Leonardo Boff: 83 anos de vida e uma teologia ousada e profundamente mística

Hoje, no dia de seu aniversário, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU presta homenagem àquele que é uma das referências na Teologia da Libertação, mas que soube atualizar seu pensamento escutando os sinais do tempo

Leonardo Boff | Foto: leonardoboff.org

Por: João Vitor Santos | 16 Dezembro 2021



Quem já teve o privilégio de partilhar uma conversa com Leonardo Boff deve ter ouvido a história de quando nasceu. De tão minguadinho aquele bebê, poucos achavam que “ia vingar” – nas palavras do próprio Leonardo. Mas a mãe acreditava em sua vida e, para manter o bebezinho aquecido, chegou a colocá-lo dentro do forno de pão, aqueles de pedra construídos nos terrenos de casa. Isso em 1938, no município de Concórdia, em Santa Catarina, pouco depois de 14 de dezembro, quando nascera. Talvez a mãe, como boa descendente de italianos, migrados para o Brasil no final do século XIX, conhecesse o forno como ninguém; e aquele bebê fraquinho se fez forte, cresceu e abriu um caminho para uma Teologia que mergulhou tão fundo no espiritual quanto se aproximou do pobre, daqueles menores e que mais sofrem nas sociedades de todos os tempos.



E apesar de todo esse caminho percorrido, Leonardo não deixa de lado a simplicidade. Aliás, simplicidade e bom humor. “Achei que nunca passaria da idade de meu pai, que morreu de um enfarte fulminante aos 54 anos. Sobrevivi. Escrevi um balanço aos 50. Depois achava que não passaria da idade de minha mãe, que também morreu de enfarte com 64 anos. Sobrevivi. Fiz mais um balanço aos 60. Então, estava seguro de que não chegaria aos 70. Sobrevivi. Tive que escrever outro balanço aos 70. Por fim, pensei, convicto, de todas as maneiras, não chegarei aos 80. Sobrevivi. E tenho que escrever outro balanço. Como saí desmoralizado nas minhas previsões, não penso mais em nada. Quando chegar a hora que só Ele sabe, irei alegremente ao encontro do Senhor”, escreveu em texto publicado pelo IHU, por ocasião de seus 80 anos.



Em meio a uma leveza de humor, mas com muita densidade teórica, Leonardo Boff foi se tornando referência ao refletir sobre temas pesados como a própria morte. Assim, também tratou de temas duríssimos, como a pobreza e exclusão social. “Para mim, o caminho de Leonardo Boff é forte na delicadeza do cuidado com o próximo e com o Planeta, segundo uma Teologia de Encarnação”, resume o professor José Geraldo de Souza Júnior. Outro amigo de Leonardo, Faustino Teixeira o define como “um teólogo sempre à frente e ousado, profundamente enraizado na experiência espiritual. Talvez, foi aquele que conseguiu viver com radicalidade a raiz mais viva da teologia da libertação”.



E foi realmente com a Teologia da Libertação que Leonardo ficou muito conhecido, inclusive pagando um preço alto cobrado por aqueles contrários às suas perspectivas. Mas ele se reergueu, parece ter superado e seguiu produzindo e fazendo avançar uma teologia que passa a olhar, com uma conexão direta com Francisco de Assis, para o planeta e todas as suas formas de vida. Não à toa foi chamado pelo Papa Francisco quando da preparação da Encíclica Laudato Sì', que fala de uma ecologia integral e da importância de o ser humano se ver como parte e não dono da Terra. Hoje, em tempos de discussões acerca do antropoceno e da mudança climática, Leonardo segue tensionando a mudança de paradigmas. “O fato é que já estamos dentro da sexta extinção em massa. Inauguramos, segundo alguns cientistas, uma nova era geológica, a do antropoceno e sua expressão mais danosa, a do necroceno. A atividade humana (antropoceno) se revela a responsável pela produção em massa da morte (necroceno) de seres vivos”, escreveu Leonardo Boff, em artigo publicado pelo IHU.

