A marca de Deus Trindade na criação. Artigo de Piero Coda

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05 Setembro 2022

 

A questão decisiva do nosso tempo é uma questão de olhar. A conversão ecológica só pode nascer e se alimentar de uma conversão do olhar e de uma educação mistagógica do olhar. O desenvolvimento do pensamento racional, das ciências, da técnica ao longo dos séculos da modernidade apresentou o risco de desviar gradualmente o nosso olhar do horizonte da Luz na qual ele se acende. Esse é o olhar que tem origem em outro olhar: o do Criador e Senhor de tudo, o de Deus Trindade.

 

A opinião é de Piero Coda, teólogo e padre italiano, ex-reitor do Instituto Universitário Sophia, de Loppiano, Itália, e membro da Comissão Teológica Internacional.

 

O artigo que segue – publicado por Settimana News, 01-09-2022 – é a conferência apresentada por Coda na quinta edição do “Halki Summit”, em Istambul (8-12 de junho de 2022), focada no desafio ecológico no magistério do Papa Francisco e do Patriarca Ecumênico Bartolomeu. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu convidam a uma conversão ecológica. Assim dizendo, eles nos indicam com vigor e lucidez que, sem mais demora, é preciso hoje mudar de direção no caminho da humanidade, sob pena do colapso do ecossistema social e ambiental, para promover o uso correto da técnica e um fraterno e estilo de vida no ethos e na práxis com que habitamos e gerimos a casa comum.

 

Mas eles não param por aí: porque a raiz dessa conversão se encontra no coração do ser humano, e o coração do ser humano se torna novo quando é alcançado e transformado pelo amor de Deus. Mais uma vez, e com inédita urgência, o convite é a se abrir à promessa de Deus feita por meio do profeta Ezequiel, que se fez evento de graça na plenitude dos tempos, de uma vez por todas (ἐφάπαξ), em Cristo Jesus: “Darei para vocês um coração novo e colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Colocarei dentro de vocês o meu espírito, para fazer com que vivam de acordo com os meus estatutos e observem e coloquem em prática as minhas normas” (Ez 36,26-27).

 

É o sopro do Espírito novo que vem de Deus e enche o universo que a humanidade e a criação toda aguardam e invocam, mesmo sem saber, “com gemidos inexprimíveis”: porque – escreve o apóstolo Paulo na Carta aos Romanos – “a própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus”, para ser ela também “liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,19.21).

 

Contemplação

 

Só “o encontro com o Deus vivo e pessoal: Pai, Filho e Espírito Santo” – escreve o Patriarca Bartolomeu – “pode sustentar o mundo” [1]. “A verdade é contemplada, e não entendida em nível intelectual; Deus é visto, e não examinado em nível teórico. A beleza é percebida, e não conjecturada abstratamente” [2].

 

O Papa Francisco o ecoa na Laudato si: “A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade. (...) Com efeito, não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima” (n. 216).

 

A chave da conversão ecológica, cuja graça e responsabilidade estão conservadas no Evangelho e que a Igreja é chamada a irradiar, caminhando pelos sendeiros da vida lado a lado com todos aqueles que, de diversas maneiras, são animados pelo Espírito de Deus, é a contemplação de Deus Trindade na criação por meio de Cristo Jesus, cuja plenitude (πλήρωμα), na luz (δόξα) e no poder (δύναμις) do Espírito Santo, “se cumpre toda em todas as coisas” (Ef 1,23). Essa é a alma, dilatada à medida do coração de Deus (cf. 1Jo 3,20), chamada a dar saúde, harmonia e beleza ao corpo da humanidade e do cosmos na vertiginosa extensão e profundidade nas quais hoje ele se dilatou.

 

 

Henri Bergson, em seu “Les deux sources de la morale et de la religion”, intuía isso na primeira metade do século passado. Apenas levando em conta o grau de desenvolvimento alcançado pela técnica no seu tempo – e que hoje chegou a fronteiras até então impensáveis – o filósofo escrevia: “A natureza, dotando-nos de uma inteligência essencialmente criadora, preparou-nos um certo engrandecimento”, e as “máquinas”, fruto do engenho humano, “vieram a dar ao nosso organismo uma extensão tão vasta e um poder tão formidável, tão desproporcional à sua dimensão” que, “neste corpo desmedidamente engrandecido, a alma permanece aquilo que era, já demasiado pequena para preenchê-lo, frágil demais para guiá-lo” [3].

