“Os cardeais eleitores terão que reinventar o perfil do futuro papa. Mas uma única pessoa não conseguirá mudar a Igreja.” Entrevista com Marco Politi

Marco Politi | Foto: Il Sismografo

26 Setembro 2022

 

Existem duas guerras, destinadas a impactar o próximo conclave. A primeira é a guerra civil subterrânea em andamento na Igreja Católica desde os Sínodos sobre a Família. A segunda guerra é a ucraniana.

 

No último meio século, assistimos a três pontífices de personalidades intensas com temperamentos, visões teológicas, força sobre os fiéis e capacidade de interlocução com a sociedade e os outros mundos religiosos muito diferentes. Mas com nenhum deles parou a crise das estruturas teológicas, das práticas e da organização do catolicismo.

 

A primeira parte desta entrevista com o renomado vaticanista Marco Politi foi publicada nessa quinta-feira, 22. Politi foi correspondente em Moscou do jornal Il Messaggero de 1987 a 1993, período histórico em que se encontram a crise e a dissolução da URSS e o nascimento da Federação Russa. Ao mesmo tempo, de 1971 até hoje, Politi também tratou de questões vaticanas e religiosas. Entre 1993 e 2003, foi o vaticanista do jornal La Repubblica.

 

Em sua carreira profissional, Marco Politi também trabalhou para outras publicações internacionais e atualmente colabora com o jornal Il Fatto Quotidiano. Basicamente, há mais de 40 anos, Politi, autor de mais de 10 livros centrados na figura e no magistério dos três últimos papas, é um vaticanista a ser incluído na definição de “historiadores”. Ele tem um notável conhecimento do poder e da sociedade, primeiro da URSS e depois da Rússia. Acompanhou e escreveu sobre os últimos seis presidentes soviéticos (de Vasily Kuznecov a Mikhail Gorbachev) e sobre os dois da Federação Russa: Yeltsin e Putin.

 

Essas são as experiências e os conhecimentos que fazem de Marco Politi uma verdadeira testemunha deste último meio século, assim como uma testemunha da complexa relação entre Moscou e o Vaticano desde a queda do Muro de Berlim. Essa trajetória profissional faz de Marco Politi um estudioso singular, talvez único.

 

A entrevista foi concedida a Il Sismografo, 23-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.

 

Eis a entrevista.

 

Se surgirem as condições para um cessar-fogo e/ou uma trégua, você acha que Putin poderia negociar com o presidente ucraniano ou quer negociar diretamente com Washington?

 

Todos sabem que as chaves do conflito estão nas mãos de Washington. Quando o primeiro-ministro Draghi explicou a Kiev (onde tinha ido com Scholz e Macron para oferecer a Zelensky o apoio à candidatura da Ucrânia à União Europeia) que “é a Ucrânia que tem de escolher a paz que quer, aquela que considera aceitável para seu povo”, ficou claro que Itália, Alemanha e França haviam optado por não trabalhar por um papel europeu autônomo em vista de uma solução.

 

Putin espera um sinal preciso de Washington. Naturalmente, muito dependerá também do peso de eventuais mediadores.

 

Já mencionamos que o Santo Padre vem falando há algum tempo de uma “terceira guerra mundial” ou “guerra total” em andamento. A totalidade dos governantes do Ocidente, incluindo a China, não retomou essas palavras, já usadas meses atrás por homens da nomenklatura de Putin. Na sua opinião, o que Francisco quer enfatizar usando essas expressões?

 

Não se trata de uma palavra ou de outra, mas do fato de que, desde 1945, não houve nenhum conflito que tenha afetado a totalidade das relações econômicas, políticas e financeiras do planeta como essa. Pensemos na desconexão da Rússia do sistema bancário Swift e como isso envolve imediatamente todos aqueles que nos mais variados países fazem negócios com a Rússia e precisam, para seu desenvolvimento ou seu bem-estar, vender ou comprar no mercado russo. Pensemos nas enormes somas das reservas russas, congeladas nos bancos ocidentais. Pensemos no impacto das sanções e nos caminhos tortuosos que muitas empresas e Estados têm de percorrer para não ficarem subitamente em uma situação de impasse ou de retrocesso, dada a interrupção das relações econômicas com a Rússia.

