19 Novembro 2022
"Celebrar a festa da Reforma com o Cântico dos Cânticos significa focar a atenção no que realmente importa para crer, viver, habitar a terra, buscando a vida boa. Um convite para retornar ao essencial, ao que não se consome num fogo de palha, que não se bebe num gole: o que resta mesmo quando as águas parecem submergir tudo".
O artigo é de Lidia Maggi, pastora batista italiana, publicado por AlzogliOcchiversoilCielo, 30-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes labaredas. As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo. (Cântico dos Cânticos 8, 6-7a)
Celebrar a festa da Reforma com o Cântico dos Cânticos pode parecer uma ousadia.
O que as palavras de dois jovens amantes, que juram amor eterno, têm em comum com um evento que revirou a Igreja, que iniciou processos de renovação eclesial que fazem corar nossos pálidos sínodos? Processos que nos geraram, que nos fizeram a igreja que somos.
Celebrar a Reforma com o Cântico, hoje, significa interrogar-se sobre aquela paixão por Deus que inflamou uma geração e pôs em movimento um processo de verificação e redescoberta da fé. Se nos sentimos embotados e incapazes de arder por Deus, como foram nossas mães e nossos pais, o Cântico nos leva a ousar, a soprar em nossas cinzas para reavivar as brasas.
Com o Cântico partimos em busca daquela paixão adormecida, na noite da história e, como Sulamita, a jovem apaixonada do Cântico, ousamos desafiar a escuridão da fé em busca do Amado. E não vamos descansar até encontrá-lo e poder abraçá-lo para receber seus beijos.
Celebrar a festa da Reforma com o Cântico dos Cânticos significa focar a atenção no que realmente importa para crer, viver, habitar a terra, buscando a vida boa. Um convite para retornar ao essencial, ao que não se consome num fogo de palha, que não se bebe num gole: o que resta mesmo quando as águas parecem submergir tudo.
O que não se pode comprar com nenhuma moeda, muito menos com um embandeirado cartão de crédito.
A Reforma foi um momento preciso da história, em que uma geração de crentes, diante da desorientação de uma igreja redobrada sobre si mesma, uma igreja poderosa, escandalosamente suntuosa em relação à pobreza das pessoas, ousou se perguntar: mas o que é central no acreditar? Qual é o núcleo incandescente da fé? O fogo que queima e não consome, capaz de nos arrebatar do conformismo, do hábito, do cálculo e do cinismo...
Assim começou uma busca de sentido apaixonada, dolorosa, mas mesmo assim belíssima.
Na noite da igreja, a Reforma foi aquela garota audaciosa que ousou desafiar os perigos da cidade noturna, os guardiões da ortodoxia, e saiu novamente em busca do amado perdido. Não teve medo de ser parada, espancada, despida justamente por aquelas sentinelas que deveriam proteger o fogo da fé.
Somos filhos e filhas desta história de amor a Deus, nascemos dessa paixão. As chamas de yah nos habitam, embora, como as garotas tolas da parábola, deixemos nossas tochas se apagarem.
Hoje, as palavras do Cântico dos Cânticos despertam-nos daquele torpor, fazem-nos ouvir o clamor da festa, a voz do esposo que chama.
Uma história de amor apaixonante. É assim que podemos contar a Reforma. Em um momento de crise, quando tudo na igreja parecia deformado, enfeado, alguns crentes ousaram sentar em volta de uma mesa e se perguntar se ainda fazia sentido estar juntos.
Assim como dois cônjuges briguentos ou indiferentes que, antes de se separarem, se permitem uma última possibilidade se perguntando: “mas por que estamos juntos? Há razões para ficar ou está tudo acabado?”.
Naquela crise, a Reforma encontrou 5 razões para ficar. E as encontrou indo ao essencial, ao que realmente importa. A tradição resumiu nos Cinco Solas. Vocês se lembram?
