“Nós cristãos temos uma tarefa especial: transformar o sentimento natural de raiva em coragem”. Entrevista com Sviatoslav Shevchuk, metropolita da Igreja Greco-Católica Ucraniana e Arcebispo de Kiev

Foto: Wikimedia Commons

29 Abril 2022

 

Hoje na Ucrânia vemos efetivamente como o inimigo está expulsando massivamente os filhos e as filhas da Ucrânia. Ainda ontem, fontes oficiais do lado russo anunciaram que a Rússia expulsou e deportou mais de meio milhão de cidadãos ucranianos da Ucrânia. Quase 200.000 deles são crianças. 

 

"Se seguirmos a retórica pessoal, a linguagem, a terminologia do Papa desde o início da guerra, nota-se uma certa evolução. E isso é bom. Porque há um determinado movimento, uma mudança. Eu diria que esta é uma evolução em prol da Ucrânia", afirma Sviatoslav Shevchuk, metropolita da Igreja Greco-Católica Ucraniana e Arcebispo maior de Kiev-Halyč, no 64º dia de guerra na Ucrânia.

 

A entrevista com Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk é publicada por Chiesa greco-cattolica ucraina - Segretariato dell’Arcivescovo Maggiore  - Roma, 28-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

É impossível controlar as emoções quando vemos um garoto numa vala com um tiro na nuca. Como isso é possível, como? É preciso um coração de pedra para reagir a este crime de forma diferente. No entanto, acho que nós cristãos temos uma tarefa especial: transformar esse sentimento natural de raiva em coragem através do poder de Deus e da oração... Coragem não é apenas sair sentindo ódio e bater em alguém. Um homem corajoso é aquele que sabe vencer, que sabe resistir.

 

Eis a entrevista.

 

Na semana passada, os ucranianos ficaram indignados com o roteiro do Vaticano da Via Sacra, segundo o qual uma mulher ucraniana e uma russa deveriam carregar a cruz juntas em uma das estações. A reação da sociedade ucraniana foi comunicada ao Vaticano tanto pelo embaixador do Papa na Ucrânia quanto pelo senhor através do Secretário de Estado. No entanto, a procissão realizou-se com este símbolo de "reconciliação" dos povos. Como o senhor reagiu a esta decisão do Vaticano?

 

Para nós foi uma surpresa, assim como para o Vaticano provavelmente foi a reação dos greco-católicos, dos católicos romanos, da sociedade ucraniana e do Estado. Obviamente, na semana passada, iniciamos uma intensa troca de opiniões com várias estruturas do Vaticano. Descobriu-se que esses tipos de eventos são preparados com bastante antecedência. O texto da Via Sacra e os gestos da Via Sacra foram programados e escritos antes do início da guerra russo-ucraniana. Certamente, se tivéssemos tido conhecimento desses textos e desses gestos antes da guerra, nós também teríamos reagido de maneira um pouco diferente.

 

Mas quando o vimos no contexto da fase quente da guerra, depois de todos aqueles fatos horríveis de genocídio contra nosso povo, depois das visitas que fiz às nossas cidades e vilas que permaneceram sob ocupação - curta mas mortal - percebi que algo estava errado. Consequentemente, começamos a dialogar muito intensamente e a mudar alguma coisa. Algumas coisas conseguimos mudar, outras não.

 

O fato mais importante, que se tornou o foco da discussão da sociedade ucraniana, foi a questão da própria ideia de reconciliação. Essa ideia existe mesmo? Como podemos falar sobre reconciliação hoje? E se não for hoje, quando?

 

Em primeiro lugar, devo dizer que a própria ideia de reconciliação como tal é a pedra angular da fé cristã. A cruz é o símbolo da reconciliação entre Deus e o homem. E daí vem a reconciliação entre as pessoas. O apóstolo Paulo afirmou considerar que anunciar a reconciliação entre Deus e o homem é a principal missão de sua pregação apostólica. Portanto, nós cristãos não podemos rejeitar a ideia de reconciliação como tal.

 

No entanto, entendemos que quando se trata de reconciliação, especialmente no contexto da guerra, da agressão declarada da Rússia contra a Ucrânia, não estamos diante de uma reconciliação entre algumas ideias ou bons desejos, mas entre pessoas concretas que foram feridas. E essa ideia é muito delicada. Abusar dela poderia ter o efeito completamente oposto: as pessoas rejeitarão a ideia como tal, e isso levará a consequências irreparáveis. É por isso que é muito importante explicarmos a nós mesmos, ao mundo, até mesmo aos teólogos ou liturgistas do Vaticano que a reconciliação entre as pessoas é um longo processo de cura das feridas. E para que isso possa começar, determinadas condições são necessárias.