 

Conversão do olhar

 

Portanto, dilatar e fortificar a alma, a ponto de estar na koinonia do Espírito Santo (2Cor 13,13), “um só coração e uma só alma” (cf. At 4,32): dilatá-la à medida do corpo dilatado, mas muitas vezes também dilacerado e ferido, da família humana universal e do cosmos inteiro. É isso que nos é pedido hoje como discípulos de Jesus.

 

Mas o que isso significa? E como isso pode ser realizado?

 

Isso se torna viável – eis o ensinamento, na escola do único Mestre, à escuta da Palavra de Deus e da Tradição cristã, que o Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu nos oferecem – quando a alma abre seus olhos para encontrar o olhar do amor de Deus e se deixa transfigurar por ele: o olhar com que o Pai contempla em Cristo Jesus, crucificado e ressuscitado, no drama da história vivido à luz da promessa, a feitura de “novos céus” e “nova terra”, onde Deus será “tudo em todos” (1Cor 15,28).

 

O que deixamos pelo caminho, muitas vezes, como discípulos de Jesus, e que o Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu nos convidam a reavivar é sobretudo esta graça: o fato de que possamos olhar de modo novo, contemplativo e performativo os outros e o mundo, porque primeiro, e sempre de novo, nos deixamos surpreender pelo olhar de amor sem medida com que o próprio Deus nos olha: “Tu, Senhor, amas tudo o que existe (...). De que modo poderia alguma coisa subsistir, se tu não a quisesses? (...) Tu, Senhor, amante da vida” (Sb 11,25-26).

 

A questão decisiva do nosso tempo é uma questão de olhar. A conversão ecológica só pode nascer e se alimentar de uma conversão do olhar e de uma educação mistagógica do olhar. O desenvolvimento do pensamento racional, das ciências, da técnica ao longo dos séculos da modernidade – quase sem nos darmos conta disso –, com todos os preciosos ganhos que trouxe consigo, apresentou o risco, porém, de desviar gradualmente o nosso olhar do horizonte da Luz na qual ele se acende, penetrando com estupor e gratidão na verdade das coisas e julgando com retidão para nos fazer agir segundo a medida da justiça e do amor. Esse é o olhar que tem origem em outro olhar: o do Criador e Senhor de tudo, o de Deus Trindade.

 

“Tu me conheces”

 

O ser humano, de fato, conhece porque é conhecido. Ecoando o Salmo 139, a liturgia latina canta: “Antes de eu nascer, meu Deus, tu me conheces”.

 

O conhecimento do ser humano é o conhecimento de quem se conhece como criatura: isto é, o conhecimento daquele que descobre, despertando para o milagre da vida, do fato de ser criado “à imagem e semelhança de Deus”, o Altíssimo, o três vezes Santo (cf. Gn 14,22 e Is 6,3). Por isso, desde sempre, o homem e a mulher, mediante as maravilhas da criação, conhecem – embora aqui embaixo, no claro-escuro daquilo que não é último, mas apenas penúltimo – a Luz sem ocaso do mistério de Deus que inunda, envolve, sustenta e promove a criação no seu caminho rumo à pátria (cf. Rm 1,19-20).

 

O ser humano contempla na criação a marca do Criador quando se descobre, ele mesmo, conhecido e desejado com amor pelo Criador como sua criatura, no mais profundo do seu ser e em todas as expressões da sua existência. Mesmo que esse conhecimento lhe permaneça velado, ele é frágil, pode ser ofuscado e até esquecido. Até que veio ele, o Cristo, o Filho de Deus, que, fazendo-se carne (cf. Jo 1,14), fez-se em tudo, exceto no pecado, filho do homem. Foi Ele que, para sempre, dissolveu as trevas em Luz: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27).

 

Jesus é o atestado fulgurante disto: Ele é Filho porque é conhecido (gerado) por Deus que é Pai. O seu ser é totalmente e somente encerrado e expressado no fato de ser conhecido pelo Pai como o Filho (ὁμοούσιος τῷ Πατρὶ, confessa o primeiro Concílio Ecumênico de Niceia: da mesma substância que o Pai). É assim que ele, por sua vez, conhece o Pai e comunica esse conhecimento às pessoas, participando-as no Espírito que recebeu do Pai: “A prova de que vocês são filhos é o fato de que o Espírito clama nos seus corações: Abba, Pai!” (Gl 4,6). Como ensina Santo Irineu de Lyon, “o conhecimento do Pai é o Filho, e o conhecimento do Filho de Deus se realiza por meio do Espírito Santo” [4].

