serão mais oferecidas como graduações, embora algumas delas continuarão fazendo parte do currículo básico de artes liberais da universidade. Mesmo assim, os cortes seguem-se a uma reestruturação desse currículo no ano letivo anterior.

É o admirável mundo novo do Ensino Superior que está transformando a grande e incomparável rede de faculdades e universidades católicas que o catolicismo estadunidense criou. Foi isto que apareceu na conta do Twitter da Marymount University apenas alguns dias após a decisão do conselho de cortar programas:

“A MU é oficialmente a primeira faculdade do país a ter uma loja de conveniência no campus com a tecnologia Just Walk Out da @Amazon! Leia mais sobre o Saints 24, projetado para eliminar as filas de pagamento e proporcionar uma experiência sem esforço para o cliente.”

Parece que cortar parte das disciplinas obrigatórias de artes liberais foi apenas um passo para a venda total à tecnocracia. O que vem depois disso?

Falta de fé nas artes liberais

O que ocorreu na Marymount University é apenas uma das muitas histórias que ouvimos nos últimos anos: faculdades e universidades católicas que competem em um sistema de mercado estão cortando seus programas de teologia em favor de cursos mais profissionalizantes.

Em parte, isso se deve à inegável falta de alunos em muitas instituições, que se tornaram muito caras de frequentar. Mas há também uma falta fundamental de fé nas artes liberais e na teologia por parte de muitas pessoas no novo grupo de administradores leigos que administram faculdades e universidades católicas atualmente.

O papel da teologia nas instituições de educação já mudou antes. Nos primeiros séculos, havia uma “teologia episcopal-monástica” sob a forma de comentários bíblicos. No início do segundo milênio, o modelo deslocou-se para uma “teologia universitária”, que se tornou a rainha das disciplinas nas recém-nascidas universidades. Os teólogos eram intelectuais profissionais focados em questões teológicas com uma linguagem filosófica muito complexa, pegando as verdades descobertas por filósofos como Aristóteles e tentando mostrar como elas eram compatíveis com o cristianismo.

O papel da teologia na universidade hoje faz parte do legado ou dos resquícios do modelo de universidade alemã do século XIX. As instituições católicas nos Estados Unidos adaptaram esse modelo, junto com o sistema pré-existente de seminários para a formação de ministros, a fim de atender aos filhos e às filhas da “Igreja imigrante” que precisava de uma educação competitiva com aquela que era oferecida nas escolas protestantes e públicas.

A crise da teologia e a emergência de uma mentalidade tecnocrática

Esse sistema está agora em crise: a teologia acadêmica está sendo deslocada. Não está claro onde, se ou como ela sobreviverá, exceto em um punhado de grandes e ricas universidades que não são tão representativas de todo o tecido do catolicismo. Este é também um grande momento de crise para algumas das muitas conquistas do Concílio Vaticano II (1962-1965) e do pós-Vaticano II, quando a teologia finalmente começou a ser ensinada não apenas pelo clero celibatário masculino, mas também por leigos homens e mulheres.

Outra conquista do pós-Vaticano II foi que a teologia católica não era mais feita apenas na Europa e no mundo ocidental, mas também no Sul globalAmérica Latina, África e Ásia. A atual crise da teologia católica no mundo anglo-americano certamente não ajudará essas novas vozes católicas globais.

Há a tentação de ver isso como o resultado inevitável da secularização no mundo ocidental: uma diminuição do número de membros da Igreja; os efeitos colaterais da expansão do Ensino Superior católico de pequenas faculdades para universidades com vários programas profissionais.

Esses fatores certamente desempenham um papel, mas há muito mais. Vivemos em um mundo diferente agora: não mais do capitalismo burguês, mas da globalização tecnocrática. O ethos da burguesia modernizadora centrava-se nos conceitos de civilização (Kultur) e formação (Bildung) como necessários para remodelar um sistema social e político em que o conhecimento (Wissenschaft) era importante para a economia, mas também para a formação da cidadania e da opinião pública.

O ethos da atual geração de tecnocratas é diferente e muitas vezes não está convencido da importância de uma educação completa. O pensamento crítico que se desenvolve ao lidar com questões relativas à religião e à fé não apenas é irrelevante, mas agora também se tornou o inimigo.

O grande deslocamento da teologia em andamento carrega muitas incógnitas. Mas já sabemos que isso não pode ser inteiramente atribuído ao clero. Em muitas universidades católicas fundadas por ordens religiosas e clérigos, a antiga liderança foi substituída por leigos. Isso nos lembra – bem no meio do “processo sinodal” – que substituir o clero por uma liderança leiga não é uma garantia.

Por outro lado, a Igreja institucional parece ter pouco a dizer sobre isso. O distanciamento entre as universidades católicas e a Igreja hierárquica torna os bispos incapazes ou indispostos a dizer ou a fazer muito em relação a isso.

Onde ser um teólogo católico hoje?

Esse é um grande problema para a Igreja como um todo, não apenas para quem perderá seus empregos na academia. É um retrocesso em relação à democratização da faculdade de teologia nos últimos 50 anos e ao fato de ter mulheres católicas ensinando teologia em instituições católicas.

É uma vitória para os adivinhos muitas vezes autodidatas e autonomeados que se disfarçam de teólogos por toda a internet. Isso alimenta uma reclericalização do pensamento da Igreja. É, também, a traição da promessa feita pelas escolas católicas aos estudantes no sentido de lhes fornecer uma educação como seres humanos integrais, em que o problema de Deus e da fé é levado a sério.

Isso levanta sérias questões, especialmente à luz da situação particular da Igreja Católica hoje. Onde pode se desenvolver o pensamento da Igreja sobre questões cruciais como a crise dos abusos? Como é possível ser uma Igreja em discernimento se continuamos eliminando a teologia do Ensino Superior católico, acelerando assim o desaparecimento da opinião pública na Igreja?

A questão fundamental é sobre o lugar da teologia católica hoje. Onde ela pode ser ensinada e estudada na Igreja? Onde, na praça pública? Esse poderia ser o começo de um desastre intelectual de longo prazo para a mentalidade católica.

Em um importante artigo publicado na revista America em 15 de março [disponível em inglês aqui], meu colega Matthew Shadle (que estava no corpo docente da Marymount University até os recentes desdobramentos) pergunta se é possível ser um teólogo fora da academia.

Mas há esta outra questão, talvez mais preocupante: é possível ser um teólogo dentro da academia católica hoje? A Inquisição que os teólogos acadêmicos que trabalham em universidades voltadas para o mercado mais temem hoje em dia não é o Santo Ofício no Vaticano, mas sim aquela dirigida por tecnocratas leigos que são independentes da autoridade eclesiástica, mas muito dependentes de outros poderes, ainda menos visíveis.

Apesar de todas as iniciativas para uma educação marcada pela diversidade, pela equidade e pela inclusão, o desaparecimento da teologia tornará nossos campi católicos menos diversos e inclusivos. E também os tornará menos católicos.

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