Eu, o tirano. Entrevista com Éric Sadin

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29 Novembro 2022

Éric Sadin é um dos ensaístas de referência quando o assunto é pensar as complexas relações entre as tecnologias atuais e a sociedade. Além de ser autor de inúmeros livros, Sadin colabora com diferentes meios de comunicação internacionais, tanto de divulgação quanto acadêmicos. No marco da Noite das Livrarias, na [livraria] Escaramuza, o filósofo e escritor francês visitou Montevidéu.

Em seus trabalhos, Sadin analisa as engrenagens econômicas e a velocidade das transformações tecnológicas, bem como as concepções de mundo e do humano que as determinam. Quatro de seus livros foram traduzidos para o espanhol na coletânea de ensaios Futuros Próximos, da Caja Negra Editora.

O alcance e o impacto dos algoritmos e da inteligência artificial, as mudanças em nossa relação com a técnica, as narrativas dominantes e o modelo tecnoliberal são alguns dos problemas abordados pelo autor de, entre outros, La silicolonización del mundo (2016).

Em seu livro mais recente traduzido para o espanhol, La era del individuo tirano: el fin de un mundo común (2020), propõe analisar a emergência de uma nova condição civilizatória.

A entrevista é de María José Olivera Mazzini, publicada por Brecha, 25-11-2022. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Em seu livro mais recente, aposta em desenvolver uma genealogia, que parte do individualismo clássico e passa pela sociedade de consumo e a guinada neoliberal, para compreender o estado atual da subjetividade. Que acontecimentos marcam essa nova condição?

Aprendi de Michel Foucault como é importante fazer uma genealogia, quando se deseja compreender o ethos do presente. A insolvência da guinada neoliberal, a precarização, o aumento da pobreza, os retrocessos nos laços de solidariedade e as injustiças produziram uma memória, um sentimento cada vez mais amplo de desconfiança. O desenvolvimento do individualismo remonta ao século XVIII e, em nossa época, manifesta-se em comportamentos que produzem uma mudança civilizatória, ou seja, a ruptura do pacto de confiança na ordem comum.

Concretamente, neste século houve quatro acontecimentos históricos que aceleraram esta ruptura. Os atentados de 2001 contra a maior potência econômica e militar do mundo conseguiram colocar o mundo todo em dificuldades de forma nunca vista antes. Alguns anos depois, a guerra no Iraque e seu relatos levaram à desconfiança global. Em terceiro lugar, a crise financeira de 2008 e os enormes danos que provocou individual e coletivamente. Por último, a consolidação de formas inovadoras de management e de produtividade individual e o capital de si mesmo, através da transformação digital, tiveram consequências profundas nos trabalhadores, como, por exemplo, o burnout ou até suicídios em algumas empresas.

Sem ir muito longe, na França, as medidas adotadas pela empresa France Telecom implicavam se desfazer de milhares de empregados por meio de estratégias de gerenciamento. Para isso, invocaram como objetivo a inovação e a transformação digital. Isto teve consequências muito angustiantes, como o suicídio de cerca de trinta empregados.

Somaram-se a esses acontecimentos o descrédito de figuras políticas, a irresponsabilidade ecológica, as crises recorrentes e a rejeição à democracia representativa. E, também, o surgimento de figuras como Julian Assange, Steve Jobs e Mark Zuckerberg.

Observei que, nas duas últimas décadas, o estado de coisas tinha produzido uma desconfiança, uma ressonância e um impacto nos indivíduos que demonstravam uma transformação nos modos de ser no mundo. Neste livro, o prisma privilegiado são as pessoas. Propus-me descobrir como as tecnologias digitais nos impactam e modificam, e como redefinem a relação com o real e a representação.

Quais são as condições que levaram à passagem da “era do acesso” à do “excesso”? Por que considera que estamos diante do “fim do comum”?

Quando falo do comum, refiro-me às representações coletivas, aos princípios compartilhados, às crenças múltiplas, à marca que distingue uma multidão de indivíduos de algo que chamaríamos sociedade. Estamos em um momento de necessidade de organizar a narrativa da própria vida.

Temos uma tecnologia que nos faz acreditar que podemos compensar as infelicidades e fracassos acumulados com a enunciação pública de opiniões, a liberação da denúncia e a raiva, através de uma tela. Esta ilusão de autonomia consolida nossas crenças e inclinações, algo próprio deste espírito singular de época.

Para muitas pessoas, a referência principal é o “eu mesmo”, o si mesmo. Daí a importância, primeiro, do surgimento do telefone celular e da internet, e depois, do smartphone. Ele nos dá uma sensação de independência e aumento de nossas potencialidades. Ao mesmo tempo, envolve uma mistura entre a ilusão de um poder soberano, pronto para se manifestar publicamente a qualquer momento em um clique, e um estado de subordinação. Em outras palavras, deu-se um deslocamento, que no livro eu chamo de guinada implosiva, que é a desapropriação de si mesmo.