 

João Pedro Stédile, um dos líderes da luta pela reforma agrária no Brasil, ressalta que “Leonardo Boff é um desses projetas e intelectuais orgânicos que o povo brasileiro gestou” e que sempre esteve ao lado das lutas dos mais pobres, os menores. O professor da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz, também destaca essa ponte entre o mundo das ideias e da realidade concreta sempre feita por Leonardo. “A Leonardo Boff há que agradecer o imenso esforço, que já na década de sessenta e setenta do século (milênio) passado, fez junto com um coletivo de pensadores e teólogos críticos para abrir a teologia cristã do clericalismo endógeno para a interpelação da realidade histórica”, acrescenta.

 

Para o também teólogo Paulo Suess recorda a passagem do tempo, as lutas e num poema cheio de carinho ao amigo, resume: “A pororoca que condensa todas as nossas lutas que travamos, nos aguarda antes de entrar na calmaria do oceano e sermos livres”.



Para celebrar os 83 anos de Leonardo Boff, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU reúne depoimentos de amigos e admiradores do teólogo.

 

O texto foi originalmente publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 14-12-2021.

 

Sobre Leonardo Boff

 

Nasceu em Concórdia, Santa Catarina, em 14 de dezembro de 1938. É neto de imigrantes italianos da região do Veneto, vindos para o Rio Grande do Sul no final do século XIX. Fez seus estudos primários e secundários em Concórdia, Rio Negro, no Paraná e Agudos, São Paulo. Cursou Filosofia em Curitiba-PR e Teologia em Petrópolis-RJ. Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique, na Alemanha, em 1970. Ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em 1959.

 

Leonardo ministrando uma de suas aulas de Teologia ( Foto: leonardoboff.org)

 

Durante 22 anos, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de professor visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha). Esteve presente nos inícios da reflexão que procura articular o discurso indignado frente à miséria e à marginalização com o discurso promissor da fé cristã gênese da conhecida Teologia da Libertação.

É doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela Universidade de Lund (Suécia), tendo ainda sido agraciado com vários prêmios no Brasil e no exterior por causa de sua luta em favor dos fracos, dos oprimidos e marginalizados e dos Direitos Humanos.

Em 1984, em razão de suas teses ligadas à Teologia da Libertação, apresentadas no livro “Igreja: Carisma e Poder”, foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex-Santo Ofício, no Vaticano. Em 1985, foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso” e deposto de todas as suas funções editoriais e de magistério no campo religioso. Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986, podendo retomar algumas de suas atividades.

Fonte: leonardoboff.org

 

 

Livros publicados

 

- COVID-19: A mãe terra contra-ataca a humanidade. Petrópolis: Vozes, 2020.

- Caminhar da igreja com os oprimidos. Petrópolis: Vozes, 1998.

- A saudade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2020.

- O evangelho do Cristo Cósmico. Petrópolis: Vozes, 1971.

- O caminhar da igreja com os oprimidos - Do vale das lágrimas à terra prometida. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

- América Latina: Da conquista à nova evangelização. São Paulo: Ática, 1992.

- Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres, São Paulo: Ática, 1995.

- Casamento entre o céu e a terra. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.

- A Águia e a Galinha. Petrópolis: Vozes, 2002.

- Experimentar Deus. A transparência de todas as coisas, Campinas: Verus, 2002.

- São José, a personificação do Pai. Campinas: Verus, 2005.

- Igreja: carisma e poder. Ensaios de uma eclesiologia militante. São Paulo: Record, 2005.

- Ética da vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005.

- A força da ternura. Pensamentos para um mundo igualitário, solidário, pleno e amoroso. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

- Masculino e Feminino. Experiências vividas. Rio de Janeiro: Record, 2007.

- Homem: Satã ou Anjo Bom. Rio de Janeiro: Record, 2008.

- Ecologia, Mundialização, Espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008.

