Espiritualidade ateísta: sem Deus e sem carne. Artigo de Jesús Martínez Gordo

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07 Março 2022

 

"Como lembrei, a referência de André Comte-Sponville à sua experiência no bosque explicando-a como um momento de "eternidade" me fez lembrar dessa lenda. E, de passagem, convenci-me de que realmente poderia ser objeto de uma explicação "sem Deus", como propunha o filósofo francês; mas também como poderia ser a experiência de um crente, fosse ele deísta ou teísta", escreve Jesús Martínez Gordo, em artigo publicado por Settimana News, 25-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

André Comte-Sponville publicou, em 2006, um livro que chamou a atenção não tanto pelo título: A alma do ateísmo (na tradução espanhola), quanto pelo subtítulo: Introdução a uma espiritualidade sem Deus. Foram muitos os que não deram crédito ao que liam: um ateu que reivindicava uma espiritualidade! Provavelmente porque faziam parte daquele grupo que pensava que, se alguém é verdadeiramente ateu, não há lugar algum para a espiritualidade ou para a mística, mesmo que "sem Deus".

 

Imagem: André Comte-Sponville | Foto: Wikinade / Wikimedia Commons

 

No entanto, a suposição de A. Comte-Sponville não era tão nova quanto esses leitores surpresos acreditavam. Os estudiosos da história das religiões, da fenomenologia da religião e da espiritualidade ou da mística sabiam como essa proposta se inscrevia em uma longa tradição que afunda suas raízes nas Enéadas de Plotino (205-270 d.C.) e em outras contribuições mais recentes, como as de L. Wittgenstein (1889-1951), G. Bataille (1897-1962) ou J.-C. Bologne (1956). A sua não era, portanto, uma afirmação isolada ou de um franco-atirador, mas aquela de quem interpretava uma experiência que surgia em termos ateus ou "sem Deus"; e, portanto, não como culminação do caminho da salvação, mas confrontando-se com a explicação dada pelas tradições religiosas.

 

Essa experiência era reconhecida como espiritual, tendo muitos traços em comum com os fenômenos místicos das diferentes tradições religiosas; ainda que não vivida ou interpretada com as peculiaridades do mundo religioso, identificava-se como um fenômeno ou comportamento típico da espiritualidade ou da mística, neste caso, profana.

 

E o era porque, no caso de A. Comte-Sponville, tratava-se de uma experiência fundada no contato com a Realidade última, com o infinito ou o absoluto que, no mundo das religiões, é definido como o sagrado, fonte e culminação da salvação, e que é apresentado, entre outras definições, como "o todo"; o "eterno sim a um acordo perfeitamente bem sucedido"; "A verdade que me contém e aquilo que eu contenho"; “somente o real, porém, sem mais nada”, ou seja, sem alteridade e – sem querer esgotar todos os circunlóquios – “sem Deus”.

 

O testemunho

 

André Comte-Sponville relata a sua experiência contextualizando-a na natureza e no seu “silêncio perceptível”: “A primeira vez aconteceu num bosque do norte de França. Eu tinha 25-26 anos. Eu ministrava aulas de filosofia (era meu primeiro emprego) em uma instituição em uma cidade muito pequena, perdida nos campos, à beira de um canal, não muito longe da Bélgica. Naquela noite, depois do jantar, fui passear com alguns amigos naquele bosque de que tanto gostávamos. Estava escuro. A gente caminhava. Gradualmente, as risadas se silenciaram; as palavras tornaram-se raras. Ficava a amizade, a confidência, a presença compartilhada, a doçura e a noite... Não pensava em nada. Eu observava. Eu escutava, cercado pela escuridão da mata. A estupenda luminosidade do céu. O silêncio ruidoso do bosque: o farfalhar dos galhos, os gritos dos animais, o som abafado dos nossos passos. Tudo isso tornava o silêncio ainda mais perceptível”.

