“Se ele sente ciúmes, me ama”. Quando a violência nasce da linguagem

Foto: João Miguel Rodrigues / unsplash

29 Novembro 2022

“Homem violento o que fazer”; “como se comportar com um homem violento”; “meu marido tem explosões de raiva”. Frases comuns em relacionamentos tóxicos.

O artigo é de Michela Marzano, filósofa, acadêmica, política e ensaísta italiano, publicado pelo jornal italiano La Stampa, 25-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

No ano passado, na Itália, frases como essas foram pesquisadas no Google dezenas de milhares de vezes. Apesar dos esforços para combater a violência de gênero por meio das mais disparatadas normas e iniciativas, ainda existem muitas mulheres e garotas que não sabem como se orientar, como agir, às vezes até o que pensar exatamente quando se sentem em perigo. Talvez também porque a consciência da violência sofrida chegue tarde demais e, quando alguém decide reagir, já está prisioneiro de um curto-circuito infernal, aquele que leva a acreditar que a própria pessoa é responsável pelo que está passando.

A violência não é apenas física. Ou melhor, se torna; mais cedo ou mais tarde, a violência se manifesta em todo o seu horror, deixando marcas que ninguém pode mais fingir não ver: hematomas, ossos quebrados, sangue, cadáveres. Mas já estava lá antes. Feita de palavras atiradas como pedras e de controle; misturada com súplicas, ameaças e olhares de comiseração: você viu a que se reduziu? Então é fácil convencer-se de que é ele que está certo, que somos nós que não valemos nada, e que é por nossa culpa que a situação está assim, o que poderíamos ter merecido? Como se a existência precisasse de uma justificativa e o valor de uma mulher dependesse sempre e apenas de como os outros se comportam com ela.

Quantas vezes já ouvimos isso sendo repetido ou nós mesmos o repetimos? Enquanto o amor nada tem a ver com ciúmes e gritos. Assim como nada tem a ver com censuras e humilhações, com todas aquelas justificativas inúteis e absurdas: faço isso para o seu bem. Que bem pode haver quando alguém pretende saber melhor do que nós, e em nosso lugar, o que devemos (ou não devemos) fazer? Em nome de que bem um pai, irmão, namorado ou marido ousam tomar decisões em nosso lugar e quer nos impor a sua vontade? Eles dizem: faço isso por você. Eles dizem: agradeça aos céus por ter encontrado alguém como eu que te suporta. Eles dizem: um dia você vai me agradecer. Eles dizem: pare de reclamar, pense em todas aquelas que gostariam de estar no seu lugar.

Mas as palavras não são apenas "travesseiros" onde você pode deitar a cabeça para aliviar a dor, como escrevia James Hillman. Muitas vezes, as palavras separam e excluem, tiram e mentem.

E os homens violentos quase sempre são perversos, narcisistas e manipuladores, sabem perfeitamente que há frases que matam antes mesmo de terem levantado a mão contra a mulher. Há quem, por ocasião do aniversário do nascimento do movimento #MeToo, tenha tentado questionar a noção de continuum, ou seja, a ideia segundo a qual o feminicídio representaria o polo extremo de um espectro que inclui uma ampla variedade de abusos físicos, sexuais, psicológicos e verbais.

Há até quem tenha falado em “histeria feminista”, apontando o dedo para essa mania contemporânea de exacerbar a relação entre os sexos, tornando-a de fato impossível. Uma loucura, é meu único comentário. Dado que a perpetuação inexorável das violências contra as mulheres afunda as raízes naquele desejo obstinado de não ver que as violências extremas são a continuação das violências cotidianas; e que é sempre a partir do momento em que nos permitimos dizer a uma garotinha "cala a boca" ou "você não entende nada" que se impede a ela ter acesso à consciência de seu próprio valor e, assim, à confiança em si mesma, e assim àqueles recursos internos necessários para recusar abusos a humilhações.

Loucura, eu dizia. Porque, além disso, lastimavelmente são sempre as mulheres que pagam na própria pele as querelas ideológicas e as distinções intelectuais. E enquanto houver quem se arvore o direito de decidir quem é (ou não) vítima, as vítimas da violência não serão protegidas, os culpados continuarão cometendo crimes e a gramática das relações afetivas não será reescrita. Embora seja justamente essa errônea gramática que legitima os relacionamentos tóxicos e exonera as famílias disfuncionais.

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