Não outra igreja, mas uma igreja diferente

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24 Mai 2022

 

"Em maio, a Europa celebrará o fim da consulta aos seus povos e saberemos que futuro queremos - e os jovens querem - do nosso futuro. Quando a guerra terminar, esperamos rapidamente, a aventura do sínodo terá que encontrar uma marcha a mais: a Itália ficará envolvida com eleições políticas exigentes e por uma crise econômica preocupante: a sinodalidade, totalmente laica, não é alheia ao bem da democracia", escreve a jornalista e escritora italiana Giancarla Codrignani, ex-deputada italiana pela Esquerda Independente e sócia-fundadora da associação Viandanti, em artigo publicado por Rocca, 15-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Causa certa impressão o paralelismo entre a Conferência sobre o Futuro da Europa - que é o primeiro e corajoso levantamento institucional de baixo, para o qual, desconhecido da maioria, foi criada uma plataforma digital multilíngue para recolher sugestões e opiniões de "cidadãos europeus" - e o Sínodo italiano, proclamado pelo Papa Francisco para questionar, também de baixo, os católicos italianos para descobrir quem são e por que se confessam cristãos. Quase sessenta anos depois do Concílio Vaticano II, está diante dos olhos de todos a falta de recepção por parte, tanto de um poder que não sentiu passar o Espírito, como de um povo de Deus desconhecedor de um protagonismo que lhe pertencia e que permaneceu em grande parte vétero-católico. O chamado urgente de Francisco fez soar o alarme para os cristãos de boa vontade, incomodando bispos e párocos, em grandes responsáveis pela imobilidade dos batizados.

 

Os tempos não parecem favorecer nem a Europa nem a Igreja: a guerra, que ocorreu inesperadamente, interceptou todos os interesses humanos sem despertar a necessidade de "fazer" mais política, uma atividade boa e limpa, necessária após os traumas da pandemia e, hoje, desta guerra. Quando Draghi alerta para sacrifícios futuros (paz ou ar condicionado?), não há espaço para fáceis otimismos: precisamos prever uma crise pesada e prover algum remédio. Quando Francisco revela a nudez das nossas "roupas de imperador" e é substancialmente removido, até a consciência dos cristãos se descobre dividida e não preparada para reagir.

 

No entanto, a guerra deveria ativar a consciência dos crentes, finalmente libertados da doutrina das guerras justas ou até mesmo santas, e prontos para repudiar a violência das armas. Ninguém parece perceber que a guerra cibernética causaria, sim, sérios danos ao penetrar no coração das instituições ou grandes empresas do eventual inimigo, mas não mataria: parece que o homem "quer" sangue. Porque a guerra é devastadora mesmo onde não estoura: ela também perverte as relações entre as igrejas e colocou os patriarcados ortodoxos uns contra os outros: Kirill de Moscou apoia o poder da "grande mãe Rússia", rejeitando até o convite do pontífice católico para uma trégua de guerra durante a Semana Santa.

 

Consequentemente, reconsiderados hoje, os católicos italianos parecem ainda ter maior dificuldade de seguir Francisco em prosseguir, apesar desse caos, a aventura do Sínodo. De fato, mesmo antes disso ele via dioceses, paróquias, comunidades, associações, movimentos, já cansados e desanimados, resignados... um Evangelho que tende a esmorecer. Hoje? Do tempo dos rebeldes de 1968 que depreciaram o sistema monárquico da Igreja, depois das experiências dos últimos pontificados, finalmente chegou o tempo da responsabilidade compartilhada, como havia sido indicado pelo Vaticano II: o Povo de Deus precede a Hierarquia e tem direito à parrésìa.

 

Mas ainda hoje os leigos, criados na tradição da obediência e conformados à autoridade do sistema, permanecem passivamente devotados e psicologicamente submissos. Não se julgam divididos por orientações diferentes, mutuamente ignorados e não sentem a necessidade, o que seria um prazer, de um confronto para realizar as reformas necessárias, possivelmente em partilha plural e unitária. Por outro lado, os leigos "não adultos" - que não perceberam que seus filhos e netos moram juntos, se divorciaram, são homossexuais e abandonaram doutrinariamente suas crenças - não se sentem em um hospital de campanha.