 

A contextualização é seguida pelo relato da experiência como tal, acompanhado de uma explicação: “E de repente... O quê? Nada! Ou seja, tudo! Nenhum discurso. Nenhuma sensação! Nenhuma pergunta. Apenas evidência. Apenas uma felicidade que parecia infinita. Apenas uma paz que parecia eterna. O céu estrelado acima de minha cabeça, imenso, insondável, luminoso, e nada mais em mim além daquele céu, do qual eu fazia parte, nada mais em mim além daquele silêncio, daquela luz, como uma vibração feliz, como uma alegria sem sujeito, sem objeto (sem outro objeto além do todo, sem outro sujeito além de si mesmo) e nada mais em mim, na noite escura, do que a presença ofuscante do todo! Paz. Uma imensa paz. Simplicidade. Serenidade. Alegria. Essas duas últimas palavras poderiam parecer um contrassenso; no entanto, não se trata de palavras: era uma experiência, um sim eterno, num acordo perfeitamente bem sucedido, que era o mundo. Eu sentia-me bem. Surpreendentemente bem! Tão bem que não sentia necessidade de dizê-lo, nem mesmo desejo de que não acabasse. Não tinha palavras, nem vazio, nem expectativa: puro presente da presença”.

 

Uma vez redesenhado o núcleo da experiência, as explicações começam a ter um peso crescente, tanto de maneira taxativa (recorrendo ao advérbio "somente" ou "unicamente"), quanto tentando transmitir sua singularidade por meio da justaposição: "Não havia ‘ego’, nem separação, nem representação: unicamente a apresentação silenciosa de tudo. Não havia juízos de valor: portanto, somente o real. Não havia insatisfação, nem ódio, nem medo, nem cólera, nem angústia: unicamente alegria e paz (...) Não havia perguntas. Como se poderia dar resposta? Havia somente a evidência. Havia somente silêncio. Havia somente a verdade, mas sem palavras. Apenas o mundo, porém, sem significado nem meta. Somente a imanência, porém, sem o contrário. Somente o real, porém sem mais nada (…) Isso bastava”.

 

 

Esse entrelaçamento de experiência e explicações é seguido por uma importante referência a Baruch Espinosa (1632-1677), um dos pais do deísmo moderno e, ao que parece, um ponto de apoio bastante importante tanto para as considerações que antecedem o relato dessa experiência quanto pelas que o seguem: “Eu disse a mim mesmo: isso é o que Espinosa chama de “eternidade… ”. E isso, vocês podem imaginar, a fez cessar, ou melhor, me expulsou dela (...). Eu tinha vivido um momento perfeito, apenas o suficiente para saber o que é a perfeição (…) Caramba! Eu tinha sentido e experimentado, de fato, e isso assumiu em mim o lugar de uma revelação, mas sem Deus”.

 

Imagem: Baruch Espinosa | Foto: Anefo / Wikimedia Commons

 

A dimensão e intensidade da experiência vivida é, insiste André Comte-Sponville em sua exposição, de indiscutível importância: “Foi o momento mais belo que já vivi, o mais alegre, o mais sereno e o mais evidentemente espiritual (... ). Intelectualmente, acredito que isso não prove nada, mas não posso fingir que isso não tenha acontecido.”

 

A experiência

 

Ao ler esse testemunho, percebi como ele satisfazia boa parte do que o fenomenólogo da religião, Juan Martin Velasco (1934-2020), havia descrito como uma experiência profana ou ateia, anos antes que A. Comte-Sponville comunicasse a sua.

 

Imagem: Juan Martin Velasco | Foto: reprodução / YouTube

 

Percebi isso quando ele se refere aos seus estados de consciência, marcadamente intensos e saboreados: a experiência o levou a desfrutar de uma paz imensa, a simplicidade e a serenidade, sentindo-se bem... Surpreendentemente bem! Tão bem que ele não sentia nenhum desejo de que tudo acabasse ou a necessidade de dizê-lo a si mesmo. Foi "um momento feliz", apenas o que basta para saber "o que era a ‘bem-aventurança’”; um momento de verdade, apenas o suficiente para saber, porém, através da experiência, que “era 'eterno'”.

