A santidade anticonformista de Charles de Foucauld

Fonte: Wikimedia Commons

16 Mai 2022

 

Domingo de manhã, no Vaticano, o Papa Francisco canonizará 10 beatos. Entre eles estará Charles de Foucauld. “Com Teresa de Lisieux, Charles de Foucauld é um dos dois faróis do século XX”, escreveu o grande teólogo Yves Congar. Para aprofundar sua figura entrevistamos o teólogo italiano Brunetto Salvarani, autor do ensaio, recentemente publicado pela editora Cittadella, “Fino a farsi fratello di tutti. Charles de Foucauld".

 

A entrevista com Brunetto Salvarani é de Pierluigi Mele, publicada por Rai News, 14-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Professor Salvarani, domingo será um dia muito importante para a Igreja Católica: é o dia da canonização do Irmão Charles de Foucauld. Em poucas palavras, quem foi De Foucauld?

 

Charles-Eugène de Foucauld nasceu em Estrasburgo, Alsácia, em 15 de setembro de 1858, de uma antiga família nobre cujo lema histórico é "Nunca recuar!"; ele iria morrer em circunstâncias dramáticas, no deserto argelino para o qual tinha ido (e não recuado) para seguir o que ele finalmente havia entendido ser sua vocação definitiva, em 1º de dezembro de 1916. Ele teve uma vida bastante curta, portanto, apenas cinquenta e oito anos: ainda assim, as definições que podem ser atribuídas a ele são muitas e variadas. Oficial de cavalaria disposto à ação, brilhante explorador em terra africana, estimado geógrafo e etnólogo, linguista meticuloso e, claro, homem do Espírito, presbítero, monge e depois eremita em Dar al-Islam.

 

Apesar disso e de uma existência extremamente poliédrica, na realidade, de todos os objetivos que se propusera, não alcançou sequer um: gostaria de fundar uma ordem religiosa, ou pelo menos um instituto de frades, mas apesar repetidas tentativas e experimentos não conseguiu. Por outro lado, também se recusou a tornar-se o que lhe era pedido seguidamente pela família e pelas oportunidades que se lhe apresentaram, primeiro aluno modelo e depois soldado de carreira, optando por permanecer constantemente à margem, para entregar-se ao final, ao silêncio, à escuta e à oração.

 

Embora vivendo no deserto profundo lado a lado com os tuaregues, tradicionalmente muçulmanos sunitas, não determinou neles nenhuma conversão ao Evangelho, até encontrar a morte, assassinado por motivos fúteis, quando ainda estava no auge de sua maturidade intelectual e espiritual. Além disso, finalmente, ele não pode ser chamado de teólogo em sentido estrito, nem de pensador original: quando morreu, não havia publicado nenhum de seus escritos espirituais nem de suas obras linguísticas. Afinal, foi ele mesmo quem escolheu isso, argumentando que as obras de misericórdia a serem realizadas pelos futuros Pequenos Irmãos de Jesus deviam se limitar àquelas que Jesus realizava em Nazaré: acolher os hóspedes e dar-lhes esmolas. A sua biografia é certamente inquieta, é a biografia de um homem ansioso que nunca parou de procurar: o sal da vida, a si mesmo, Deus e, por fim, acima de tudo e acima de todos, Jesus.

 

Sua vida aventurosa se desenvolveu até se tornar “pequeno irmão universal". Por que "pequeno irmão universal"? Um "carisma", para usar uma terminologia paulina, muito particular... e exigente...

 

Desde o início da estadia de Foucauld na Argélia em Béni Abbès, em 1901, emerge claramente a sua aspiração de produzir sementes de fraternidade universal. É muito reveladora, entre outras, uma carta à prima Marie, datada de 7 de janeiro de 1902: “Você me pediu uma descrição da capela... A capela, dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, chama-se capela da fraternidade do Sagrado Coração de Jesus; minha pequena morada chama-se Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus. Quero acostumar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e idólatras, a me considerar seu irmão, o irmão universal...

