Reformas do Papa Francisco tornam irrelevantes os “caçadores de heresia” de João Paulo II

Fonte: Gabriel Trujillo | Flickr CC

09 Junho 2022

 

“A constituição de João Paulo II concentrou-se em quase todos os parágrafos de sua introdução na preservação da unidade da fé e da disciplina. A comunhão é idêntica à unidade, que é 'um tesouro precioso a ser preservado, defendido, protegido e promovido'. O agente dessa preservação é a Cúria, com poderes jurídicos para isso. É mais fácil ver por que, nesse entendimento, a Cúria acreditava que estava agindo com justiça ('preservando a unidade') quando repreendeu bispos, processou teólogos ou impediu o contato da União dos Superiores Gerais - USG com o papa. Em Praedicate, em contraste, o propósito da Igreja é descrito como a missão de testemunhar em palavras e ações a misericórdia que ela recebeu. Esta missão é confiada a todo o Povo de Deus. A Igreja testemunha essa misericórdia por sua comunhão, que não é forjada por nenhum agente humano, mas é um dom do Espírito que brota da mútua escuta orante dos fiéis, dos bispos e do papa”, escreve Austen Ivereigh, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 07-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico, é pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. É autor da biografia “Francisco, o Grande Reformador: Os Caminhos de um Papa Radical” (Ed. Vogais, 2015). Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.

 

Segundo ele, "a comunhão não é o objeto dos esforços da Cúria, mas o dom do Espírito recebido por uma Igreja sinodal. A Cúria não é a fonte desse dom, mas um agente-chave de sua recepção, promovendo uma troca de presentes por meio de seu serviço ao papa e às igrejas locais. É o serviço que realiza o bom samaritano, no qual Cristo é reconhecido no rosto de todos, especialmente dos mais fracos e vulneráveis".

 

Eis o artigo.

 

Em novembro de 2003, durante o ápice da regra do punho de ferro do cardeal Angelo Sodano como Secretário de Estado de João Paulo II, um frei mexicano escreveu um artigo para um jornal chileno que deixou as redes católicas globais estupefatas.

 

Como editor do jornal católico londrino The Tablet, era meu trabalho editar e traduzir o artigo, intitulado “Violência na Igreja”. Poucos naquele tempo se atreviam a falar isso. Parecia que se estava passando um bastão de dinamite.

 

“Falar de violência na Igreja pode parecer absurdo”, começou o frei Camilo Maccise, da Ordem dos Carmelitas Descalços, que havia terminado há pouco seu mandato como chefe da União de Superiores Gerais, ou USG, em Roma. Violência, em suma, envolve coerção – física, moral, psicológica – para se impor a vontade de alguém. Jesus veio para nos libertar da escravidão e da opressão e construiu sua Igreja no amor de Deus e ao próximo. A autoridade na Igreja é serviço: ministerium, not potestas. Isso é incompatível com a violência.

 

Ainda, como superior-geral dos Carmelitas Descalços por dois mandatos de seis anos e presidente da USG no final dos anos 1990, “violência de caráter moral e psicológico” é o que Maccise vivenciou em primeira mão. “Eu tive conhecimento íntimo dessa violência, sobretudo quando exercida por vários dicastérios romanos”, escreveu ele, antes de descrever as maneiras pelas quais essa “violência” era exercida: no centralismo, autoritarismo e dogmatismo.

 

Sodano morreu no último 27 de maio, aos 94 anos, alguns dias antes da implementação da nova constituição do Papa Francisco para a Cúria Romana, Praedicate Evangelium (“Pregai o Evangelho”). A constituição consolida e aprofunda a reforma que Francisco tem sustentando ao longo dos últimos nove anos. Sua reforma procura não menos que uma conversão na forma de exercer o poder em e desde Roma, para toda extensão da Igreja Católica global.

 

Para entender essa conversão, você tem que colocar Praedicate ao lado do artigo de Maccise, para ver como o primeiro responde ao segundo. O que Maccise atreveu dizer abertamente em 2003 era o que os cardeais nos encontros pré-conclave, 10 anos depois, lamentavam abertamente, um por um. A reforma era “fortemente desejada pela maioria dos cardeais reunidos nas congregações gerais pré-conclave”, em março de 2013, afirma a Praedicate. Entre aqueles que tinham uma série de propostas para a reforma estava o cardeal Jorge Mario Bergoglio, o futuro Francisco, não imaginando que ele seria o encarregado por elas.