 

 

A primeira condição é parar de nos matar. Não se pode falar sobre curar feridas quando o inimigo constantemente as inflige a você. Para chegar à paz, é preciso estar vivo. Por isso chamei essa ideia de prematura, não ruim ou errada, mas prematura. Porque para poder coroar o que está acontecendo hoje desta forma, por assim dizer, todos nós devemos trabalhar e muito intensamente. Portanto, não podemos discutir hoje sobre gestos ou outros atos expressivos de reconciliação, em particular, entre os povos ucraniano e russo, nem pensar neles de forma emotiva.

 

O segundo momento, sem o qual não haverá nenhum início de reconciliação, é a condenação do culpado. Aqui falamos de justiça para com a vítima.

 

Por exemplo, não poderia ter havido qualquer reconciliação entre os povos polonês e alemão, iniciada pelo episcopado católico na década de 1960, se não houvesse o julgamento de Nuremberg, se o nazismo não tivesse sido condenado como ideologia e se - após a Segunda guerra mundial - não houve acontecido uma verdadeira conversão no povo alemão.

 

Em nossa situação, qualquer diálogo sobre reconciliação entre ucranianos e russos só pode ser iniciado quando o julgamento de Nuremberg por essa ideologia assassina declarada, como um verdadeiro manual de genocídio contra os ucranianos pelas publicações oficiais russas, incluindo a RIA Novosti, estiver concluído. Não se pode falar de justiça se os criminosos não forem julgados.

 

Por isso, talvez precisemos pensar no processo de reconciliação, rezar por ele e, talvez, um dia, talvez até tenhamos a coragem de pensar nele concretamente. Mas hoje não podemos fazer gestos de reconciliação porque os falsificaríamos e não seriam sinceros. Talvez este seja um idealismo interessante para os liturgistas que gostariam ter o sinal de "reconciliemo-nos todos". Mas para as pessoas que são vítimas desta guerra desumana, sangrenta e genocida, este tipo de gesto é muito ofensivo e doloroso. E eu disse isso abertamente.

 

Por que a Ucrânia não foi totalmente ouvida pelo Vaticano?

 

Este gesto de duas mulheres permaneceu [na Via Sacra]. Provavelmente, não poderia ser abolido totalmente, porque já havia sido anunciado e havia uma tentativa [de parte da sociedade] de ver quem eram aquelas mulheres. Acho que a reação da sociedade ucraniana deixou claro em termos inequívocos que elas não podiam representar toda a nação e o Estado.

 

Talvez se trate efetivamente da amizade de duas pessoas que há muito deixaram seus países (uma a Rússia, a outra a Ucrânia) e que trabalham juntas e mantêm contato uma com a outra. Mas sua amizade privada não pode se tornar o símbolo da amizade imaginária e desejável entre os povos. Ou seja, havia essa distinção aqui, e tinha que ser mantida em mente. É assim que eu interpretaria o gesto que todos viram naquela ocasião. Foi um gesto de pessoas particulares que não representavam nem o povo, nem a Igreja, nem o Estado.

 

Não são as únicas ações da Santa Sé que causam incompreensões. Por exemplo, em 17 de abril, o Papa reconheceu que a Ucrânia foi vítima de uma "guerra louca na qual foi envolvida". No entanto, a Rússia invadindo a Ucrânia não foi mencionada. Como podem se explicar afirmações tão vagas?

 

Se seguirmos a retórica, a linguagem, a terminologia pessoal do Papa desde o início da guerra, nota-se uma certa evolução. E isso é bom. Porque há um certo movimento, uma mudança. Eu diria que esta é uma evolução em prol da Ucrânia.

 

Por exemplo, a Rússia diz que não há guerra. Por esta palavra, alguém na Rússia pode ser preso. E o Papa disse: não há operação especial, há uma guerra louca que é uma derrota da humanidade, é uma loucura. Ele também usou a palavra "sacrilégio". Outro elemento muito poderoso: vimos quem é considerado pelo Papa culpado desta guerra. Além de falar da vítima, ou seja, dos ucranianos que foram injustamente agredidos, ele manifesta gestos e simpatias pessoais. Lembramos como ele levantou a bandeira de Bucha, a beijou e pediu uma oração incessante pela Ucrânia?