 

Conhecer a criação em Deus

 

O evento da Encarnação, que se realiza na páscoa em que o Filho dá sua vida para retomá-la novamente (cf. Jo 10,17), entregando “sem medida” (Jo 3,34) o Espírito (cf. Jo 19), 30) aos irmãos, revela e leva a cumprimento a verdade, a bondade e a beleza da criação: “Tudo foi feito por meio d’Ele, e sem Ele nada foi feito de tudo o que existe” (Jo 1,10); “Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e em vista d’Ele, Ele é antes de todas as coisas, e todas subsistem nele” (Col 1,16-17).

 

Tornados partícipes pela graça da filiação divina de Cristo e iluminados pela luz (δόξα) derramada pelo Espírito Santo, nós recebemos o olhar do próprio Cristo, o seu pensamento (νοῦς) (cf. 1Cor 2,16): para que possamos não apenas conhecer a Deus por meio das suas criaturas, como em um reflexo claro em que se reflete o Sol, mas somos introduzidos para conhecer as criaturas na interioridade da vida da Santíssima Trindade – como que acolhidos em um vórtice de amor – com o olhar do próprio Deus. São João da Cruz, o místico doutor, escreve:

 

“A alma, então, vê como todas as criaturas celestes e terrestres têm a própria vida e a própria duração em Deus […]. Embora seja verdade que a alma em tal estado vê como essas coisas, por serem criadas, são distintas de Deus e as entrevê n’Ele com toda a sua força, raiz e vigor, no entanto, o conhecimento que tem de Deus é tão profundo, como daquele que contém eminentemente todas essas coisas no seu ser, que as conhece melhor no ser divino do que em si mesmas. Esse é o grande deleite de tal despertar: conhecer as criaturas por meio de Deus, e não Deus por meio das criaturas” [5].

 

Certamente, descreve-se assim uma graça mística singular, da qual não são poucos os maravilhosos testemunhos na grande tradição cristã de contemplação e santidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Mas a conversão do olhar – o “despertar”, como São João da Cruz o chama – realizado pela fé, que nos faz ser e viver em Cristo no amor da Santíssima Trindade, abre a todos o acesso a esse olhar novo sobre a criação. De modo que é Cristo em nós que olha para ela, contemplando-a e caminhando nela e com ela.

 

Mas como Cristo – Cristo em nós – olha e contempla a criação? Como dom de Deus; como que tecida em uma rede de relações em que as criaturas se tornam partícipes da vida de Deus Trindade; como que ativamente envolvida nas dores de um imenso parto, que é a páscoa de Cristo dilatada à medida da humanidade e do cosmos.

 

Uma palavra apenas sobre cada um desses raios de Luz nova e intensa que são projetados, no Espírito Santo, pelo olhar de Cristo crucificado e ressuscitado sobre a criação: cada um deles abre um horizonte sapiencial de extraordinária importância também para a interpretação cosmológica, científica e tecnológica da realidade.

 

 

Como dom

 

Acima de tudo, o olhar de Cristo é o olhar que contempla a criação como dom de Deus. Descrevendo o significado e a finalidade da atividade humana no universo, o Concílio Vaticano II ensina na constituição pastoral Gaudium et spes:

 

“Todas as atividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo. Porque, remido por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar até as coisas criadas por Deus. Pois recebeu-as de Deus e considera-as e respeita-as como vindas da mão do Senhor. Dando por elas graças ao benfeitor e usando e aproveitando as criaturas em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui. ‘Todas as coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus’ (1Cor 3,22-23)” (n. 37).

 

A lógica divina subjacente à criação é a lógica estupefaciente do dom. E assim ela é decifrada, acolhida e incentivada pelo ser humano quando é iluminada e gerida segundo a sua intencionalidade originária: tudo é criado como dom para todos, e cada um é criado como dom para o outro e para todos. “Em cada conhecimento e em cada ato de amor – escreve o Papa Bento XVI na Caritas in veritate – a alma do homem experimenta um ‘extra’ que se assemelha muito a um dom recebido, a uma altura para a qual nos sentimos atraídos” (n. 77).