 

Exatamente nove anos depois, em 19 de março de 2022, na festa de São José, publicou sua constituição apostólica, no aniversário da missa de inauguração do pontificado. A homilia do novo papa falava sobre o poder autêntico como aquele que serve para proteger a criação e as criaturas. É um poder gentil, poder santo, porque coopera com o poder divino. Esse é o poder que a Igreja deveria exercer.

 

A mudança que fortalece a constituição apostólica de Francisco é clara até mesmo no título. O subtítulo da constituição de João Paulo II de 1988, Pastor Bonus, é “Constituição Apostólica da Cúria Romana”. Praedicate acrescenta: “e seu serviço para a Igreja no mundo”.

 

De volta a 2003, Maccise descreveu como o poder da cúria era concentrado em corpos centrais distantes da vida dos fiéis, que eram vistos como crianças em necessidade de proteção ou correção. A chave para o centralismo foi a forma que a Cúria se encravou entre o papa e o restante da Igreja, usando do poder vicário do papado para intimidar bispos, que, de acordo com a doutrina da colegialidade do Vaticano II, governam a Igreja com o papa, mas eram tratados em suas visitas ad limina  - muitas vezes, diziam -  como coroinhas. Da mesma forma, a USG e a União Internacional das Superioras Gerais, representando mais de um milhão de religiosos em todo o mundo, estavam depois de 1995 até sua morte impedidos por funcionários curiais de se reunirem com João Paulo II.

 

Praedicate afirma claramente que a Cúria “não se coloca entre o Papa e os bispos, mas está a pleno serviço de ambos”. Seis artigos (38-43) são dedicados às visitas ad limina, colocando grande importância nelas, e destacando o papel da Cúria em facilitá-las, com coragem e diálogo. Isso há muito tempo ocorria no pontificado de Francisco: bispos que se lembram dos velhos costumes são surpreendidos com dicastérios agora perguntando: “como podemos ajudar?”, e nas reuniões de duas horas com o Papa em que tudo está sobre a mesa. As reuniões de religiosos e religiosas com Francisco são agora tão regulares que não são notícias.

 

Maccise, em 2003, denunciou a forma como os documentos transbordaram do Vaticano e tocaram diretamente na vida dos fiéis, mas que nunca foram consultados em sua redação: nenhum dos 775 conventos dos Carmelitas Descalços foi consultado durante a preparação de Verbi Sponsa, o documento de 1999 sobre vida contemplativa e clausura. A Cúria de Sodano também exerceu “formas habituais de violência autoritária”: usando delação anônima (acusações) a Roma para denunciar pessoas “heterodoxas” e perseguindo teólogos acusados de heresia por funcionários da Cúria que se envolviam em poder sagrado.

 

Entre essas “formas habituais de violência”, escreveu Maccise, estava “um dogmatismo que se recusa a admitir que em um mundo pluralista não é possível impor pontos de vista religiosos, culturais e teológicos únicos”, confundindo o que é essencial na doutrina e suas relativas expressões. O artigo de Maccise também chamava a atenção para a tentativa de eliminar tensões e conflitos na Igreja suprimindo o diálogo, criando um clima de medo que permitia que uma rígida uniformidade fosse imposta em nome de uma falsa ideia de unidade.

 

A Cúria de Francisco é quase irreconhecível a partir desta descrição. Os documentos do Vaticano, muito reduzidos em número, são (geralmente) hoje em dia fruto de consultas minuciosas e demoradas. Os dias de denúncias anônimas e julgamentos de heresia já se foram.

 

Assim também tem a ilusão de criar unidade reprimindo a “dissidência”: os católicos estão aprendendo a viver em uma Igreja sinodal poliédrica, que ouve, dialoga e mantém juntas as diferenças em tensão na expectativa de resolução pelo discernimento. A autoridade ainda está no comando, mas toma decisões depois que muitos estiveram envolvidos em sua tomada de decisão.

 

A autoridade não está mais amarrada às ordens sagradas per se.

 

Uma das mentes principais por trás de Praedicate é o neocardeal Gianfranco Ghirlanda, jesuíta e canonista, que afirma que a nova constituição esclarece e confirma que “o poder da governança na Igreja não vem do sacramento da Ordem, mas da missão canônica”. Isso significa que os irmãos e irmãs religiosos, ou leigos, podem chefiar dicastérios. Francisco também pretende que no futuro os chefes de dicastérios não sejam cardeais, quebrando também esse vínculo.