 

Pouco a pouco começam a chamar a casa de fraternidade, e isso me deixa feliz...”. Uma fraternidade muito movimentada, segundo suas confidências ao abade de Notre-Dame des Neiges: “Todos os dias hóspedes para o jantar, para dormir, para o café da manhã; nunca há lugar vazio; havia onze deles uma noite, sem falar de uma senhora idosa doente que agora se instalou aqui: tenho sessenta a cem visitas por dia: esta fraternidade é uma colmeia”. Dois anos depois, em julho de 1904, novamente a Marie, escreveu: “Os nativos nos acolhem bem. Quando conseguirem distinguir os soldados dos sacerdotes e ver em nós servos de Deus, ministros da paz e da caridade, irmãos universais? Não sei. Se eu cumprir o meu dever, Jesus derramará graças abundantes, e eles entenderão”.

 

Único sacerdote em um raio de quatrocentos quilômetros do deserto do Saara, ele já fala explicitamente da fraternidade como de sua casa, um lugar aberto a qualquer um, no qual todos, cristãos, muçulmanos, judeus, mas também aqueles que ele chama de idólatras, possam se sentir acolhidos e nunca julgados. Um conceito de fraternidade que resulta ainda mais significativo se contextualizado na estratégia missionária desenvolvida pelo papa da época, Leão XIII, a partir da tese de que a atividade dos missionários católicos deve ser ao mesmo tempo evangelizadora e civilizadora, religiosa, mas também política e social. E isso terá seu cumprimento ideal quando Charles se transferirá ao Hoggar, no sul da Argélia (dois mil quilômetros ao sul de Argel), para compartilhar sua vida com os tuaregues em Tamanrasset. Que será sua última morada.

 

Sabemos que o Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti cita Francisco de Assis e Charles de Foucauld como pilares "arquitetônicos" da fraternidade. De onde vem o amor de Bergoglio pelo irmão Charles?

 

De fato, a atenção do Papa para ele vem de longe. Sabemos, por exemplo, que em março de 2006 o então Cardeal de Buenos Aires, falando aos jovens, os exorta ao sonho que pode nos permitir "caminhar na presença amorosa do Pai, abandonando-nos a Ele com infinita confiança, como souberam fazer Santa Teresa ou irmão Charles de Foucauld”. Além disso, o discurso se conclui com uma passagem sobre fraternidade e amizade social, as pedras angulares da encíclica Fratelli tutti. Eleito em 2013, em 2 de março de 2015, Francisco recebe, em visita ad limina, os bispos da Conferência Regional do Norte da África.

 

Aqui ele apresenta a história daquela terra como "marcada por numerosas figuras de santidade, desde Cipriano e Agostinho, patrimônio espiritual de toda a Igreja, até o Beato Charles de Foucauld, cujo centenário de morte no próximo ano celebraremos". Dois meses depois, o lançamento da encíclica Laudato si’confirma essa atenção privilegiada. No n.125 lemos: "A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos”. Em 3 de outubro, em preparação para o esperado Sínodo sobre a família, realiza-se uma vigília de oração na Praça de São Pedro. Na homília papal a figura do irmão universal refulge amplamente. “Charles de Foucauld, talvez como poucos outros, intuiu a dimensão da espiritualidade que emana de Nazaré. Através da fraternidade e da solidariedade com os mais pobres e abandonados, compreendeu que no fundo são eles que nos evangelizam, ajudando-nos a crescer em humanidade”.

 

No ano seguinte, na memória litúrgica do Beato Charles, coincidindo com o centenário de sua morte, no final da Missa em Santa Marta, em 1º de dezembro de 2016, ele escolhe indicar seu testemunho concreto para nos exortar a "caminhar sobre suas pegadas de pobreza, contemplação e serviço aos pobres". De Foucauld, argumenta Francisco, é "um homem que superou tantas resistências e deu um testemunho que fez bem à Igreja". Posteriormente, encontramos um novo aceno na Exortação Gaudete et exsultate (19 de março de 2018). No n.155, numa revisão das características da santidade no mundo atual, com foco na necessidade da oração constante, lemos: "Se verdadeiramente reconhecemos que Deus existe, não podemos deixar de O adorar, por vezes num silêncio cheio de enlevo, ou de Lhe cantar em festivo louvor.

