O Afeganistão após o terremoto

Khost, no sudeste do Afeganistão. (Foto; Laura Goodgame, U.S. Air Force, Wikipédia Commons)

29 Junho 2022

 

Emanuele Giordana, um dos sócios fundadores da associação de jornalistas Lettera 22, está atualmente trabalhando para a publicação Atlante delle guerre e dei conflitti del mondo (Atlas de guerras e dos conflitos no mundo, em tradução livre) e para o relativo site diário. Ele escreve em particular sobre as crises em Mianmar e no Afeganistão, das quais tem conhecimento direto há anos. Colaborou durante muito tempo com a RAI, e ainda o faz ocasionalmente. Giordano Cavallari encaminhou-lhe algumas perguntas após o desastroso terremoto na província de Khost, no sudeste do Afeganistão.

 

Mapa do Afeganistão e dos países vizinhos. Desenho de Aurélie Neyret. (Foto: Médicos Sem Fronteiras | MSF)

 

A entrevista com Emanuele Giordana é publicada por Settimana News, 26-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Emanuele, como você conhece o Afeganistão?

 

Fui lá pela primeira vez quando era um jovem um pouco inconsciente, muitos anos atrás e desde então sofro de uma espécie de doença da Ásia - semelhante à doença da África – pelo que voltei várias vezes e por longos períodos, como jornalista. Imediatamente desenvolvi grande simpatia pelo povo afegão e vê-lo assim, afundando em 40 anos de conflito, me deu e me dá grande tristeza.

 

Desde 2006, acompanho de perto a guerra na qual o exército italiano também esteve envolvido: a guerra na qual também nós, como italianos, estivemos engajados. Fui diretamente envolvido.

 

Em nossa profissão, pode-se escolher o enviado especial em um determinado lugar para se tornar de alguma forma um especialista. Para mim foi diferente. Nunca me considerei um correspondente especial. Para mim, era importante acompanhar todo o curso da guerra no longo prazo, com vistas à paz. Se você não ficar no Afeganistão, como em outros lugares, não entenderá a extensão do que acontece episodicamente: isso também é verdade para o que está acontecendo agora.

 

No Afeganistão observei uma ocupação militar que durou 20 anos com a qual nós - italianos ocidentais - acreditamos estar levando os direitos e o bem-estar às pessoas. Mas não foi assim. De fato, garantimos poucos direitos a um segmento menor da sociedade afegã, apenas ou quase àquela urbanizada. Enquanto não conseguimos, por exemplo, levar cuidados de saúde decentes a todos. Com a educação foi um pouco melhor. Deixamos, portanto, em 15 de agosto de 2021, um país em que 7 em cada dez afegãos estavam abaixo da linha da pobreza: assim, hoje se tornaram substancialmente 10 em cada 10.

 

Devemos, portanto, admitir francamente que uma ocupação militar e uma guerra que durou 20 anos, com mais de 200.000 mortes, a maioria civis - anunciada, justamente, como uma guerra por direitos - deixou um país no desastre. Agora é fácil jogar toda a culpa do desastre nos Talibãs.

 

Vista da cidade de Khost do alto de um edifício. (Foto: Médicos Sem Fronteiras | MSF)

 

Você está planejando retornar ao Afeganistão?

 

De 2007 a 2015 estive lá 2-3 meses por ano. Estive lá pela última vez em 2015. Agora gostaria de voltar para a zona que conheço melhor e onde tenho vários amigos, a do sudeste, de frente para a Ásia. Sinto o dever de voltar por uma obrigação moral que percebo pelo que já disse. De fato, neste momento - algo que se cala totalmente - está ocorrendo uma espécie de vingança por parte dos países ocidentais que perderam a guerra no Afeganistão - incluindo a Itália - e que estão estrangulando a economia do país.

 

Um país sufocado pelas sanções

 

Como os países ocidentais estão sufocando a economia afegã?

 

Com as sanções. Atualmente, é praticamente impossível enviar dinheiro através do sistema bancário. Gostaria de ajudar famílias enviando dinheiro, mas o banco me impede. Mas há algo bem pior das sanções: os Estados Unidos, mas também a Alemanha, a França e também a Itália, junto com os países do Golfo, estão bloqueando em seus bancos os assets financeiros do banco central afegão.

 

Há muito se sabe que os países pobres tentam garantir seus bens em moeda forte nos bancos dos países ricos. Trata-se de divisas do banco central e, portanto, pertencem ao povo afegão. Estou falando de 10 bilhões de dólares, dos quais 7 nos Estados Unidos, 2 na Europa, 1 nos países do Golfo. 10 bilhões constituem uma quantia relativamente pequena para um país rico, mas é uma quantia bastante significativa para um país como o Afeganistão, que neste momento não consegue nem pagar os salários de seus profissionais de saúde e funcionários públicos.

 

Antes da vitória dos Talibãs, 70% dos gastos atuais do país eram cobertos pelos países da ocupação militar, os Estados Unidos em primeiro lugar. Obviamente esse dinheiro foi retirado: e até aí tudo bem; o Afeganistão não é mais um país sob nossa proteção e, portanto, não somos obrigados a fornecer mais fundos.

 

Mas aqueles 10 bilhões pertencem integralmente ao Afeganistão: eles deveriam, portanto, simplesmente ser restituídos. Não os devolver, na minha opinião, é um crime. E dada a situação atual no Afeganistão, é um crime contra a humanidade.

 

 

Qual é a situação humanitária no país? Você pode descrevê-la melhor?