 

Voltando de Malta, ao dar entrevista a jornalistas, o Papa listou tudo o que o Vaticano tentou fazer pela Ucrânia naquelas poucas semanas: a missão dos dois cardeais, este apelo e algumas ações para acolher nossos refugiados. O Papa foi mais longe e disse quem era o culpado desta guerra. No entanto, ele não disse o nome: há alguém na Europa do Leste que está ameaçando o mundo com a Terceira Guerra Mundial e que iniciou a guerra contra a Ucrânia. Todos nós entendemos de quem estava falando, mesmo que você e eu teríamos apreciado saber de quem se trata, inclusive chamando-o pelo nome. Afinal, todos sabemos o nome da vítima. Gostaríamos de ouvir o nome do culpado.

 

É possível que a evolução nesta direção continue depois. Mas aqui eu gostaria de dizer que a Santa Sé tenta hoje estar acima das partes em conflito, para depois se tornar uma mediadora, uma ponte entre as outras duas. Esta é a peculiaridade da diplomacia do Vaticano: somente quando o lado do Vaticano está acima do conflito pode mediar entre os outros dois lados. Hoje, entre outras coisas, é amplamente utilizada para salvar a vida dos ucranianos. Em particular, diz respeito ao pedido de organização dos corredores verdes. Há agora um pedido para salvar Mariupol. A propósito, estamos falando sobre isso há 55 dias. E já houve várias ações diplomáticas em direção à Rússia para levantar o cerco desta cidade e salvar as pessoas. Eu diria que já estamos sentindo os resultados dessa abordagem.

 

 

Mas estar acima das partes em conflito às vezes amarra as mãos da Igreja em sua voz profética. Porque a voz profética é aquela que mostra o culpado. E sentimos um pouco a falta dessa voz profética. Mas em tudo isso nós, os bispos da Ucrânia, temos a oportunidade de nos tornar essa voz profética, de falar a verdade claramente sobre quem é o carrasco e quem é a vítima. Espero que esta evolução da retórica e das declarações do Papa continue na direção da posição do lado ucraniano, e que um dia o culpado seja condenado clara e nitidamente.

 

Quais são as perspectivas para a visita do Papa à Ucrânia hoje? Ele continua sempre tão esperado?

 

Acredito que essa visita seria muito útil para a Ucrânia. Em Kiev, estamos muito felizes quando as embaixadas retornam à capital. Isso significa que a comunidade mundial e seus diplomatas acreditam cada vez mais que a Ucrânia vencerá. Este apoio é muito importante para nós. A visita do Papa à Ucrânia seria, em primeiro lugar, um sinal de enorme atenção de todo o mundo e, em segundo lugar, de apoio e solidariedade. Então, o Papa se colocaria definitivamente do lado da Ucrânia, mesmo sem palavras ou declarações. Você sabe bem que às vezes este Papa não se expressa com palavras.

 

Porque ele não é uma pessoa que fala muito. Ele faz isso com gestos. Esta é a sua forma de comunicar, a sua forma de transmitir os seus pensamentos e atitudes. Já em novembro do ano passado ele me garantiu que queria vir para a Ucrânia. Obviamente, essa ideia agora assume um contexto diferente. Durante a entrevista com o Papa sobre a qual falamos no avião (depois de voltar de Malta) isso também foi perguntado pelos jornalistas. Ele disse que sim, ele tinha essa visita em sua mesa.

 

Ou seja, que estavam trabalhando nisso seriamente. Ninguém a havia colocado em uma gaveta ou de lado. Mas, pelo que eu entendi, a decisão final ainda não foi tomada. O Papa, de fato, falou sobre isso com o presidente [da Ucrânia, Volodymyr] Zelensky durante sua última conversa telefônica. Porque tanto o estado quanto nós estamos trabalhando para que essa visita aconteça. É por isso que devemos trabalhar nisso, devemos orar por isso e, consequentemente, devemos vencer sempre. Quando vencermos no campo de batalha de Donbass, haverá tudo: reconstruiremos nossas cidades e vilarejos, e o Papa certamente virá à Ucrânia.

 

Qual é o papel da Igreja na guerra hoje?

 

Eu me faço essa pergunta todos os dias. A palavra "guerra" também tem muitos significados. Existem diferentes guerras e suas fases, diversas manifestações, diversas formas. E, portanto, não há uma resposta única para todos os casos da guerra. Vou compartilhar com você não apenas algumas ideias, mas também a experiência que estamos adquirindo hoje. Quando os primeiros foguetes chegaram a Kiev na manhã de 24 de fevereiro, você sabe o que começamos a fazer espontaneamente? Todos os nossos bispos, os sacerdotes em Kiev, Kharkiv, Chernihiv, Sumy, Odesa ou Zaporizhia, sem distinção, correram para salvar a vida das pessoas. E tudo o resto estava subordinado a este imperativo: salvar e mostrar o valor da vida humana. À medida que os acontecimentos se desenrolavam, dividimos virtualmente as várias situações, as circunstâncias e o território da Ucrânia em três zonas.

