Refugiados “reais” e “falsos”

Foto: Міністерство внутрішніх справ України | Wikimedia Commons

06 Abril 2022

 

"É verdade que os migrantes que sempre mandamos de volta não são europeus, como os ucranianos. Mas isso é motivo para rejeitá-los? Pertence à tradição mais antiga do Ocidente a ideia de que o hóspede, seja ele quem for, é sagrado justamente por ser 'outro' de quem o acolhe, por ser simplesmente um ser humano. Com mais razão, esta convicção deveria permear um povo, como o italiano e, mais geralmente, aquele europeu, que foi moldado pelo cristianismo".

 

O comentário é de Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), sede de Palermo, em artigo publicado por Settimana News, 03-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Enquanto a invasão determinada por Putin continua, apesar das negociações para uma suspensão pelo menos temporária das hostilidades, é impossível deixar de fazer algumas perguntas inquietantes levantadas por seus efeitos colaterais. De imediato me ocorre uma, que nasce da bela resposta da Europa ao caso dos refugiados.

São quase quatro milhões de pessoas desarraigadas de sua terra, que perderam tudo, e que agora se trata de acolher e, na medida do possível, integrar nos países europeus. A onda de generosidade que correspondeu a essa tragédia é admirável. Recursos humanos e materiais foram mobilizados de todas as partes do continente para que esses desventurados não fossem abandonados à sua sorte, mas encontrassem, na medida do possível, apoio e hospitalidade.

 

Dois pesos e duas medidas

 

Diante desse cenário, certamente reconfortante, não se pode evitar sentir um sentimento de estranheza. Porque essa mesma Europa, que acolhe de braços abertos e com uma solidariedade incondicional os ucranianos em fuga de sua terra devastada, até poucas semanas atrás fechou obstinadamente as suas fronteiras a refugiados de territórios não menos atormentados e a desastres humanos não menos dramáticos. Em alguns casos, foram feitos acordos com governos não europeus, como Turquia e Líbia, para que fossem detidos antes de partirem, não importa com que meios (os observadores dizem que, em geral, com os meios mais truculentos).

Em outros casos, eles são detidos nas fronteiras, impedindo sua entrada na soleira da porta. Por isso, em 2015, com fundos da UE, foi montado o campo de refugiados de Moria, na ilha de Lesbos, destruído em setembro de 2020 por um incêndio e substituído pelo de Kara Tepe. Um campo que nasceu para ser provisório, mas que na realidade se tornou um limbo - alguns dizem um inferno - do qual não era mais possível seguir em direção ao "paraíso" da Europa.

A Comissária Europeia para os Assuntos Internos, Ylva Johansson, declarou: “As condições em Moria, tanto antes como depois do incêndio, eram inaceitáveis... Não basta dizer 'nunca mais', temos de agir e todos os Estados-membros têm que fazer a sua parte". O termo "inaceitável" é na realidade é um eufemismo. No novo campo - assim como no antigo - falta água encanada, as famílias com crianças pequenas são obrigadas a ficar em barracas improvisadas ou contêineres, acomodações totalmente inadequadas para suportar o frio do inverno e o calor do verão.

Não há banheiros ou chuveiros, não há sistema de esgoto, não há assistência sanitária, nem são previstas regras para a prevenção do contágio do Coronavírus. A comida é frequentemente distribuída apenas uma vez por dia. Além disso, falta quase totalmente iluminação, mulheres e crianças à noite estão ainda mais expostas do que antes ao risco de sofrer abusos e violência. Neste campo de refugiados - o maior da Europa - os menores são 45% da população, mas bem poucas crianças vão à escola propriamente dita, no máximo uma minoria acompanha algum curso das ONGs.

Por que seres humanos deveriam concordar em viver nessas condições? A resposta é simples: porque são obrigados. O campo é na verdade uma prisão. Cercado por cercas de arame farpado e vigiado o tempo todo por policiais que controlam o perímetro e os acessos, impedindo a entrada de jornalistas. Exceto por três horas, duas vezes por semana, os migrantes são proibidos de sair, a não ser por emergências de saúde ou outros motivos médicos.

“As políticas de contenção colocam em risco a saúde das pessoas, obrigando-as a viver em condições comparáveis a uma prisão, com consequências devastadoras”, explicou Augusto Cezar Meneguim, diretor médico dos Médicos Sem Fronteiras em Lesbos. Quando o Papa Francisco foi a Lesbos em dezembro, ele denunciou que o empenho econômico da Europa “se resume à construção de muros e arame farpado”. "Por favor, isso é um naufrágio da civilização!" ele implorou.

 

Uma virada de 180 graus

 

As razões dos governos responsáveis por esta situação - amplamente apoiados, aliás, pela opinião pública de seus respectivos países - são bem conhecidas: não se pode acolher a todos (mas o ideal seria não acolher ninguém), para não correr o risco de ter de partilhar com eles recursos e empregos que é justo reservar aos próprios jovens. O resultado é que, de fato, apesar de algumas vagas declarações tranquilizadoras, quem, como a Itália, se encontra mais exposto ao fluxo migratório, é deixado sozinho para enfrentá-lo.