 

Voltei a comprová-lo quando, referindo-se àquela experiência, Comte-Sponville a define como "a presença iluminadora do Todo"; o "silêncio perceptível"; a "luz com uma vibração feliz"; "um sim eterno a um acordo perfeitamente bem-sucedido"; um "puro presente de presença"; "A verdade que me contém e aquela que eu contenho" ou "a apresentação silenciosa de tudo". Claro, reconhecia que, do ponto de vista intelectual, isso não provava nada. No entanto, ele mesmo confessa que não podia ir adiante "como se isso não tivesse acontecido". E o que o havia habitado "por um momento" o remetia ao "absoluto", ainda que não pudesse precisar que valor tal conceito pudesse ter.

 

Em todo caso – eu insistia – o que era determinante não era fixar a atenção em frases ou expressões que pudessem parecer contraditórias, mas deter-se no "sim eterno" que as havia provocado para além do fato de que as palavras não pudessem expressá-lo. Quem, como Comte-Sponville, o havia experimentado daquela maneira, embrenhava-se em um saber que só poderia ser expresso por meio de uma linguagem muitas vezes poética e paradoxal, mas não carente de racionalidade.

 

A explicação

 

Encontrei-me, portanto, diante da centralidade da “experiência”, apesar das palavras e dos discursos. O que era determinante era o que "eu tinha provado, sentido, experimentado".

 

Ao mesmo tempo, aquela experiência era equivalente ao que B. Espinosa chamava de "eternidade" e com uma explicação ateia ou "sem Deus" da mesma. Era algo que não me parecia tão aceitável: entendi que a experiência de antecipação da plenitude final na relatividade do tempo podia ser explicada de forma crente, fosse deísta ou teísta. Para isso contribuiu o relato de uma famosa lenda ambientada no mosteiro de Leyre (Navarra).

 

Reza a lenda que ali vivia o abade Virila que, nascido em Tiermas (Zaragoza), em 870, e falecido no mosteiro por volta de 950, um dia se pus a pensar no que poderia consistir a "eternidade". Analisando a questão e não encontrando uma resposta satisfatória, decidiu-se dar um passeio. Era primavera. Ele se dirigiu até uma nascente próxima e escutou, encantado, o canto de um rouxinol.

 

Quando o encanto terminou, ele decidiu retornar ao mosteiro. Chegando à porta principal, encontrou-a fechada. Ele tentou abri-lo com suas chaves, mas estas, caramba! não eram aquelas certas. Por isso, teve que chamar e esperar que abrissem a porta para ele; o que foi feito por um monge que era completamente desconhecido para ele. Não lhe restou outro remédio senão apresentar-se e dizer quem era: o abade do mosteiro. Mas ele não foi reconhecido como tal. Nem mesmo pelos outros da comunidade, diante da qual ele foi levado. Ninguém acreditava no que estava acontecendo até que um monge - provavelmente o bibliotecário - se lembrou de ter lido o estranho desaparecimento de um abade do mosteiro centena de anos antes. Movido pela necessidade de corrigir aquele erro, foi buscar o texto e, diante da comunidade, começou a ler a passagem em que se narrava como, trezentos anos antes, o abade do mosteiro havia desaparecido.

 

Foi assim que o monge Virila percebeu (e, graças às suas explicações, também ao resto da comunidade) o que era a "plenitude" quando era experimentada no tempo ou o que - segundo a expressão de André Comte - Sponville - era percebido como "eternidade": um momento e pouco mais.

 

A lenda terminava contando como o rouxinol do encanto terminou entrado no mosteiro e, carregando o anel abacial no bico, colocou-o no dedo do monge Virila.