 

Por esta razão Francisco - o único entre os papas recentes a condenar a clericalização - obrigou sua igreja ao confronto e pergunta a cada um de nós quem você é, o que você está fazendo ali? Em poucas palavras, esta é a razão do Sínodo, uma palavra ainda não bem compreendida, que deveria tornar todo o povo de Deus - leigos, clero, hierarquia - protagonistas de um renovado "caminhar juntos": não estamos construindo um parlamento diocesano, não estamos fazendo um estudo sobre isso ou aquilo, não: estamos fazendo um caminho para nos ouvir e ouvir o Espírito Santo e também discutir com o Espírito Santo, que é uma forma de rezar.

 

Não é fácil ser papa de uma Igreja atrasada em pelo menos duzentos anos, aliás com o tridentino ainda tacitamente em voga: estamos assim todos tão presos a hábitos religiosos que são sempre os mesmos que resulta difícil entender bem o que o Vigário de Cristo quer. Tanto mais que o clero das últimas gerações, sessenta anos depois do Vaticano II, não consegue pôr em prática os seus fundamentos.

 

Entre as causas, não deve ser desconsiderada sua ordenação por bispos (para Bolonha, um Poma, um Biffi, um Caffarra) hostis às inovações do concílio "pastoral" e dogmático apenas para inovações duvidosas.

 

Francisco tenta a recuperação: "Não se deve construir outra igreja, deve-se construir uma igreja diferente".

 

Muito longe, em 1962, também o papa mais profético, João XXIII, havia anunciado uma alegre tarefa de conversão com as mesmas palavras: não é o Evangelho que muda, somos nós que aprendemos a lê-lo melhor. Não foi, ao longo das décadas, a orientação do papa polonês, de Bento XVI e de uma Conferência Episcopal Italiana presidida por Camillo Ruini.

 

No entanto, justamente cinquenta anos atrás, Yves Congar ainda confiava na eficácia daquele concílio: "Temos que nos perguntar se a atualização será suficiente ou se será necessário algo mais .... Não basta manter o que existiu até agora, adaptando-o: é necessário construir de novo."

 

Não se deve esquecer que João XXIII recorreu à raposa de Maquiavel para anunciar o "seu" Concílio: ele aproveitou um evento na Basílica de São Paulo onde a imprensa internacional havia se reunido e a Cúria Romana soube das notícias enquanto os teletipos informavam o mundo da empreitada revolucionária. O Espírito, no curto espaço de duas encíclicas a serem relidas sempre, havia entusiasmado o povo, mas o imobilismo do catolicismo romano o impediu totalmente. Exceto para aqueles que não esperavam outra coisa e que hoje ainda são minoria: se a poderosa Conferência Episcopal dos EUA renunciou a excomungar Biden porque ele é um abortista, será bom entender que a renovação - necessária para salvar o cristianismo em uma fase histórica em que todas as religiões são oprimidas pelo "sagrado" que oculta "o divino" - está mais nas mãos do povo de Deus do que do Vigário de Cristo.

 

De fato, a sinodalidade - Daniele Menozzi tem razão - deve implementar o primeiro postulado da eclesiologia conciliar: "a atribuição a todo o povo de Deus da infalibilidade in credendo ... programa da Igreja para o terceiro milênio". Uma operação que não precisa mais de uma igreja hierárquica e de poder: “Quem se sente povo de Deus, deve empenhar-se por uma Igreja que ou é sinodal ou não existe”.

 

Se o Papa parte da "igual dignidade dos filhos de Deus, apesar da diferença de ministérios e carismas", a participação no Sínodo merece o esforço de torná-lo uma oportunidade de comunhão que realmente liberte a Igreja de todos nós em virtude do batismo.

 

Por isso é importante prestar atenção para o Sínodo alemão, o primeiro que assumiu a iniciativa e, baseando-se na consciência de que Deus é amor, colocou os temas candentes da renovação: "o poder e a divisão dos poderes eclesiásticos, a vida sacerdotal atual, os ministérios e os ofícios das mulheres, as relações de vida, a vivência do amor na sexualidade e na parceria”, que incluem em si questões particulares, como vocações, celibato, homossexualidade, interdependência das estruturas, a fides qua que precede a fides quae. Esta é a "conversão", a ser intus legere, de um poder que sempre escapou às críticas, apesar dos abusos sistêmicos: der Synodale Weg.