 

Daí uma atitude não de posse, mas de pobreza e sobriedade, não de idolatria, mas de liberdade e partilha. As criaturas – ensina a doutrina social da Igreja – têm para si uma destinação universal: não são para poucos privilegiados, mas para todos, sem excluir ninguém. Essa é a “regra de ouro” do comportamento social, econîmico e político, o seu “princípio primeiro” (cf. Laudato si’, n. 93; Laborem exercens, n. 19). As coisas criadas não são simples instrumentos a serem usados (uti): mas, contempladas como dom ao surgirem, no presente, das mãos de Deus, devem ser acolhidas e desfrutadas (frui) no espírito doxológico do louvor, da ação de graças e da comunhão.

 

As relações, marca trinitária

 

Mas eis mais um horizonte de contemplação surpreendente: no olhar de Cristo, a criação não é mais olhada a partir de fora, mas a partir de dentro, reconhecendo as inúmeras relações que unem todas as criaturas em harmonia (cf. Laudato si’, n. 220).

 

A tradição da teologia e da espiritualidade cristãs constante e maravilhosamente iluminou a marca dessa dinâmica trinitária e “trinitarizante” que está presente em cada criatura e na relação que as diferentes criaturas vivem umas com as outras. Assim descreve Chiara Lubich, em alguns traços de fulgurante intensidade mística:

 

“Na Criação, tudo é Trindade: Trindade são as coisas em si mesmas, porque o seu Ser é Amor, é Pai; a Lei nelas é Luz, é Filho, Verbo; a Vida nelas é Amor, é Espírito Santo. O Todo participado no Nada. E são Trindade entre si, porque uma é da outra, Filho e Pai, e todas concorrem, amando-se, ao Uno, de onde saíram. E isso por meio do homem, que participa da Santa Comunhão [6].

 

Sim, tudo flui junto e é levado a Deus em virtude da Eucaristia. A Eucaristia – intuía Maurice Blondel – é o “vínculo substancial” do universo: o fato de Cristo fazer-se “tudo em todos” graças ao seu corpo doado e ao seu sangue derramado, que a todos e em tudo se comunica mediante o fruto da terra e do trabalho humano. Segundo as palavras de Jesus, “E como o Pai, que é o Vivente, me enviou e eu vivo pelo (διά: em virtude de) Pai, assim aquele que me receber como alimento viverá por (διά: por virtude de) mim” (Jo 6,57). A Eucaristia “é, por si mesma, um ato de amor cósmico” (Laudato si’, n. 236).

 

Graças a ela, realiza-se a vocação da pessoa humana que – escreve o Papa Francisco – “tanto mais cresce, amadurece e santifica-se quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação” (Laudato si’, n. 240).

 

Então – como canta Francisco de Assis depois da experiência de identificação com Cristo Crucificado vivida em La Verna, que o faz contemplar o mundo com os olhos do amor de Deus – reconhecem-se e se tratam como irmãos e irmãs não apenas as pessoas, mas também todas as criaturas: o sol, a lua, as estrelas, o vento, a água, o fogo, a mãe terra... Francisco entra em diálogo com todas as criaturas e – como nos narra Tomás de Celano – até prega aos pássaros e às flores, convidando-os a “louvar e amar a Deus, como seres dotados de razão” [7].

 

“O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina” (Laudato si’, n. 83).

 

As dores de parto

 

No fundo, resta uma pergunta penetrante, dramática, muitas vezes trágica e à primeira vista insuperável: e o sofrimento, a miséria, a derrota, o fracasso, a morte?

 

Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa (cf. 1Cor 15,17). Mas a sabedoria (σοϕία) e o poder (δύναμις) de Deus, que resplandecem na ressurreição, brotam de Cristo crucificado (cf. 1Cor 1,22-24). Esta não é uma verdade apenas espiritual e religiosa: mas ontológica e, portanto – em seu próprio nível e com as suas modalidades específicas de expressão – é uma verdade antropológica, ética, cosmológica.

 

A conversão ecológica do olhar é chamada a ir além, em profundidade, com fé e ousadia, no horizonte inédito aberto pela Páscoa de morte e ressurreição de Jesus, também no discernimento e na gestão daquilo que impede e se opõe ao caminho da vida e do amor.