 

Ver isso como “empoderamento leigo” é um grande erro.

A direção de um dicastério pode igualmente ser feita por um padre ou uma freira ou um bispo. O ponto é permitir uma Igreja na qual a liderança esteja ligada a carismas e ministérios, em vez de ligada ao estado clerical e ao carreirismo eclesiástico. O que isso implica é uma Igreja sinodal na qual a comunhão é fruto de uma escuta mútua, na qual pessoas de fé, bispos, o Bispo de Roma estão escutando uns aos outros, e todos escutando o Espírito Santo.

 

Como diz Francisco na Evangelii Gaudium, resumindo o Concílio Vaticano II: “em todos os batizados, do primeiro ao último, atua o poder santificador do Espírito... Deus fornece à totalidade dos fiéis um instinto de fé – sensus fidei – que os ajuda a discernir o que é verdadeiramente de Deus”. A tradição da Igreja é transmitida através da fé do povo, que os bispos interpretam, com o papa atuando como intérprete e testemunha final, o discernidor-chefe, que ensina a fé não com base em suas convicções pessoais, mas testemunhando a fé de toda a Igreja.

 

Autoridade na Igreja, em outras palavras, é espiritual, de baixo para cima.

 

A autoridade baseia-se em processos que descobrem a vontade do Espírito. É levar a sério o que Jesus promete no Evangelho de João: que o Espírito nos guie, nos fortaleça, nos ensine, nos traga paz, para que não tenhamos medo ou ansiedade. Não precisaremos de autoritarismo, coerção e controle, porque não é nosso poder que confiamos, mas o de Deus.

 

É por isso que a conversão do poder sob Francisco vai muito além de novas estruturas e processos, por mais importantes que sejam. “O que realmente importa”, escreve o papa em seu prólogo a uma recente entrevista em um livro espanhol sobre a criação de Praedicate, “é a renovação dos corações e mentes das pessoas”.

 

É sobre se confiamos na graça, ou se – entra, neste ponto, nosso velho amigo Pelágio – confiamos em nossos próprios meios.

 

Considere a Pastor Bonus: 

 

A constituição de João Paulo II concentrou-se em quase todos os parágrafos de sua introdução na preservação da unidade da fé e da disciplina. A comunhão é idêntica à unidade, que é “um tesouro precioso a ser preservado, defendido, protegido e promovido”. O agente dessa preservação é a Cúria, com poderes jurídicos para isso. É mais fácil ver por que, nesse entendimento, a Cúria acreditava que estava agindo com justiça (“preservando a unidade”) quando repreendeu bispos, processou teólogos ou impediu o contato da USG com o papa.

 

Em Praedicate, em contraste, o propósito da Igreja é descrito como a missão de testemunhar em palavras e ações a misericórdia que ela recebeu. Esta missão é confiada a todo o Povo de Deus. A Igreja testemunha essa misericórdia por sua comunhão, que não é forjada por nenhum agente humano, mas é um dom do Espírito que brota da mútua escuta orante dos fiéis, dos bispos e do papa.

 

A mudança aqui é de agência

 

A comunhão não é o objeto dos esforços da Cúria, mas o dom do Espírito recebido por uma Igreja sinodal. A Cúria não é a fonte desse dom, mas um agente-chave de sua recepção, promovendo uma troca de presentes por meio de seu serviço ao papa e às igrejas locais. É o serviço que realiza o bom samaritano, no qual Cristo é reconhecido no rosto de todos, especialmente dos mais fracos e vulneráveis.

 

“Pode existir e existe um estilo evangélico de exercer autoridade”, escreveu Maccise no artigo de 2003 que o levou a ser perseguido pela Cúria de Sodano e demitido como um encrenqueiro comunista.

 

Maccise e Bergoglio se conheciam e haviam trabalhado juntos no Sínodo sobre a Vida Religiosa na década de 1990. O carmelita morreu na Cidade do México aos 74 anos, de câncer, em 2012, pouco antes de seu amigo e companheiro religioso latino-americano se tornar papa e começar a incorporar esse estilo de autoridade do Evangelho, de todos os lugares, na Cúria Romana.

 

No final de agosto, Francisco está convocando os cardeais do mundo para um estudo de dois dias da Praedicate. Eu fiz isso, ele pode dizer a eles, e aqui está. Vá e faça o mesmo – para que talvez um dia todos possamos dizer que é realmente absurdo falar de violência na Igreja.

 

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