 

Pensamos nos tráfegos interrompidos, nas comunicações interrompidas, nos projetos comuns interrompidos, nas trocas científicas interrompidas. Pensemos nos efeitos imediatos da interrupção das relações que dizem respeito ao fornecimento de gás e no impacto resultante nas empresas e indústrias em várias partes do mundo. Pensemos no alerta suscitado pelo fato de que os fornecimentos de trigo e de fertilizantes da Ucrânia e da Rússia podem ser interrompidos ou significativamente reduzidos. Pensemos nos efeitos que uma revolta do pão em um país do Sul do mundo pode ter sobre as ondas migratórias.

 

Nada disso ocorreu na época das guerras na Coreia, Vietnã, ex-Iugoslávia, Afeganistão ou Iraque.

 

O secretário-geral da ONU, Guterres, fala de uma “tempestade perfeita” e da aproximação de um inverno de descontentamento global. A decisão de Putin de declarar o estado de mobilização parcial, convocando 300.000 homens às armas e ameaçando usar “todos os meios à nossa disposição” para garantir a defesa da integridade territorial da pátria russa, leva o conflito para aquela zona cinzenta em que nenhum protagonista sabe mais o que o outro e ele mesmo farão.

 

Guerra Total – definição de Bergoglio – parece-me uma palavra que adere à realidade.

 

Não por acaso, no dia do dramático discurso televisionado de Putin, simultaneamente à sessão da Assembleia Geral da ONU, o jornal Avvenire publicou um plano de paz em sete pontos do presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, Stefano Zamagni. Ele prevê a neutralidade de uma Ucrânia livre e soberana, a autonomia linguística, cultural e política do Donbass russófono dentro do Estado ucraniano, o congelamento da situação na Crimeia em vista de negociações diretas entre as duas partes, a remoção gradual das sanções ocidentais paralelamente à retirada das tropas russas, a participação da Rússia em um fundo para a reconstrução da Ucrânia.

 

É inútil dizer que a paz só virá se partirmos de um cessar-fogo e de uma mesa concreta de negociação. O Vaticano está empurrando nessa direção. Ainda mais que o fantasma de um acidente nuclear está rondando. O encontro na ONU entre o cardeal Parolin e o ministro das Relações Exteriores russo, Lavrov, vai nessa direção. E é significativo que a China agora também esteja entrando em campo, exigindo um cessar-fogo.

 

Certamente, é importante que o presidente estadunidense, Biden, mantenha a calma, declarando às Nações Unidas que uma guerra nuclear “não pode ser vencida e nunca deveria ser combatida”.

 

O inverno europeu de 2022-2023 – para falar da Europa – está se revelando extremamente difícil. Inflação e recessão, fechamento de empresas e risco de um aumento do desemprego, crise alimentar, crise energética, crise migratória terão que ser levados em conta para os custos e benefícios de uma guerra total prolongada.

 

Se a questão tomar o rumo de uma guerra santa, impregnada de ideologia, não sairemos dela. “Venho no decorrer da louca e trágica guerra originada pela invasão da Ucrânia, enquanto outros confrontos e ameaças de conflitos põem em risco os nossos tempos”, exclamou Francisco em Nur-Sultan, dirigindo-se ao presidente Tokayev e às autoridades cazaques: “Venho para amplificar o grito de muitos que imploram a paz, caminho de desenvolvimento essencial para o nosso mundo globalizado”.

 

Ninguém mais acredita que a Primeira Guerra Mundial tenha eclodido pelo tiroteio em Sarajevo ou pelo ultimato do império austro-húngaro à Sérvia: quando Bento XV pedia para interromper o “inútil massacre”, ele tocava no ponto crucial.

 

Francisco está em sintonia com aqueles que pedem desesperadamente – sejam populações ou grupos de interesse social – uma nova época de estabilidade e convivência mundial. Talvez essa temporada não seja no curto prazo, mas o papa argentino, no entanto, compreende o sentido das necessidades de vastas massas.