- O Evangelho do Cristo cósmico. A busca da unidade do Todo na ciência e na religião. Rio de Janeiro: Record, 2008.

- Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Rio de Janeiro: Record, 2008.

- Meditação da Luz - O caminho da simplicidade. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009.

- Saber cuidar. Petrópolis: Vozes, 2011.

** Saiba mais sobre as obras de Leonardo Boff.

 

 

Confira os depoimentos.

 


Uma teologia de olhos abertos: os 83 anos de Leonardo Boff

 

“Gostaria de sublinhar aqui o tema que mais toca o momento atual de Leonardo, que é o grito da Terra. Sua teologia atual volta-se profundamente para esse desafio. Como ele apontou em recente livro sobre a Covid-19, estamos diante de desafios abissais, que não podem ser desconsiderados caso queiramos manter acesa a chama da vida. O imperativo do cuidado consigo, com os outros e com todos os demais viventes. Um desafio que reforça a nossa consciência de domiciliação na Terra, de pertença à natureza”, escreve Faustino Teixeira.

 

Faustino Teixeira (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Faustino Teixeira possui graduação em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, graduação em Filosofia pela UFJF, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é professor convidado da UFJF no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma universidade, em 2017. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões, pluralismo religioso, diálogo inter-religioso, catolicismo e mística.

 

Eis o texto.

 

É para mim motivo de grande alegria poder celebrar com Leonardo Boff os seus 83 anos. Falar de sua vida e de sua teologia é passar em revista os grandes temas que marcam o tempo contemporâneo. O que mais me impressiona em sua teologia é a capacidade de abertura de horizontes. Leonardo nunca se contentou em largar-se no tecido tradicional da reflexão, mas sempre ousou avançar com ousadia por territórios novos e provocadores.

Assim foi com a cristologia, com a eclesiologia e os sacramentos, a trindade e a teologia da Terra. Um teólogo sempre à frente e ousado, profundamente enraizado na experiência espiritual. Talvez, foi aquele que conseguiu viver com radicalidade a raiz mais viva da teologia da libertação, que desentranha no poço da experiência de Deus o mais certeiro imperativo do amor, bem na linha do que diz Teresa de Ávila em suas Moradas: “O amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus”.

 

 

Gostaria de sublinhar aqui o tema que mais toca o momento atual de Leonardo, que é o grito da Terra. Sua teologia atual volta-se profundamente para esse desafio. Como ele apontou em recente livro sobre a Covid-19, estamos diante de desafios abissais, que não podem ser desconsiderados caso queiramos manter acesa a chama da vida. O imperativo do cuidado consigo, com os outros e com todos os demais viventes. Um desafio que reforça a nossa consciência de domiciliação na Terra, de pertença à natureza. Como diz o Papa Francisco, com pertinência, somos todos terra, e os elementos de nosso corpo são compostos pelo tecido do planeta. O cuidado, entendido assim em sentido amplo, convoca-nos à uma nova solidariedade e hospitalidade: deixar-se habitar pelo outro, reconhecendo todos os seus direitos característicos.

Retomando uma nobre tradição africana, enraizada na língua zulu (bantu), temos a palavra Ubuntu, que indica que o que somos é fruto da relação com os outros. O ser humano deixa de ser o umbigo do universo para se inserir no tempo como parte de um todo entrelaçado. Estamos todos emaranhados intimamente no tecido da vida, como parte da natureza. Mostra-nos Leonardo que essa inter-relação é constitutiva de nosso ser, uma relação que deve ser fraterna e amigável com todos.

 

 

Refletindo sobre a pandemia que nos envolveu nesses dois últimos anos, a Covid-19, Leonardo percebeu ali um motivo ainda mais forte de nossa relação com a Terra adoecida. Ela agora se vinga, porque violentamos o seu habitat. A Terra adolorada reage, com intrusão e rispidez pois, diferentemente dos humanos, ela não perdoa nunca. Estamos apenas colhendo os “frutos” da agressão sistemática dos homens-humanos do Antropoceno.

