17 Janeiro 2023
"Aparentemente, estamos aqui longe [...] do contexto de debates, como aqueles sobre o celibato dos padres, da exclusão das mulheres dos ministérios ordenados, ou da proibição da contracepção artificial – isto é, de uma soma de contrassensos a que é urgente pôr termo para tentar recuperar um tempo interminavelmente perdido à custa do serviço aos nossos irmãos e irmãs humanos. Mas, talvez, para uma revisão radical possa contribuir defender a ideia de que a vergonha do corpo é sempre um ultraje ao Criador deste corpo. À graça que encarnou nele a vida e o amor", escreve Didier Levy, em artigo publicado por Garrigues et Sentiers, 03-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
As disciplinas e normas emanadas pela instituição romana, desde a centenária lei do celibato até a bem mais recente promulgação da Humanae Vitae, certamente exigem um olhar crítico e merecem ser questionadas.
Mas o que atinge outro nível de gravidade e está realmente em jogo é a repulsa do corpo, uma das expressões mais funestas do cisma realizado pelo cristianismo em relação à sua fonte judaica.
Considerar o casamento "remédio contra os desejos da carne" é uma das perdas de sentido atribuíveis à corrente do cristianismo nascente que se apoderou das outras formas de compreensão dos primeiros séculos. Edificado de um poder religioso absolutista no corpo de ensinamento se consagrava, como afirmação fundamental, a separação do espírito e da carne, do espírito que eleva e da carne que corrompe.
A assimilação da carne ao pecado e a redução da carne à concupiscência carregam um peso enorme hoje na Igreja Romana. Nesse âmbito, nada mudou por milênios na concepção do corpo pelo pensamento e pelos discursos do clero católico. Por um lado, a pureza do clérigo abstinente, da virgindade celebrada à exaustão e, por outro, a impureza intrínseca da sexualidade humana.
Que na obra de Deus tudo seja graça significa que as noções de puro e impuro sejam superadas – que podem ser reduzidas a erros ou complacências de tradução que no memorial os sobrecarregaram com as exclusões atribuídas por milênios à palavra e aos ditames do divino. E ainda mais profundamente, sem dúvida, porque se tratava de uma contradição em termos das representações formadas no cérebro arcaico da nossa espécie (por exemplo, a ambivalência do sangue – imagem de uma saciedade/sinal de morte). E capazes de penetrar no modo humano de compreender.
Se Deus não criou nada impuro, é consequentemente abolido o dualismo do espírito que eleva e da carne que rebaixa, que faz murchar e degrada. Um contraste nascido de desvios da profundidade insondável das fontes bíblicas que, em vez disso, distinguem apenas o que é santo, justo e bom e seus contrários (independentemente de sua referência à pureza, conceito que aparece em particular nas traduções usadas pelos judeus ortodoxos).
Nas apresentações do puro e do impuro, se enraizou desde a escuridão dos tempos até o nosso uma denúncia do corpo. Uma aversão global ao que é o corpo, ou uma repulsa contra algum componente da sua morfologia ou fisiologia, ou contra algumas das formas de existir e de se relacionar com a vida que lhe foi dada. E a repugnância tem sido dirigida compulsivamente para o corpo das mulheres, devido à atração ou ao feitiço que o íntimo e o orgânico desse corpo exercem sobre as representações instintivas da impureza. Com um excesso de obsessões que alimentam sem fim o desprezo e a repulsa pelo corpo feminino.
Que a religião cristã tenha compartilhado essas repulsas e essas denúncias do corpo, que as tenha assumido - quer as tenha retomado, na origem, dos cultos (culto de Cibele) que o cercavam e as tenha integrado, quer posteriormente se tenha dedicado, através dos seus clérigos e dos seus ensinamentos, a agravá-las e torná-las mais opressivas e mortificantes – constitui em si o mais extremo paradoxo que se possa vislumbrar.
Porque essa degradação do corpo pertence a uma espiritualidade que nasce na ideia de encarnação, em todas as formas e episódios dessa encarnação [1] – até à ressurreição do corpo que então conclui e valida todas as ressurreições dos corpos já previstos.
Eis um paradoxo cristão que produz um confronto exemplar com o judaísmo: opondo-se, por um lado, à prescrição enunciada na Idade Média pelo clero católico que decretava que, para os esposos, a busca do prazer no ato carnal conjugal é um pecado maior que o adultério; e, por outro, a resposta de um rabino à pergunta que lhe fora feita para saber se o próprio ato carnal fosse autorizado no dia do Shabat e que, afirmativamente, diz: com a condição de que nesse dia o esposo dê ainda mais prazer para sua esposa.
Para superar o tempo da história, ou o que poderia passar por uma anedota (mas nada é anedótico no judaísmo senão para quem não se recordasse de que tudo constitui sentido), a Encarnação deve ser considerada na sua origem: no Gênesis que, com uma pedagogia forte, descreve o caminho da criação de Adão em uma alegoria que engrandece o dom da sexualidade à criatura humana.
Colocando em cena um Criador que já não se mostra tão seguro de ter feito a escolha certa ao criar Adão homem e mulher juntos (o Gênesis, para se fazer entender, escreve duas vezes seguidas: "o homem e mulher foi criado"). E que, portanto, propõe a Adão deixá-lo entrar na partilha da reprodução sexuada onde um grande número de espécies o precederam.
Oferecendo-lhe assim a graça daquela sexualidade, a graça que completa a sua vinda ao mundo por obra da mão de Deus: o seu nascimento de uma mulher e homem distintos, e chamados a unir-se pelo amor que reside no espírito da criação na sua totalidade.
Um conto judaico, que adiciona ao Gênesis um comentário, ou um midrash, na forma de uma história em quadrinhos, imaginou que Deus quer esclarecer sua proposta fazendo desfilar diante do Adão um casal para cada espécie que irá acasalar diante dele. Após essa procissão, Deus questiona Adão. Que se diz feliz por se tornar um homem e uma mulher que terão juntos a relação que já se realizou muitas vezes diante de seus olhos. Mas com este pedido: “Em todas essas espécies, o macho junta-se à fêmea colocando-se atrás dela. Mas eu gostaria que eu e minha parceira nos uníssemos cara a cara para que pudéssemos nos olhar”. Um cara a cara que retornará na Bíblia, até o reconhecimento, diante do túmulo vazio, de Cristo ressuscitado por Maria de Magdala. Parece claro para nós que este acréscimo ao Gênesis, que surge do próprio espírito, descreve a instituição do amor humano, a realização da criação de um Adão sexuado.
Aparentemente, estamos aqui longe [...] do contexto de debates, como aqueles sobre o celibato dos padres, da exclusão das mulheres dos ministérios ordenados, ou da proibição da contracepção artificial – isto é, de uma soma de contrassensos a que é urgente pôr termo para tentar recuperar um tempo interminavelmente perdido à custa do serviço aos nossos irmãos e irmãs humanos.
Mas, talvez, para uma revisão radical possa contribuir defender a ideia de que a vergonha do corpo é sempre um ultraje ao Criador deste corpo. À graça que encarnou nele a vida e o amor.
[1] Como conseguiu resistir à refutação judaica enunciada na prescrição da circuncisão a definição de partes vergonhosas? Prescrição que inscreve a aliança do “povo eleito” com Deus na carne do pênis, reiterando com o mesmo gesto a sacralização da sexualização do amor.