 

A primeira é a zona de ações ativas. Kiev e a região faziam parte dela então. A reação e as ações concretas, que deviam ser produzidas lá, eram diferentes do que acontecia no oeste da Ucrânia. A segunda zona é adjacente às zonas onde o combate está ocorrendo. E a terceira é representada pelas regiões central e ocidental da Ucrânia, que são mais calmas. E em cada área nós, como Igreja, agimos de maneira diferente. Na zona de combate foi decidido unanimemente ficar, estar com as pessoas.

 

Nós estávamos lá e ajudamos os outros a sair. Tentamos criar abrigos antiaéreos, alimentar essas pessoas, vesti-las e fornecer a ajuda necessária. Mas, ao mesmo tempo, ajudamos as pessoas que queriam sair: com transporte, conselhos, contatos e assim por diante. Organizamos a logística para a entrega de ajudas humanitárias nesses focos de combate.

 

Na área adjacente aos focos de combate, construímos centros logísticos e centros de assistência para deslocados em movimento. Por exemplo, nas primeiras semanas, a única rota de fuga de que milhões de pessoas puderam usufruir, de leste a oeste, era a estrada de Uman para Vinnytsia, que depois continuava em direção a Khmelnytsky (porque a estrada Kyiv-Zhytomyr estava fechada). Este percurso não era adequado para o movimento simultâneo de tantas pessoas assim. A viagem de Uman a Khmelnytsky ou Lviv exigia pelo menos 27 horas. Imagine a massa de pessoas que estavam em viagem por todos aqueles dias! Naquela época, tentamos ajudar a reabastecer os carros com combustível, alimentar essas pessoas, aquecê-las e vesti-las. Quando alguém perguntava, oferecíamos a ele a possibilidade de pernoitar.

 

Mapa do território da Ucrânia em ocupação Russa (Fonte: Wikipédia)

 

Por outro lado, fizemos o possível para que outros caminhões se deslocassem do oeste para o leste. Houve circunstâncias em que os motoristas às vezes não tinham a coragem de viajar mais para o leste, chegando ao sul da região de Kiev, ou à região de Zhytomyr ou Vinnytsia. Nessas situações era necessário recarregar essa grande carga em carros menores e – percorrendo as estradas do interior - enviá-la para onde era mais necessária. Foi um trabalho enorme. Mas esses nossos centros logísticos funcionaram. Visitei-os e fiquei impressionado com a engenhosidade dos nossos sacerdotes e o grande trabalho dos voluntários.

 

Sem os voluntários e a resposta espontânea de pessoas de diferentes Igrejas, que se juntaram à missão da nossa Igreja, teria sido difícil fazer tudo isso. E a terceira zona é a Ucrânia Ocidental, mais calma, que acolheu refugiados. Era preciso acolher os refugiados, encontrar um teto sobre suas cabeças, proporcionar as condições necessárias, especialmente para mulheres e crianças. Em todas as três áreas, a nossa Igreja se reorganizou rapidamente. Fomos obrigados a passar as nossas atividades para os militares.

 

Qual é a situação com as comunidades da Igreja greco-católica ucraniana nos territórios temporariamente ocupados? Como são tratados pelos ocupantes?

 

Eu não o quero e não posso contar pela segurança daquelas pessoas. Mas posso dizer que tentamos manter contato com todos os sacerdotes. Graças a Deus, estão todos vivos. Estamos procurando maneiras de ajudá-los. Ninguém deixou seu serviço.

 

Estou muito orgulhoso dos nossos sacerdotes de Kherson. A gloriosa Chornobaivka está localizada a sete quilômetros de seu mosteiro. Estou orgulhoso de nossos padres de Melitopol e de outras cidades ocupadas no sul da Ucrânia. Sim, são chamados para várias conversas, sim, são feitas visitas etc. Mas continuam a fazer o seu serviço, a alimentar as pessoas, a ser praticamente o único apoio e ponto de referência nesses tempos difíceis.