 

Assim expressamos o que vivia o Beato Carlos Foucauld, quando disse: ‘Logo que acreditei que Deus existia, compreendi que só podia viver para Ele’”. Mais ainda. Nos dias 30 e 31 de março de 2019, Francisco faz uma peregrinação apostólica ao Marrocos: um campo de testes após a assinatura do Documento de Abu Dhabi. Na catedral de Rabat, o seu discurso é inteiramente dedicado ao diálogo inter-religioso: “O cristão, nestas terras, aprende a ser sacramento vivo do diálogo que Deus quer travar com cada homem e mulher, em qualquer condição de vida. Nesse espírito, encontramos irmãos mais velhos que nos indicam o caminho, porque com suas vidas testemunharam que isso é possível, uma medida alta que nos desafia e nos estimula.

 

Como não mencionar o Beato Charles de Foucauld que, profundamente marcado pela vida humilde e oculta de Jesus em Nazaré, a quem adorava em silêncio, quis ser um irmão universal?”. Não surpreende, à luz de todas essas referências, o enésimo relançamento do paradigma de Foucauld que se destaca nas conclusões de Fratelli tutti. O que confirma ainda mais a centralidade do irmão universal em sua estratégia eclesial.

 

De Foucauĺd é muitas vezes referido no diálogo entre cristãos e muçulmanos. Nesse sentido, vamos aprofundar por um instante seu relacionamento com Luis Massignon. Massignon, o grande islamista francês, que marcará de forma decisiva a mudança na abordagem da Igreja Católica em relação ao Islã. Por que essa relação entre Massignon e Foucauld é tão importante?

 

No diálogo cristão-islâmico é sempre possível conservar uma espiritualidade da hospitalidade. Um dos primeiros pioneiros desse diálogo, justamente Louis Massignon, o havia entendido a fundo, cujo slogan poderia ser: “para entender o outro você deve se tornar seu hóspede”. Na realidade, toda a aventura humana e espiritual de Massignon traz o paradigma da hospitalidade inscrito: ele experimenta, de fato, a hospitalidade sagrada que lhe é reservada por seus amigos muçulmanos (para quem a hospitalidade é diyafa, um dever sagrado), e é isso que permite que interprete de maneira clara a lição de Abraão e seus três hóspedes no relato do Gênesis (18, 1-16).

 

Na escola de mitologia bíblica e vida acolhida, Massignon aprenderá que a hospitalidade não é apenas um simples gesto de âmbito ético, mas representa, muito mais, a possibilidade de compreender a vida do outro quando se deixa hospedar dentro dela. Estamos cientes de uma relação fraterna com De Foucauld. Massignon se encontrou com o irmão Charles pela primeira vez em 1909, depois manteve contato por correspondência com ele, primeiro por motivos de estudo e depois com a intenção de se tornar seu discípulo, até sua morte.

 

Consequentemente, tudo fará para manter viva a União desejada por seu irmão mais velho: publicará o Diretório e iniciará a Associação Charles de Foucauld, para a qual obtém a autorização do Cardeal Léon-Adolphe Amette, arcebispo de Paris de 1908 a 1920. Seu papel na preservação e transmissão da memória daquele que ele também chamava de amigo do deserto é, portanto, crucial.

 

A última carta enviada pelo Irmão Charles a Massignon é datada de 1º de dezembro de 1916: naquela mesma noite ele será assassnado, durante um assalto à sua morada, por um bando isolado de tuaregues aliados aos senussitas líbios. Era uma sexta-feira, a primeira sexta-feira do mês, e sua intenção de oração para aquele dezembro era a conversão dos muçulmanos. É uma carta comovente e cheia de emoções...