Daí o desafio categórico assumido por Leonardo Boff de uma necessária mudança paradigmática, de transformação radical de nossa relação com os outros seres vivos, com a natureza e a Terra. Trata-se do desafio essencial de uma virada animal, vegetal e mineral, de forma a poder captar com profundidade esse nosso vínculo inter-ser essencial.

 

 

Urge não só uma “conversão ecológica”, mas uma retomada de espiritualidade integral e cósmica, de retomada de uma “razão cordial”, de dilatação do coração para as esferas mais amplas do real. Essa espiritualidade visada está igualmente relacionada com a recuperação da memória de que somos “parte do todo”, e que juntos com outros seres nobres temos o sagrado dever de recompor e harmonizar o universo do criador.

Desenvolver a espiritualidade é aquecer nossa capacidade de olhar, de ver mais longe, de aguçar nossa capacidade contemplativa, de escuta ao apelo dos outros e da Terra. Não há privilegiados na espiritualidade. Dela são portadores todos aqueles que desentranham do fundo da alma as dimensões singulares, as virtudes fundamentais que estão guardadas na profundidade de cada um. A espiritualidade, como bem sinaliza Boff, “é aquilo que produz dentro de nós uma mudança”, que nos faz alçar a bandeira do amor e acreditar num futuro benfazejo.

 

 

Celebrar os 83 anos de Leonardo Boff, esse irmão querido e mais velho, é realizar na vida esse compromisso vital com os desvalidos, os excluídos e todos os seres com os quais tecemos a malha vital, para que possamos oferecer aos que virão uma esperança possível.

 

 

Leonardo Boff, a delicadeza do cuidado segundo uma Teologia de Encarnação

 

“Para mim, com Gutiérrez e Leonardo Boff, a Teologia da Libertação orienta a ação pastoral que ‘busca agir com os pobres para aproveitar a sua sabedoria para mudar as suas vidas e seus meios de subsistência’”, adensando a intersubjetividade virtuosa ‘para um outro mundo possível’”, escreve Jose Geraldo de Sousa Júnior. E acrescenta: “assim, para mim, é o caminho de Leonardo Boff, forte na delicadeza do cuidado com o próximo e com o Planeta, segundo uma Teologia de Encarnação”.

 

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

 

 José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

Eis o texto.

 

Meus primeiros contatos com Leonardo Boff, fora a leitura de seus textos, a partir do impacto de Igreja, Carisma e Poder (Vozes, 1982), se deram num plano que se pode dizer da rua e de radical encarnação. Ali, nos meados dos anos 1980, a convite do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis – CDDH, subi a serra para uma roda de conversa sobre o tema que justificara a fundação do Centro, em 1979, com a finalidade de realizar, apoiar, assessorar e orientar iniciativas que contribuam para a concretização dos Direitos Humanos nas sociedades, e, também, para debater o tema da participação social ao impulso do movimento de redemocratização do País, que culminaria com a Constituinte de 1988.

 

 

No Centro, fui recebido por Waldemar Boff, que me recepcionou conforme os fundamentos que inspiraram a sua criação, segundo o lema “servir à vida”, um esforço de ativistas religiosos que queriam agregar a fé ao compromisso social. Leonardo, um dos fundadores da organização, foi também seu presidente, imprimindo ao Coletivo, no momento de sua criação, um forte programa de formação para grupos, movimentos sociais e associações, buscando articular os direitos civis, políticos e socioeconômicos, num contexto de expansão da cidadania. Depois, sobretudo a partir dos anos 1990, o CDDH viria a comprometer-se mais intensamente com os direitos ambientais, e iniciou o desafio de pensar a ecologia não apenas como tema, mas como eixo transversal ao direito à vida, com a nítida assimilação, nas preocupações de Leonardo Boff, do “saber cuidar”, voltado para “a ética do humano e a compaixão pela terra”.