 

Ser profético não significa adivinhar uma previsão, como se fossem os números da loteria, mas – defende o arcebispo Rino Fisichella, um homem da Cúria – significa “captar os sinais dos tempos”.

 

Quando João Paulo II enviou os cardeais Pio Laghi a Washington e Roger Etchegaray a Bagdá para exortar para se encontrar in extremis um acordo para acabar com a guerra, um alto oficial estadunidense, acompanhando Laghi até seu carro após a conversa com o presidente Bush Jr., disse-lhe ao abrir a porta: “Não se preocupe, Eminência, em algumas semanas tudo terá acabado”.

 

 

Em sua opinião, um futuro próximo conclave e suas escolhas serão condicionados pela realidade internacional, pela chamada nova ordem mundial que muitos estão tentando construir após a guerra em curso? É verdade que “os papas se fazem em conclave” (como dizia o cardeal Siri), mas também é verdade que os cardeais eleitores são pessoas que, além da Igreja, pensam no mundo onde essa Igreja vive e caminha. Entre outras coisas, o mundo precisa de uma Igreja capaz de oferecer respostas para a coerência entre fé e vida.

 

Existem duas guerras destinadas a impactar o próximo conclave. A primeira é a guerra civil subterrânea em andamento na Igreja Católica desde os Sínodos sobre a Família. Há um núcleo duro das hierarquias, do clero, do laicato católico comprometido que não compartilhou e não compartilha as aberturas do Papa Bergoglio sobre a moral sexual, suas aberturas cautelosas à eventualidade de um diaconato feminino, seu apoio inicial ao Sínodo da Amazônia, que terminou com o pedido de um clero casado em situações de emergência, sua reforma da Cúria destinada a levar ao topo de alguns dicastérios expoentes leigos e particularmente mulheres, sua total equiparação entre crentes heterossexuais e homossexuais.

 

Esse bloco, apegado à ideia de um rigorismo doutrinal e de um centralismo romano como sinais característicos da Igreja Católica, agrupa talvez cerca de 30% do mundo católico e se fará sentir no conclave. Uma parte deles sabem, no entanto, que o impacto de Francisco sobre a opinião pública mundial, sobre crentes e não crentes e seguidores de outras religiões foi muito forte. Portanto, não é possível propor uma candidatura que tenha o sabor de um claro passo atrás.

 

A experiência de Bento XVI é uma advertência. Ratzinger, personalidade de grande destaque intelectual e teológico, mas pouco inclinado à arte de governar, acabou em um beco sem saída justamente por ser percebido como portador de uma tentativa precisa de “endireitar” a Igreja pós-conciliar. O experimento fracassou em um mar de polêmicas.

 

Por isso, como sempre em um conclave, as várias correntes terão de encontrar um compromisso: conservadores, depois os “centristas”-moderados-amedrontados e, por fim, os reformadores.

 

A segunda guerra que impactará é a ucraniana. Seu resultado moldará a situação política, econômica, mas também psicológica do mundo. Haverá um resultado multipolar de convivência? Uma nova e dura guerra fria com o Ocidente alinhado contra o bloco China-Rússia?

 

A possível figura de um pontífice não pode ser imaginada desvinculada dos acontecimentos mundiais. O retorno a um europeu (o tecelão Parolin, secretário de Estado, ou o cardeal húngaro Erdo, ex-presidente do Conselho das Conferências Episcopais Europeias, ou o cardeal vigário de Roma, De Donatis, de caráter espiritual)? Uma personalidade de marca bergogliana como o cardeal filipino Tagle (com sangue chinês por parte de mãe), chamado a Roma para dirigir a Congregação para a Evangelização dos Povos? Um africano?

 

Não faz muito sentido brincar com os nomes. O fato é que, na atual sociedade midiática mundial, um pontífice deve ser capaz de ser percebido como um interlocutor credível, além das fronteiras.