 

Os números dizem o seguinte: quase dois terços da população - cerca de 22 milhões de pessoas - está em estado de grave crise alimentar. Desses 22 milhões de pessoas, pelo menos metade é malnutrida, não subnutrida, o que tem um significado diferente. Isso significa fome. Isso significa que as crianças afegãs têm e terão um atraso em seu desenvolvimento físico e mental. Isso significa que os idosos morrem e morrerão antes.

 

Ainda não temos os números do inverno passado. Ainda não sabemos quantas crianças e idosos morreram. Em breve os teremos.

 

Este é precisamente o crime que está ocorrendo com a grave responsabilidade dos países que estão retendo esses 10 bilhões. E isso vai além do que é o juízo sobre o regime dos talibãs.

 

O terremoto

 

Enquanto isso, as Nações Unidas estão arrecadando dinheiro para o Afeganistão, me parece ...

 

Sim, a ONU lançou um apelo aos países do mundo para fazer frente a uma crise humanitária sem precedentes: pediu US $ 4,4 bilhões, um valor nunca alcançado para um único país; apenas 2,5 foram recolhidos.

 

Com os 10 bilhões que deveriam ser restituídos, não haveria necessidade de promover essa arrecadação, de êxito bastante inadequado. Com aquele dinheiro, muitas pessoas poderiam ter sido salvas - e ainda poderiam ser salvas.

 

Nesta situação, em 21 de junho, aconteceu um terremoto. O que ainda pode acontecer?

 

Acontecerá que o dinheiro para ajudar as pessoas atingidas pelo terremoto será tomado pela ONU dos 2,5 bilhões arrecadados com a coleta mundial. Enquanto, como eu disse, eu não posso e ninguém pode enviar diretamente algum dinheiro para as famílias atingidas.

 

O que você sabe até hoje (24 de junho) sobre a extensão do terremoto e o número de vítimas?

 

As informações oficiais chegam de forma irregular e até pararam: falam de cerca de 1.500 mortos, aproximadamente. A experiência dos grandes terremotos ensina que os números que são dados no início nunca são os do final da contagem, muito mais altos. Portanto, é cedo para dizer quantos morreram.

 

O que eu sei com certeza é que aldeias inteiras foram dizimadas. O número de vítimas - em comparação com a extensão do terremoto - é limitado pelo fato de que nos vilarejos as casas de alvenaria são muito baixas. Se o terremoto tivesse atingido qualquer cidade onde há prédios populares que podem chegar a 12 andares, obviamente o número de mortos teria sido muito maior.

 

Até onde você sabe, como está indo os socorros?

 

Os Talibãs não são minimamente organizados. Quem pode intervir é a ONU, graças a Deus ainda presente no Afeganistão com alguns homens e equipamentos. Mas até a ONU tem dificuldades, até mesmo simplesmente para chegar a esses lugares: para chegar lá com os equipamentos, é preciso viajar por trilhas mais que por estradas. Estamos falando de zonas remotas, onde a guerra foi dura e sobre as quais não sabemos quase nada.

 

Além da ONU, há pouco mais. Levamos em conta que a União Europeia não tem neste momento nenhuma delegação diplomática no Afeganistão. Depois de 15 de agosto do ano passado, foi prometida a abertura de um escritório que pudesse representar todos os países europeus: pois bem, nada foi feito a respeito. É claro que se não houver diálogo diplomático, não há sequer a possibilidade de ajudar, nem mesmo numa contingência como a atual.

 

O drama se soma ao drama. Aliás, o drama do terremoto se soma com uma situação ainda mais dramática e básica. Por isso eu dizia que é impossível contar os episódios, por mais fortes e dramáticos que acontecem no Afeganistão, sem conhecer bem o contexto de longo prazo desse país.

 

As ONGs no Afeganistão

 

Qual é o papel que tem ou podem ter as ONGs italianas que ainda estão no Afeganistão ou estão voltando para lá?

 

Algumas ONGs, poucas - refiro-me a Emergency, além da Cruz Vermelha Internacional - nunca saíram do país, mesmo que o nosso governo tenha fechado os financiamentos para as ONGs no Afeganistão, oficialmente por motivos de segurança. Ficaram organizações que usufruem de fundos europeus ou que têm uma angariação de fundos própria e robusta, como a Cruz Vermelha e a Emergency.

 

Outras ONGs estão me dizendo que querem voltar e querem reiniciar projetos de ajuda e assistência. O governo parece disposto a reabrir projetos com essas ONGs. Mas ainda é cedo para entrarem em operação. Ainda há muitas incógnitas.

 

O certo é que as ONGs são o único canal de comunicação que vejo possível e que deve ser desenvolvido na direção dos Talibãs para levar ajuda humanitária à população, agora inclusive diante do terremoto. Operadores preparados estão fisicamente no local. Outros podem ser adicionados. Eles têm boas relações com a população e - sob certas condições de respeito - com os próprios talibãs, que evidentemente sabem entender e apreciar a ajuda que é trazida ao seu país, quando se tenta levar alimentos e os cuidados de saúde para as pessoas.

 

Não existindo, como disse, um canal diplomático aberto, nossa capacidade de diálogo e, portanto, de influência sobre os grandes temas que em palavras muito nos preocupam - pensemos nos direitos das mulheres, no direito à educação de maneira indiscriminada, na liberdade de impressão, etc. - é muito fraca. Somente as ONGs podem, em minha opinião, neste momento, tentar desempenhar esse papel. Manter o diálogo é fundamental. Sem diálogo - isto é, com o fechamento total – nunca de consegue nada de bom.

 

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