 

A coragem das intenções do documento inicial foi acompanhada por um relatório alternativo (talvez prudente) que no fórum do outono europeu passado destacou o perigo de que "a Igreja como a conhecemos corre o risco de se extinguir em poucas décadas": defende ainda assim o caminho, mas prevê que para algumas subidas mais íngremes, será necessário um fôlego mais forte. Trata-se de uma experiência de grande impacto também para nós italianos, levando em conta o contexto dos escândalos que abalaram a Igreja alemã pelos abusos contra menores, que perturbou profundamente a Alemanha, reduzindo o número de católicos registrados. Não é por acaso que o card. Marx havia apresentado sua renúncia ao papa.

 

De fato, os danos causados pelos escândalos de uma pedofilia generalizada nas estruturas católicas em todo o mundo, ainda mais graves do que as malversações financeiras devidas à corrupção, causaram um trauma tanto mais forte, quanto mais o abuso de menores se revela uma violação generalizada dos direitos da infância, mas intolerável para a responsabilidade cristã. No entanto, a denúncia, não mais dos "pecados", mas dos "crimes", veio de cima, com energia, longe de qualquer indulgência equívoca, sem considerações com os altos cargos da hierarquia eclesiástica e do Estado da Cidade do Vaticano.

 

A misericórdia - que é a cifra deste pontificado – ao enfrentar o Sínodo já não privilegia mais os interna corporis: ai se o bispo se trancar nos palácios ou se tornar burocrático: para o Evangelho, não deve temer ir contra a corrente, tornando o rosto “duro” como o de Cristo rumo a Jerusalém, sem se deixar reter por incompreensões e obstáculos, porque sabe que o Reino de Deus avança na contradição do mundo”. E ainda: a busca do prestígio pessoal pode se tornar uma doença do espírito... quantas vezes, nós cristãos, que deveríamos ser os servidores, tentamos subir socialmente? Além disso, o padre (simpósio sobre a teologia do sacerdócio, 17 de fevereiro de 2022) deve ter o cuidado de não retroceder para se refugiar, ou confiar no “otimismo exasperado do ‘está tudo bem’. Deve ser encorajado, ao contrário, o ativismo das freiras, as mais dispostas a apoiar as reformas: convido-as a lutar quando, em alguns casos, são tratadas injustamente, mesmo dentro da Igreja, quando o seu serviço, que é tão grande, é reduzido a servidão. E às vezes por homens da Igreja.

 

Mas também as freiras são mulheres e apreciaram (mais que as leigas) a denúncia de Francisco que dificilmente entrará na sinodalidade paroquial: toda violência infligida à mulher é uma profanação de Deus, nascido de uma mulher. Do corpo de uma mulher veio a salvação para a humanidade: de forma como tratamos o corpo da mulher compreendemos nosso nível de humanidade. Embora mais tolerante que Spinoza, esta Igreja pecadora quer ser corresponsável pelo bem do mundo.

 

Na Itália, porém, o levantamento quanti-qualitativo da Incerta fé (título de uma pesquisa do departamento de ciências da educação de RomaTre, 2020) encontra italianos que não “se declaram” católicos, mas apenas “se sentem” como tais. Nem mesmo a CEI deu provas de colaborar e na assembleia extraordinária de novembro passado, o card. Mario Grech repreendeu os colegas que revelam "a tentação de querer sobrecarregar o processo sinodal" não para caminhar, mas para desviar do objetivo: se falta direção de marcha, não se vai muito longe. O convite para compartilhar, caminhar juntos, acolher as perguntas e as expectativas das pessoas já estava presente na intervenção original aos bispos de 17 de outubro de 2015 como ponto de convergência de um dinamismo de escuta realizado em todos os níveis da vida da Igreja. Hoje o pedido de sair da autorreferencialidade porque o centro da Igreja... não é ela mesma... Para a salvação é preciso sair da preocupação excessiva por nós mesmos, por nossas estruturas, pela forma como a sociedade nos olha.

 

Em maio, a Europa celebrará o fim da consulta aos seus povos e saberemos que futuro queremos - e os jovens querem - do nosso futuro. Quando a guerra terminar, esperamos rapidamente, a aventura do sínodo terá que encontrar uma marcha a mais: a Itália ficará envolvida com eleições políticas exigentes e por uma crise econômica preocupante: a sinodalidade, totalmente laica, não é alheia ao bem da democracia.

 

 

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