 

É possível traçar um perfil da Igreja do próximo papa? Duas ou três questões centrais, em sua opinião. Talvez a das reformas – e se fala dela desde os tempos de João XXIII – já não seja mais suficiente. Não é a reforma da Cúria ou algo semelhante que está no coração do “fiel e santo povo de Deus”, como o Papa Francisco costuma dizer. Um próximo conclave enfrentará tal desafio ou – como parece pelo que lemos hoje – será uma questão de grupelhos de pressão laico-clericais, midiáticos e assim por diante?

 

O consistório extraordinário no fim de agosto foi uma oportunidade perdida. O Colégio Cardinalício, já composto majoritariamente por personalidades nomeadas por Francisco e marcado por uma internacionalização ainda mais incisiva, poderia – precisamente em um momento epocal como o atual – ter se dedicado a um debate muito imediato e sincero sobre a Igreja Católica na sociedade global de hoje.

 

Teria sido também uma forma de os cardeais provenientes dos mais distantes cantos do mundo se conhecerem, avaliarem opiniões marcadas por contextos sociais diferentes, sentirem o pulso, pelo menos em um primeiro momento, das visões teológicas e religiosas dos coirmãos. Em vez disso, o debate foi enjaulado nos grupos linguísticos, e a reunião também se dedicou a outros temas.

 

Há rumores de que o pontífice teme alguma manobra crítica preparada por uma oposição organizada. Não sei. Francisco continua desfrutando de um tamanho consenso no cenário público a ponto de ter as costas mais do que largas.

 

Em todo o caso, um debate amplo e vivo no seio do corpo cardinalício só pode favorecer aquele projeto de miniconcílio que o papa lançou com o Sínodo sobre a Igreja sinodal, que terminará no fim de 2023 sobre temas fundamentais: Comunhão, Participação, Missão.

 

Na falta de oportunidades de encontro e debate entre todo o corpo cardinalício, é inevitável que, por ocasião de um conclave, os purpurados – digamos assim – mais periféricos e menos informados procurem “referências” romanas para orientação e aconselhamento. Os grupelhos crescem também dessa forma.

 

A questão fundamental, porém, é outra. No último meio século, assistimos a três pontífices de intensas personalidades, com temperamentos, visões teológicas, força sobre os fiéis e capacidade de interlocução com a sociedade e os outros mundos religiosos muito diferentes. Mas com nenhum deles parou a crise das estruturas teológicas, das práticas e da organização do catolicismo.

 

João Paulo II e Francisco, em particular, conseguiram muitas vezes testemunhar uma palavra válida para a sociedade contemporânea, dando visibilidade à multiplicidade de um catolicismo presente em muitas dimensões do mundo, mas a crise seguiu em frente. Quer se tenha mentido sobre os abusos ou se tenham expulsado cardeais e bispos abusivos, quer se tenha aberto o caminho para as mulheres em cargos de direção ou se tenha bloqueado o caminho delas com interpretações passadistas dos Evangelhos, quer se tenha administrado bem ou mal o dinheiro vaticano, quer se tenha dado ou negado a Comunhão aos divorciados recasados... a crise seguiu em frente inexoravelmente.

 

A Igreja Católica (na realidade, todas as Igrejas cristãs tradicionais), por um lado, mantém, em certos aspectos, uma presença significativa na sociedade; por outro, ela se “esvazia”. Chegou uma época em que os presentes em um casamento ou em um funeral não têm mais ideia do que ocorre durante uma missa. Não se trata de modernizar ou reformar, é o próprio cerne da refeição eucarística que escapa a uma massa crescente de novas gerações. Palavras, gestos, símbolos estão se tornando estranhos para aqueles que deveriam fundamentar sua própria vida neles, não de forma perfeita, naturalmente, mas de forma consciente.

 

Na Itália, entre os jovens, os não crentes ou os indiferentes aumentam continuamente: oscilam, superando os 30% e podem chegar a mais de 40, segundo as pesquisas. O fato real é que eles são uma massa enorme para a qual o mistério do altar não diz mais nada.

 

Nessa situação, os cardeais eleitores terão que reinventar de alguma forma o perfil do futuro papa. Mas é preciso dizer que uma única pessoa não será capaz de fazer uma virada na Igreja se não houver, ao mesmo tempo, um impulso real de regeneração religiosa a partir de baixo.

 

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