Fui recebido por Waldemar, porque Leonardo estava regressando de uma viagem à China, integrando um grupo de teólogos brasileiros e canadenses num programa que tinha por núcleo o intercâmbio para a construção de uma “cultura de paz”. Do Rio, mal chegado, com a delicadeza do cuidado, Leonardo me telefonou para dar as boas-vindas e justificar a sua ausência motivada pela fadiga da longa viagem.

 

 

Depois, ainda sob a motivação desses temas de participação, Leonardo, redator, e Waldemar, Secretário de Redação da Revista de Cultura Vozes, abriram a edição do ano de 1982, volume LXXXII, de julho/dezembro 1988, nº 2, da Publicação, para o tema “Que Brasil Emerge da Constituição?”, para o qual contribuí com o artigo “A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão”.

Para mim, com Gutiérrez e Leonardo Boff, a Teologia da Libertação orienta a ação pastoral que “busca agir com os pobres para aproveitar a sua sabedoria para mudar as suas vidas e seus meios de subsistência”, adensando a intersubjetividade virtuosa “para um outro mundo possível”. O que faz o seu pensamento um perigo para a estruturas que se calcificam em hierarquias de poder e de privilégios. Algo insuportável, uma heresia.

 

 

Mas, ao mesmo tempo, algo profético, capaz de realmar o testemunho de evangelização. Algo que se repõe quando um pontificado se lança de novo teologicamente na rua, no mundo, solidário, fraterno, compassivo, mesmo que os críticos anatematizem como demasiadamente encarnado, mas que se constitua, como disse Francisco em carta (2019) a Leonardo, o “caminho certo para chegar a Deus e evitar o perigo de cair no ilusionismo gnóstico, desencarnado, dos que preferem um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem Povo”. Assim, para mim, é o caminho de Leonardo Boff, forte na delicadeza do cuidado com o próximo e com o Planeta, segundo uma Teologia de Encarnação.

 

O profeta e intelectual orgânico

 

“Longa Vida, meu caro Boff, você é um dos imprescindíveis, para todo povo Brasileiro. Siga nos ajudando a ter mais coragem e forças para defender a natureza, os bens comuns, e nos estimulando a praticar a solidariedade e a indignação contra todas as injustiças do capital”, escreve João Pedro Stédile.

 

João Pedro Stédile (Foto: MST)

 

João Pedro Stédile é graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México. É membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, do qual é um dos fundadores. Participa das atividades da luta pela reforma agrária no Brasil, pelo MST e pela Via Campesina.

 

Eis o texto.

 

Os povos de todo mundo, na história da civilização, sempre gestaram seus intelectuais orgânicos, que são os sistematizadores das ideias e que apontam para o futuro. Na história do cristianismo, tivemos a figura dos profetas que vislumbravam o caminho a seguir e orientavam o povo.

 

Leonardo Boff é um desses profetas e intelectuais orgânicos que o povo brasileiro gestou. E ele cumpriu com honra e mérito essa missão… Seja por sua vasta obra literária reflexiva, seja pela sua militância na defesa das ideias que orientam a ação política do povo, seja por seu exemplo de comportamento pessoal, com humildade e paciência, como todos os sábios são. Mas, sem deixar de ser sempre indignado contra todas as injustiças, inequidades e explorações próprias do sistema capitalista.

 

 

Nós do MST, temos orgulho de termos cultivado essa relação de respeito ao profeta, de amizade ao ser humano fantástico, que nos ajudou muito. Aliás, sempre dedicado desde os primeiros passos de nosso movimento.

 

Longa Vida, meu caro Boff, você é um dos imprescindíveis, para todo povo brasileiro. Nós te queremos muito bem, siga nos ajudando a ter mais coragem e forças para defender a natureza, os bens comuns, e nos estimulando a praticar a solidariedade e a indignação contra todas as injustiças do capital.

 

 

Reconhecimento e memória agradecida

 

“A trajetória vital de Leonardo Boff é um símbolo, também, pela fidelidade que ela representa ao princípio de escutar a realidade dos tempos e acolher como interpelação os desafios que dela emergem. Nessa escuta é que Leonardo Boff foi percebendo que havia um outro clamor, conexo com o clamor dos pobres e oprimidos, que estava gritando com um silêncio ensurdecedor: o clamor da criação que sofre em dores, não de parto, mas de morte”, escreve Castor Bartolomé Ruiz.

 

Castor Bartolomé Ruiz (Foto: acervo IHU)

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas - CSIC, Madrid.

 

Eis o texto.

 

Leonardo Boff é quase um símbolo na história recente do Brasil e da Igreja. Seus 83 anos de vida não podem ser sintetizados ou definidos em poucas palavras, eis porque sua trajetória de vida se tornou um símbolo. O símbolo reunifica os sentidos dispersos abrindo sempre a possibilidade de novos sentidos. A trajetória vital de Leonardo Boff simboliza, também, um percurso histórico que desde dentro da sua convicção cristã se propôs a fazer um diálogo fecundo: um diálogo entre o pensamento crítico e a teologia cristã, entre o chamado evangélico da opção pelos pobres e as condições históricas de exploração e miséria de grandes maiorias sociais, entre o clamor da crise ecológica presente e o chamado divino a cuidar de “nossa casa comum”.

 

A Leonardo Boff há que agradecer o imenso esforço, que já na década de sessenta e setenta do século (milênio) passado, fez junto com um coletivo de pensadores e teólogos críticos para abrir a teologia cristã do clericalismo endógeno para a interpelação da realidade histórica como sendo o espaço privilegiado onde acontece a perene revelação de Deus. Esse esforço intelectual e vital não esteve isento de crises, como era inevitável que acontecesse. Mas as suas contribuições originais representaram a abertura de um horizonte de diálogo entre realidade histórica e teologia; horizonte no qual ainda caminhamos, sempre na procura de novas interpelações e sentidos de Deus no mundo.

 

 

Concomitantemente, Leonardo Boff, como um bom franciscano, pensou a interpelação histórica a partir da grande máxima do Evangelho de Jesus, os pobres. Leonardo Boff, junto com um coletivo de pensadores e teólogos cristãos, se propuseram a desafio de ler a interpelação de Deus na realidade Latino Americana e Brasileira, a partir dos pobres e excluídos da sociedade. Esta, podemos dizer, abertura epistêmica seguia a grande tradição cristã de perceber nos pobres o grande apelo divino. O desafio daquela geração de pensadores cristãos era sair de uma visão assistencialista dos pobres, para uma perspectiva libertadora da injustiça originária de toda exclusão e pobreza social. Foi neste grande desafio que Leonardo Boff e outros pensadores de sua geração aceitaram e propuseram o diálogo entre teologia e pensamento crítico. Sem preconceitos iniciais, se aproximaram e provocaram um diálogo com várias correntes e pensamento como marxismo, integrando algumas categorias que poderiam ajudar a compreender a realidade, e, também, mantendo um olhar crítico sobre os vários dogmatismos filosóficos ou políticos ao uso na época.

 

 

O diálogo entre teologia e pensamento crítico foi explorado em circunstâncias históricas complexas como a ditadura militar e o patrulhamento da censura clerical. Leonardo Boff é também o símbolo daquela geração que se lançou a desbravar caminhos inovadores para a teologia cristã, sem certezas absolutas, mas com a convicção firme de que era necessário provocar o diálogo e a escuta da realidade, especialmente dos pobres e oprimidos, como lugar privilegiado da revelação de Deus. Assim como Abraão é o símbolo do homem de fé que foi chamado a sair de sua terra sem saber bem para onde iria, muitos pensadores da geração que simboliza a trajetória vital de Leonardo Boff também se sentiram convocados a sair de um cômodo institucionalismo clerical para pensar o desafio de encontrar a Deus nos sinais dos tempos.

 

A insistente convicção de que Deus se manifesta na realidade histórica, em particular na condição (sub)humana dos pobres e oprimidos, levou a Leonardo Boff, assim como outros pensadores de sua geração, a um diálogo muito fecundo com outras esferas sociais, políticas, culturais e até religiosas; as quais, ao mesmo tempo que eram inspiração para pensar novos caminhos da teologia, se aproximaram numa sintonia empática com o inovador rosto de Deus e de Jesus que essa teologia oferecia.

 

 

Neste nexo de encruzilhadas de pensadores é que a trajetória vital de Leonardo Boff também é um símbolo do diálogo da teologia cristã com o conjunto de movimentos sociais que, desde a década de sessenta do século passado, foram se constituindo no Brasil. Os movimentos sociais, assim como muitas ONGs, encontraram inspiração mística para seu ideal no horizonte de pensamento crítico e cristão que a geração de Leonardo Boff abriu. Muitas lutas sociais, como a luta pela terra, pela reforma agrária, pela moradia, pelos sem-teto, lutas operárias diversas, surgiram e cresceram numa espécie de fecundação mútua entre a consciência crítica social e o fazer teológico de muitos pensadores da geração de Leonardo Boff.

 

A trajetória vital de Leonardo Boff é um símbolo, também, pela fidelidade que ela representa ao princípio de escutar a realidade dos tempos e acolher como interpelação os desafios que dela emergem. Nessa escuta é que Leonardo Boff foi percebendo que havia um outro clamor, conexo com o clamor dos pobres e oprimidos, que estava gritando com um silêncio ensurdecedor: o clamor da criação que sofre em dores, não de parto, mas de morte.

 

A deriva ecológica do pensamento de Leonardo Boff pode (e deve) ser lida como um sinal de coerência vital na escuta da história como lugar privilegiado da revelação de Deus. Neste ponto, Leonardo Boff voltou-se de forma enfática em anunciar e denunciar, junto com o variado coletivo ecológico mundial, o grave problema das condições insustentáveis para a vida no planeta Terra deste sistema capitalista de produção e consumo, com seu princípio da predação Ad infinitum para conseguir um lucro ilimitado.

 

 

A sintonia com a criação que Leonardo Boff realizou em sua própria trajetória vital, volta a beber em suas fontes da mística franciscana, mas olhando, mais uma vez, criticamente a realidade e identificando no modelo do capitalismo o eixo de uma cultura da destruição da natureza como princípio da maximização do lucro. Ao mesmo tempo, a deriva ecológica de Leonardo Boff sintoniza o anúncio franciscano de que a criação inteira, todas suas formas vivas, são um reflexo divino. Esta deriva ecológica leva mais fortemente Leonardo Boff a enfatizar a importância da ética como prática fundamental para modificar nosso modo de viver e nossa cultura consumista da apropriação. A deriva ecológica e ética de Leonardo Boff parece reforçar uma linha de profundo e sincero encontro com o pensamento do Papa Francisco em relação a “nossa casa comum”, e, também, com os “novos” movimentos sociais que percebem na ecologia a nova fronteira da justiça e da Vida.

 

Definitivamente, a trajetória vital de Leonardo Boff é um símbolo que se abre a múltiplos sentidos e significados, como toda vida humana vivida com intensidade e plenitude. A ele nosso agradecimento, nosso reconhecimento e nossa memória agradecida.

 

Para Leonardo Boff (83)
por ocasião do seu aniversário

 

O tempo já não está mais tão firme como ontem, mas o suficiente para limpar as calhas, lembrar emoções e fazer perguntas. “Viver ultrapassa qualquer entendimento” (Clarice Lispector). A pororoca que condensa todas as nossas lutas que travamos, nos aguarda antes de entrar na calmaria do oceano e sermos livres. Oh, meu franciscano querido! Um grande abraço de um dos muitos irmãos menores teus,

Paulo Suess

 

Paulo Suess (Foto: Obind)

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia, como perito. Entre suas últimas publicações, destacamos Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

 

 

Leia mais