Apenas cinco coisas são necessárias para acreditar, para encontrar o amado perdido, para mudar e começar a viver a vida boa da igreja novamente: cinco Solas. Gosto deste paradoxo: busca-se o essencial, aquele unicum (sola) e se expressa no plural (cinco). A Reforma é filha da Escritura, uma palavra essencial, fundadora, mas mesmo assim plural, nada dogmática: um livro e, ao mesmo tempo, muitos livros que dialogam entre si, uma verdade que não se entrega em um dogma, mas em muitas histórias que se confrontam, tantas quantos são os livros da Bíblia. A Reforma é filha dos Evangelhos: no centro só Jesus, nosso Senhor, mas contado com quatro olhares diferentes, nem sempre conciliáveis num só olhar. É também por isso que a busca nunca termina e a Reforma na história não se conclui com um evento pontual; antes, é um processo, um movimento contínuo (Ecclesia semper reformanda).
Cinco Solas que hoje tentamos reescrever para aproximá-los de nós: Somente a Graça, para nos lembrar que a fé é um dom e que a relação com Deus é caracterizada pela gratuidade.
Deus não pode ser comprado, mas também a sua criatura, que é à sua imagem, deve ser libertada, afastada da chantagem de uma fé que se vincula à necessidade de proteção ou, pior, ao medo.
No coração da fé cristã existe um encontro não com uma ideia, mas com uma pessoa. A fé é essa relação pessoal e única. Isso passa por um "você", alguém que pronuncia seu nome. Uma experiência particular que abre ao universal, enraizando-se numa história concreta, num rosto, num nome. O coração de quem vive uma história de amor é totalmente circuncidado pelo amor. Ao amar aquele único amado entende-se o sentido do amor e aprende-se a amar o mundo. O cantor de Nazaré revela-nos aquele Deus amoroso, criador do mundo, que cuida de cada pequena criatura da terra.
A fé é a confiança em Deus, na vida, nos outros. A fé se reveste de esperança e há confiança. É esta postura que nos arranca do ídolo do nosso "eu", do delírio da autossuficiência, da desconfiança em relação aos outros. Acreditar significa reconhecer a nossa vulnerabilidade, a nossa interdependência. Antes mesmo de ser uma qualidade espiritual, a fé é uma condição antropológica.
Em tempos bombardeados por tantas palavras, onde as fake news viajam paralelamente às notícias fundamentadas, nos sentimos perdidos, desorientados. Voltar a habitar as Escrituras significa colocar-se à escuta de uma palavra outra, que não ecoa as minhas palavras, que encena mundos distantes e, portanto, amplia meus horizontes e, ao mesmo tempo, permite me espelhar em histórias capazes de iluminar minhas sombras, os meus lados escuros, aqueles que nego até de mim mesma. A Bíblia é o lugar privilegiado para ouvir novamente as histórias que alicerçam a nossa fé. Lá encontro o Deus de Abraão e Sara, o Deus que toma o lado dos oprimidos para arrancá-los das garras do faraó, É lá que encontro o rosto humano de um Deus que chama, ensina, cura, ama a ponto de entregar-se aos amigos que o traem e renegam. Um Deus que morre, mas que o túmulo não pode reter. Na Bíblia encontro a vida boa narrada como Deus sonhou para nós e para toda a criação.
O último dos Solas tenta resumir todos eles. É a declaração de amor de uma igreja apaixonada, de uma humanidade enamorada: não a nós a glória, Senhor, mas somente a ti. A paixão não se exime de fazer autocrítica, de confessar sua inadequação por ter dado peso (é o sentido literal de glória em hebraico) a outros senhores, outros ídolos: prestígio, consenso, visibilidade, dinheiro, lucro, poder... e a lista se torna legião.
Celebrar a festa da Reforma com o Cântico dos Cânticos é ouvir a voz do amado que nos chama, que insiste em nos chamar, que nos convida a sair.
O fogo apaixonado desse amor não está apagado e quer inflamar outra geração, a nossa.
Hoje sua voz chega até nós como o Cântico mais belo para abrandar os nossos corações. Feliz Dia da Reforma!
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A Reforma, uma história de paixão. Artigo de Lidia Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU