Elogio do pai: “quem não vive para servir não serve para viver”. Artigo de Leonardo Boff

Foto: steve_a_johnson | Pixabay

10 Agosto 2022

 

"Naqueles fundos ignotos de nosso país, havia uma pessoa preocupada com problemas políticos, culturais e até metafísicos e se perguntava pelo destino do mundo", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

 

Eis o artigo. 

 

Esbelto, de figura elegante, sempre fumando seu palheiro, ele foi um corajoso desbravador. Quando os colonos italianos não tinham mais terras para cultivar na Serra Gaúcha, eles, em grupo, emigraram para o interior de Santa Catarina em terras cheias de pinhais, Concórdia, hoje sede dos frigoríficos da Sadia e, nos arredores, da Perdigão e da Seara.

 

Não havia nada, exceto alguns caboclos, sobreviventes da guerra do Contestado e grupos de indígenas kaingang, desprezados e sempre defendidos por ele. Reinavam os pinheiros, soberbos, a perder de vista.

 

Os colonos alemães, poloneses e italianos vieram, organizados em caravanas, trazendo seu professor, seu puxador de reza e uma imensa vontade de trabalhar e de fazer a vida a partir do nada.

 

Ele estudara vários anos com os jesuítas em São Leopoldo, no Colégio Cristo Rei, no Rio Grande do Sul.

 

Acumulara vasto saber humanístico: sabia algo de latim e de grego e lia em línguas estrangeiras. Viera para animar a vida daquela "gente poverella”.

 

Era mestre-escola, figura de referência e respeitadíssimo. Dava aulas de manhã e de tarde. À noite ensinava português para colonos que só falavam italiano e alemão em casa, o que era proibido, pois era o tempo da Segunda Guerra Mundial. Ao lado disso, abriu uma escolinha para os mais inteligentes a fim de formá-los guarda-livros (contabilistas) para fazer a contabilidade das bodegas e das vendas da região.

 

Como os adultos tinham especial dificuldade em aprender, usou de um expediente criativo. Fez-se representante de uma distribuidora de rádios de Porto Alegre. Obrigava cada família a ter um rádio em casa e assim aprender o “brasilian”, ouvindo programas em português. Montava cataventos e pequenos dínamos onde havia uma cascata para que pudessem recarregar as baterias.

 

Como mestre-escola, era um Paulo Freire avant la lettre. Conseguiu montar uma biblioteca de mais dois mil livros. Obrigava cada família a levar um livro para casa, lê-lo. No domingo, depois da reza do terço em latim, formava-se uma roda, sentados na grama, onde cada um contava em português o que havia lido e entendido.

 

Nós, pequenos, ríamos, a mais não poder, pelo português atrapalhado que falavam. Não ensinava aos alunos, apenas o básico de toda a escola, mas tudo o que um colono devia saber: como medir terras, como devia ser o ângulo do telhado do paiol, como fazer cálculo de juros, como cuidar da mata ciliar e tratar os terrenos com grande declive.

 

Na escola introduzia-nos nos rudimentos de filologia, ensinando-nos palavras latinas e gregas. Nós pequenos, sentados atrás do fogão por causa do frio gélido, devíamos recitar todo o alfabeto grego, alpha, beta, gama, delta, teta...

 

Mais tarde no seminário, eu me enchia de orgulho ao mostrar aos outros e até aos professores a filologia de algumas palavras. Aos onze filhos incitava-nos à muita leitura. Eu decorava frases de Hegel e de Darwin, sem entendê-las, para dar a impressão que sabia mais que os outros. Sempre me perguntava o que significava a frase de Parmênides: ”o ser é e não ser não é”. E até hoje sigo me perguntando.

 

Mas era um mestre-escola no sentido clássico da palavra, porque não se restringia às quatro paredes. Saía com os alunos para contemplar a natureza, explicar-lhes os nomes das plantas, a importância das águas e das árvores frutíferas nativas.

 

Naqueles interiores distantes de tudo, funcionava como farmacêutico. Salvou dezenas de vidas usando a penicilina sempre que chamado, não raro, tarde da noite. Estudava, num grosso livro de medicina, os sintomas das doenças e como tratá-las.

 

Naqueles fundos ignotos de nosso país, havia uma pessoa preocupada com problemas políticos, culturais e até metafísicos e se perguntava pelo destino do mundo. Criou até uma pequena roda de amigos que gostavam de discutir “coisas sérias”, mas mais que tudo para ouvi-lo.

 

Sem ninguém com quem intercambiar, lia os clássicos do pensamento como Spinoza, Hegel, Darwin, Ortega y Gasset e Jaime Balmes. Passava longas horas à noite colado ao rádio para escutar programas estrangeiros e se informar do andamento da Segunda Guerra Mundial.

 

Era crítico à Igreja dos padres porque estes não respeitavam os protestantes alemães, condenados já ao fogo do inferno por não serem católicos. Muitos estudantes olhavam para aquelas meninas loiras, bonitas e luteranas e comentavam: “que pena que elas, tão lindas, vão para o inferno”. Meu pai opunha-se a isso e com dureza tratava aqueles que discriminavam os “negriti” e os “spuzzetti”(os “negrinhos” e os “fedidinhos”), filhos e filhas de caboclos. A nós, filhos e filhas, obrigava-nos a sentar na escola sempre ao lado deles para aprender a respeitá-los e a conviver com os diferentes.

 

Sua piedade era interiorizada. Passou-nos um sentido espiritual e ético de vida: ser sempre honesto, nunca enganar a ninguém, dizer sempre a verdade e confiar irrestritamente na Providência divina.

 

Para que seus onze filhos pudessem estudar e chegar à universidade, vendia, aos pedaços, todas as terras que tinha ou herdara. No fim, ficou sem a própria casa.

 

Sua alegria era sem limites quando os filhos e filhas vinham de férias, pois assim podia discutir horas e horas com eles. E nos batia a todos. Morreu jovem, com 54 anos, extenuado de tanto trabalho e de abnegado serviço em função de todos. Pressentia que ia morrer pois o coração cansado fraquejava dia a dia. E tomava apenas como remédio maracujina.

 

Sonhava em conversar no céu com Platão e Aristóteles, discutir com Santo Agostinho, ouvir os mestres modernos e estar entre os sábios. Os filhos inscreveram seu lema de vida sobre sua tumba:

 

 

 

”De sua boca ouvimos, de sua vida aprendemos: quem não vive para servir não serve para viver”.

 

Morreu de infarto e na mesma hora, no dia 17 de julho de 1965, em que eu embarcava de navio para estudos na Europa. Só lá, um mês depois, soube de sua travessia. Este mestre-escola criativo, inquieto, servidor de todos e sábio, longe dos centros, se questionava sobre o sentido da vida nesta terra.

 

O leitor e a leitora seguramente já adivinharam quem era: meu querido e saudoso pai Mansueto que, neste dia dos pais, o lembro com carinho e infinita saudade, meu verdadeiro mestre.

 

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