 

Não é o próprio Jesus, olhando para a lei trinitária da vida que é amor inscrita na natureza, quem ilumina a dinâmica transformadora e divinizadora daquilo que ocorre na sua Páscoa, referindo-se ao grão de trigo que, caindo na terra, dá muito fruto (Jo 12,24)? E referindo-se à mulher que “está para dar à luz, sente angústia, porque chegou a sua hora. Mas quando a criança nasce, ela nem se lembra mais da aflição, porque fica alegre por ter posto um homem no mundo” (Jo 16,21)?

 

Dirigindo o olhar, por meio de Cristo crucificado e ressuscitado, com discrição, temor de Deus, humildade e ternura, nesse misterioso, mas real, horizonte de sentido, pode-se intuir algo da dinâmica pascal do amor de Deus que abre caminho no conturbado processo que envolve a história humana e o cosmos inteiro, como Paulo descreve na Carta aos Romanos:

 

“Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora. E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo. Na esperança, nós já fomos salvos” (Rm 8,22-24a).

 

O sofrimento, a provação, a tragédia, a morte já estão redimidas em Cristo crucificado e ressuscitado, e podem se tornar, por meio da nossa compaixão, expressão e instrumento de um amor maior: feito de misericórdia, de solidariedade, de justiça, de esperança, de vida nova, segundo a palavra do apóstolo Paulo: “Agora eu me alegro de sofrer por vocês, pois vou completando em minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo, que é a Igreja” (Col 1,24).

 

Há uma relação estreita, não mais separável, entre o grito dos pobres e o grito da terra (cf. Laudato si’, n. 49). O Verbo (Λόγος) de Deus se fez Ele mesmo grito, este grito, todo grito, no lenho da cruz: “Um grito que diz, ao mesmo tempo, o triunfo do amor de Deus e a verdade e a profundidade da sua encarnação” [8].

 

Conversão ecológica

 

A conversão ecológica é, acima de tudo, conversão do olhar: esta é a mensagem que o Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu nos dirigem em uma estupenda e fascinante sinfonia.

 

Assumindo o dom, a responsabilidade e a criatividade desse olhar de sabedoria e misericórdia em Cristo, pode-se e deve empreender com espírito e realismo caminhos construtivos de diálogo com a interpretação filosófica, científica e técnica da criação: no que diz respeito às grandes questões éticas que hoje interpelam a consciência humana sobre o mistério da vida, assim como sobre as técnicas adequadas para uma promoção sustentável e fraterna do desenvolvimento social e ambiental.

 

Não se trata de uma simples utopia, nem apenas de um imperativo ético. A fé em Cristo atesta que esse olhar é expressão de um evento ontológico que ocorreu “de uma vez por todas” e que se repete continuamente: quando, do coração, tácita ou expressada, desabrocha em nós, por impulso terno e forte do Espírito Santo, a disponibilidade de Maria ao anúncio surpreendente do anjo: “γένοιτό μοι κατὰ τὸ ῥῆμά σου” (Lc 1,38).

 

Então, com Maria, tudo em Cristo crucificado e ressuscitado se transfigura: como canta a Igreja do Oriente no hino “Akathistos”, dirigindo-se a Maria, χώρα τοῦ Θεοῦ τοῦ ἀχοράτου: “Tu trazes Aquele que tudo sustenta. Ave, ó estrela que o Sol precedes; ave, ó ventre do Deus que se encarna. Ave, por Ti se renova a criação”.

 

Notas:

 

1. Patriarca Ecumênico Bartolomeu I. Incontro al mistero. Magnano: Qiqajon, 2013, pp. 74 e 87.

 

2. Id., “Grazia cosmica, umile preghiera. La visione ecologica del patriarca ecumenico di Costantinopoli Bartolomeo I”, editado por J. Chryssavgis. Florença: Libreria Editrice Fiorentina, 2007, p. 189.

 

3. H. Bergson. Les deux sources de la morale et de la religion (1932). Milão: Edizioni di Comunità, 1947.

 

4. Cf. Irineu de Lyon. Dimostrazione della predicazione apostolica, 4-10.

 

5. João da Cruz. Fiamma viva d’amore B, str. 4, 5, in Id. Roma: Opere, 1979, pp. 823-824.

 

6. Texto inédito (1949).

 

7. Tomás de Celano. Vita prima di San Francesco, XXIX, 81: 660.

 

8. Marie-Eugène de l’Enfant Jésus. Je veux voir Dieu. Venasque: Ed. du Carmel, 1998, p. 1016.

 

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