O acúmulo histórico de fracassos e injustiças produziu a enorme necessidade tanto de demonstrar que não seremos mais enganados, quanto de contar as experiências vividas. Mas, também, uma certa incapacidade de viver experiências de forma intensa devido à saturação da expressividade duplicada, mostrada.

Então, enquanto vivemos a experiência de ser desapropriados, a indústria do digital oferece instrumentos que, embora deem lugar à catarse, também produzem uma ilusão de maior autonomia, de que temos poder. Da manifestação da desconformidade com a ordem vigente passamos rapidamente a intercâmbios cada vez mais brutais e agressivos ou a expressões que não buscam o diálogo, mas, ao contrário, estabelecer uma hierarquia da opinião própria acima da dos outros.

As tecnologias da expressividade, como chama as redes sociais, são ao mesmo tempo causa e consequência do predomínio do ressentimento, da desilusão e da tirania de si mesmo, que você aponta como traços da atualidade?

Há uma absoluta paixão pela expressividade. Apesar do abatimento e da ira, o impulso à expressividade permite narrar a si mesmo diante dos olhos de outros e enfatizar a excepcionalidade individual. A dinâmica dessas plataformas está no uso pessoal e universal dos procedimentos catárticos.

Com o Facebook, vimos a emoção que o like produz como forma de nos tornar visíveis e estimados. Nessa busca permanente pela reputação, é possível observar um constante reenvio a si mesmo. A necessidade de manifestar a fúria e o rancor se encontrou com o Twitter, que também permite se vingar das humilhações vividas e, assim, experimentar um certo alívio. O Twitter se tornou um espaço de persistente desafogo, em que a necessidade do follow e da viralização se cristalizam no triunfo da palavra sobre a ação.

Há uma declamação contínua para demonstrar a nossa integridade moral ou a nossa consciência, mas, na verdade, a grande maioria se encontra à margem. Esta ilusão de estar envolvidos é o que alimenta a fragmentação dos laços comuns.

Por exemplo, Siri é uma versão tecnoliberal da ética do cuidado, uma configuração robotizada com a qual se estabelecem vínculos confiáveis. O Instagram é uma rede curatorial na qual a cultura da celebridade leva à monetização da própria vida e alimenta essa ideia de capital humano.

Há também todos os aplicativos onde cada indivíduo tem a opção de avaliar. Foram vistos como um caminho para a democratização da avaliação, mas intensificam a mercantilização: a avaliação contínua e a classificação constante lembram aquele episódio da série Black Mirror em que as pessoas se avaliavam mutuamente.

A característica dos tempos atuais é um paradoxal “isolamento coletivo”?

É um oxímoro que tenta dar conta da convivência dos opostos. A celebração do management, do capital humano e do autoempreendedorismo nos levou a não confiar na possibilidade de estabelecer laços construtivos para alcançar acordos e objetivos comuns dentro da pluralidade e a contradição.

Estamos entregues a uma solidão que se sustenta na tirania de nossas crenças, às quais atribuímos prioridade absoluta. E como não é mais possível contar com o laço social, cada um procura atribuir a si os direitos particulares que considera legítimos em uma situação de retrocessos na seguridade social, precarização do trabalho e aprofundamento da humilhação social.

O confinamento provocado pela pandemia contribuiu para ampliar este isolamento coletivo porque aumentou a sensação de não contar com a sociedade para garantir as condições de vida e porque suspendeu a questão sensorial e o contato corporal. Este livro foi publicado durante esse período, então, só agora começaremos a observar a afetação com clareza.

Prefere falar de um estado de atomização da verdade, em vez de usar o difundido termo pós-verdade para abordar o regime atual da verdade?

A noção de pós-verdade, assim como a de fake news e info box, impôs-se em um momento de acentuada confusão. Foram parte de uma narrativa do pânico provocada pela perda de referências e a multiplicação das redes de informação. Hoje, cada indivíduo procura construir sua verdade a partir da própria experiência, marcada por uma memória coletiva de injustiças, enganos e mal-estares.

Os dispositivos da expressividade dão a impressão de que não é mais possível ser enganados ao nos permitir opinar, mas, ao mesmo tempo, instalaram a primazia da primeira pessoa e a tirania individualista. Com os laços sociais e de interdependência fragilizados, surgem diferentes antagonismos particulares marcados por afetos como a ira e o ressentimento que, de formas mais ou menos violentas, procuram fazer prevalecer a sua verdade.

A questão da responsabilidade coletiva é o desafio em uma época marcada pelo furor da imposição individual frente aos outros, a exposição, a indiferença, o discurso de ódio diante de tantos sofrimentos, a assistência à vida por meio de sistemas e a desconfiança. Devemos voltar à questão política, cuidar da biosfera, construir laços de solidariedade, ir ao encontro de todos os sentidos e construir um princípio de esperança que enfrente a pulsão destrutiva.

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