 

O apostolado do Irmão Charles, lá no deserto da Argélia, em Tamanrasset, foi um apostolado da bondade. E é isso que o Papa Francisco está realizando, em meio a mil conflitos. Pode-se dizer, então, que o papado de Bergoglio está no signo de Charles de Foucauld: no sentido de que a verdadeira essência do papado é ser um "irmão universal"?

 

Claro, é isso! Pode se perceber bem isso, para além dos tantos gestos, viagens e discursos do Papa Bergoglio, utilizado com uma bússola preciosa, sua encíclica Fratelli tutti, o coração pulsante de um projeto que - colocando em foco a complexa rede de relações entre cristãos e muçulmanos - é capaz de ser a prova de uma Igreja autenticamente, e corajosamente, em saída. Em ambos os casos, para De Foucauld e Bergoglio, o único parâmetro, o Modelo Único (como o primeiro o chamava), é, e não pode ser de outra forma, Jesus de Nazaré.

 

Daí a estreita relação que o Papa Francisco escolheu estabelecer com o eremita francês, elegendo-o como ponto de referência ideal e estrela guia de seu projeto de relações fraternas com o mundo muçulmano. Um projeto, obviamente, completamente antitético ao ventilado embate de civilizações que assolou a cultura ocidental após os trágicos atentados de 11 de setembro de 2001. Nessa perspectiva, Bergoglio está tecendo uma contra-narrativa sistemática em relação à recorrente narrativa de medo.

 

É nesse ponto de vista que se compreende o significado histórico de seu empenho contra os muros e todas as formas de guerra de religião, com o objetivo de esvaziar de dentro a máquina narrativa de milenarismos sectários que obscurece um suposto apocalipse iminente e o confronto final. Fazendo-nos compreender que, como de Foucauld bem entendera, em última análise e apesar dos alarmistas em contrário, hóspedes da nossa terra comum, somos todos irmãos (e irmãs).

 

Última pergunta: para os não crentes, ou para os indiferentes, o que uma figura como Charles de Foucauld tem a dizer?

 

Pois bem, um fato é que o nome de Foucauld se tornou, ao longo das décadas, uma bússola segura - eu diria essencial - para se orientar em múltiplos âmbitos: em particular, para aqueles que aceitam se deixar fascinar por uma espiritualidade do deserto acessível tanto para os crentes como para os (assim chamados) não crentes. “Em sua imagem – escreve Franca Giansoldati – talvez todos os fracassos da história possam se reconhecer”.

 

Mas já seu primeiro biógrafo, René Bazin, tinha percebido este aspecto, apresentando-o assim: "Foi o monge sem mosteiro, o mestre sem discípulos, o penitente que sustentava, na solidão, a esperança de uma época que não deveria ver…". E sobretudo tem razão o Padre Bernard Ardura, seu postulador na causa da santificação: se tantos amam o Irmão Charles é "porque o sentem próximo... Aqueles que o descobriram o sentem muito próximo porque encarna de alguma forma o ideal da fé cristã". E "aqueles que não são particularmente crentes certamente veem neste homem uma imensa humanidade".

 

De fato, o irmão Charles foi um homem que não suportava meias medidas, mediações, equilibrismos e, muito menos, compromissos, muitas vezes passando de um extremo ao outro, dos abismos da dissipação à glória mundana até a perfeição evangélica. Por isso, diante dele e de sua história como moderno pai do deserto, é impossível ficar indiferente: ou você se apaixona tentando saber tudo sobre ele, ou se recusa a se deixar envolver, diante daquilo que poderia também nos parece um idealista um pouco louco, incapaz de lidar com a dura realidade.

 

Tudo e imediatamente, como quando Charles, redescobre o cristianismo (literalmente, no sentido de que consegue retirar o véu que tornava depositária a religião familiar, à qual era obrigado a se adequar). A ponto de admitir, em 1886, quando já tinha vinte e oito anos: “Assim que acreditei que Deus existe, percebi que não podia fazer outra coisa senão viver só para ele”.

 

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