 

Minha dor à parte é Mariupol. Um de nossos sacerdotes em Mariupol foi um dos últimos a sair durante este corredor humanitário. E na semana passada nossa casa da Caritas em Mariupol foi atingida por um tiro de um tanque e duas pessoas morreram. Ou seja, a Caritas Ucrânia, como estrutura de ajuda da Igreja, trabalhou até o fim, mesmo em condições tão extremas. Não temos informações suficientes no momento. É plausível que o posto avançado do ministério humanitário da Igreja ainda esteja paralisado. Mas fazemos o nosso melhor.

 

Quanto aos territórios ocupados e já liberados, mencionarei apenas dois centros. Chernihiv, onde nossos padres redentoristas sempre viveram com nosso povo, mesmo sob as bombas. Graças a Deus, todos estão sãos e salvos. Afinal, Chernihiv estava sob ocupação tática. Houve momentos em que não conseguíamos contatá-los porque não havia luz nem aquecimento. No entanto, eles viveram esses tempos heroicamente.

 

No entanto, um caso particularmente simbólico tornou-se nosso sacerdote de Slavutych com sua esposa. Eu estava tão preocupada com ele, eu orei tanto por ele! Houve um momento em que ele conseguiu sair de Slavutych com nossos militares e chegar a Kiev para receber ajuda humanitária. Eu o encontrei aqui, na catedral patriarcal. Ele me disse que, infelizmente, não poderia voltar logo porque os tanques russos haviam entrado e a estrada que ele havia tomado agora estava bloqueada.

 

Ele estava acompanhado por um oficial superior, a quem eu disse: “Senhor oficial, proteja aquele sacerdote. Porque tudo vai retornar de novo: os tanques, as casas, mas eu nunca mais terei um garoto como ele." E depois eles saíram e conseguiram entrar na cidade sitiada. Sua esposa grávida viveu os primeiros dias da ocupação e depois deu à luz seu terceiro filho, à luz de velas, em um hospital obstétrico escuro e frio. É um verdadeiro sacramento pascal. Houve um momento em que as tropas russas acabaram entrando em Slavutych. Eu o chamei imediatamente e lhe perguntei: “O que você está fazendo?" E ele respondeu: "Estou com as pessoas, com uma cruz, na frente de um tanque russo." Imagine! Fico com lágrimas aos olhos. E Slavutych resistiu.

 

Os maus tratos da Rússia em relação aos ucranianos despertam ódio e desejo de vingança em muitos. E os cristãos, a quem a Igreja ensina que a vingança é um pecado, não estão imunes a essa reação. É normal ter sentimentos desse tipo num momento assim?

 

Naquelas circunstâncias, experimentei uma certa evolução dos meus pontos de vista. Certa vez, quando eu era professor de teologia moral e me encontrava em um mundo de ideias piedosas e boas, eu avaliava certas coisas de maneira diferente. Alguns princípios e algumas verdades são eternos e não podem ser negados. Não há circunstâncias que possam derrubar o mandamento de Deus: "Não matarás". No entanto, quando eu mesmo adquiri toda essa experiência de guerra, vi como a nossa Kiev foi bombardeada e depois visitei todos os outros lugares [cidades e vilarejos libertados da ocupação], reconsiderei algumas coisas.

 

Talvez, em tais circunstâncias, possamos conhecer melhor uma pessoa vivente do que algumas ideias. A propósito, o Papa Francisco disse que o homem é mais importante que as ideias. Este é um de seus postulados, que também me ajudou a ser corajoso naquelas circunstâncias. Direi o seguinte: a reação de uma pessoa a tais circunstâncias provoca, obviamente, uma emoção de raiva. É impossível controlar as próprias emoções quando vemos um garoto na vala com um tiro na nuca. Como isso é possível, como? É preciso um coração de pedra para reagir a este crime de forma diferente.

 

No entanto, acredito que nós cristãos temos uma tarefa especial (e essa, aliás, é uma das regras do ascetismo cristão): transformar esse sentimento natural de raiva em coragem através do poder de Deus e da oração. A coragem é uma virtude que toma nossa reação de raiva como um material natural e a transforma. A coragem não é apenas sair sentindo ódio e bater em alguém. Um homem corajoso é aquele que sabe vencer, que sabe resistir. Rezo fervorosamente, vendo esses crimes, que em nossa fé, de uma raiva tão puramente humana, possamos chegar à raiva justa que constantemente perturbará nossa consciência: não temos nenhum direito de esquecer, nenhum direito de calar, nenhum direito de ficar sem fazer nada nem mesmo por um minuto. Devemos ser corajosos, resistentes e caminhar em direção à vitória. E quero desejar isso a todos nós.

 

Leia mais