Por esta razão, também na Itália muitas vezes se comparou esse fluxo a uma invasão da qual é preciso se defender por qualquer meio. Não esqueçamos que, durante o primeiro governo Conte, o líder da Liga, Salvini, em sua função de ministro do Interior, construiu com suas espetaculares posturas nesse sentido um impressionante crescimento dos consensos.

Que diferença do que está acontecendo hoje em dia, com toda razão, em relação aos refugiados ucranianos! Mesmo Salvini não fala mais de "invasão", aliás em um recente discurso ele se disse "feliz por saber que até à noite outras 50 crianças e famílias que fugiram da Ucrânia partirão de ônibus para vir para a Itália". Talvez ele tenha esquecido que muitos outros jovens também tentaram encontrar um futuro na Itália, sem sucesso, como o adolescente que se afogou no Mediterrâneo com um boletim, cheio de boas notas, costurado no bolso, na esperança de que o ajudasse a ser aceito.

Ele teria roubado o emprego dos nossos garotos? Não acreditamos (na realidade, os estrangeiros encontram espaço em funções muito diferentes daquelas a que aspiram os jovens italianos). De qualquer forma, essa preocupação não parece afetar ninguém - felizmente! – neste momento, diante dos refugiados ucranianos. E dizer que se trata, segundo as estimativas, de quatro milhões, em comparação com os poucos milhares condenados a apodrecer no campo de refugiados de Lesbos ou deixados para se afogar no Mediterrâneo! É apenas para estes últimos que nunca houve, e ainda não existe, um lugar entre nós...

 

As "razões" de uma recusa

 

É verdade que os migrantes que sempre mandamos de volta não são europeus, como os ucranianos. Mas isso é motivo para rejeitá-los? Pertence à tradição mais antiga do Ocidente a ideia de que o hóspede, seja ele quem for, é sagrado justamente por ser "outro" de quem o acolhe, por ser simplesmente um ser humano. Com mais razão, esta convicção deveria permear um povo, como o italiano e, mais geralmente, aquele europeu, que foi moldado pelo cristianismo.

É precisamente na fé cristã que alguns procuraram um ponto de apoio para justificar a rejeição daqueles que, na opinião comum, são sumariamente rotulados como islâmicos. Já foi dito que se trata de defender a nossa identidade cristã. Desconsiderando - ou simplesmente ignorando - que muitos desses migrantes são coptas, evangélicos ou católicos. Mas mesmo se fosse verdade que seguem uma religião diferente da nossa, estaria no espírito do Evangelho rejeitá-los por isso em sua condição desesperada?

Finalmente, poder-se-ia apontar que os refugiados ucranianos estão fugindo de uma guerra devastadora. E os afegãos, os sírios, os líbios, os somalis, do que se acredita que eles fogem? "Embora muitas vezes falemos de guerras falsas, esses refugiados são verdadeiros e estão fugindo de guerras verdadeiras", disse Salvini para justificar sua mudança radical de curso. Talvez ele não saiba que no mundo existem dezenas de outras guerras "verdadeiras" terríveis demais - algumas travadas a uma curta distância de nós, como a que ocorreu na Síria ou a da Líbia...

Na melhor das hipóteses, o problema não é a guerra, mas a perspectiva de uma vida miserável, à qual esses migrantes ainda preferem o risco mortal de viajar nos botes. É isso que os torna menos "verdadeiros"?

São perguntas que devemos nos fazer. Sem por isso correr o risco de comprometer a nossa identidade. Ainda mais se acreditarmos que seja aquela cristã. Justamente o Evangelho convida-nos a acolher não só aqueles que nos agradam de imediato, mas também e sobretudo aqueles que são diferentes, mas não menos irmãos, menos irmãs do que os outros. Para garantir que nunca mais aconteça que um garoto que só queria ser feliz seja encontrado afogado, com seu boletim costurado no bolso, nas águas do nosso mar.

Em seu discurso de março em Malta, o Papa Francisco citou a voz "contracorrente" de Giorgio La Pira, que em um mundo ameaçado pela destruição se opôs à "férrea lógica dos alinhamentos" um sobressalto profético em nome da fraternidade universal. Outra voz ainda mais pertinente no clímax da atual tragédia é a de Giuseppe Dossetti que do cemitério de Casaglia (Marzabotto), onde está sepultado, nos dirige um aviso que não pode ser ignorado contra a guerra e a ideia perversa de que a única saída para sair dela seja armar-se, propagá-la e vencê-la. Inclusive, acrescentamos, para recuperar a Crimeia. Paolo Barabino, atual superior da família monástica de Monteveglio, fundada por Dossetti, a propõe novamente da Jordânia, onde está agora, com a carta publicada por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri.

 

 

 

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