 

Como lembrei, a referência de André Comte-Sponville à sua experiência no bosque explicando-a como um momento de "eternidade" me fez lembrar dessa lenda. E, de passagem, convenci-me de que realmente poderia ser objeto de uma explicação "sem Deus", como propunha o filósofo francês; mas também como poderia ser a experiência de um crente, fosse ele deísta ou teísta.

 

 

Tal associação - lembro-me - permitiu-me perceber que, embora fosse certo que pouco havia a dizer sobre o testemunho prestado por André Comte-Sponville, havia algo a mais a ser notado sobre a explicação ateia que ele propunha da experiência de "eternidade". Na prática, não era a mesma do redator lenda do abade Virila. Isso tornou difícil para mim dar o aval a seu testemunho.

 

Percebi, ao contrário do filósofo francês, que a sua explicação "sem Deus" era, do ponto de vista racional, mais inconsistente do que aquela teísta que se encontra na lenda do abade Virila.

 

A consistência racional do deísmo

 

Era certo, disse a mim mesmo, que em ambos os casos houvera uma experiência de "eternidade". Explicando-a, até mesmo o redator da lenda do abade a percebia como transparência do que dizemos que é "Deus" ou, nas expressões do próprio André Comte-Sponville, como experiência do "tudo", "do sim eterno" ou "da verdade que me contém".

 

Quanto a Espinosa, considerei que, embora ele tenha sido um dos primeiros filósofos modernos a contestar a ideia de revelação sobrenatural, submetendo-a aos ditames da razão, ele não propiciou uma “cosmosvisão sem Deus”, mas sim deísta.

 

Deus - argumentava o filósofo judeu - sendo o autor de todo conhecimento, não só o era da chamada revelação sobrenatural (recolhida nas Escrituras), mas também da compreensão natural. Por isso, considerou que esta última forma de conhecimento (e a razão que lhe dava possibilidade) igualmente devia ser reconhecida como uma forma do conhecimento divino e, nesse sentido, como "revelação", levando em conta que Deus estava presente em todas as partes e tudo lhe era manifesto.

 

Lendo, disse a mim mesmo: há aqui um pensador que considera o cosmos, a vida e a história como transparência na qual é possível perceber o que dizemos quando falamos de "Deus", embora a referida percepção ou tomada de consciência entre em conflito com a Escritura ou com revelação sobrenatural.

 

Mas havia mais. À luz da origem divina dos modos de conhecimento, Espinosa defendeu a impossibilidade de haver contradição entre os dois. Em caso de conflito, prevalecia o conhecimento natural. Esta foi sua contribuição conclusiva, que lhe causou uma infinidade de aborrecimentos.

 

Para ele, o que até então era qualificado como "mistério" era, na realidade, algo ainda não conhecido e, portanto, pronto para ser investigado; e, tanto quanto possível, também cognoscível.

 

Argumentando dessa forma, ele investigou aqueles imaginários que - fundados unicamente na autoridade das Escrituras - ele percebia como providenciais e que se considerava impossíveis de serem alcançar racionalmente. Espinosa lançou as bases para uma nova maneira de pensar o que dizemos quando falamos "Deus" dentro dos limites da racionalidade humana, algo que permitia conhecer a existência daquilo que não pode ser encerrado no pensamento, mas do qual possuíamos uma quantidade inesgotável de indícios, sugestões ou antecipações.

 

Essa posição matizada explica como Espinosa formulasse e propusesse um novo imaginário de "Deus", exaltando a justiça e a caridade como suas notas mais determinantes: "Existe um (...) ser supremo ao qual todos devem obedecer para se salvarem, e que devem adorar com a prática da justiça e da caridade para com o próximo”. Esse é o culto e a obediência que ele aprecia.

 

É evidente, eu dizia, que o filósofo judeu se inclinasse para uma explicação racionalmente deísta, deixando sem solução o debate se o deísmo fosse panteísta (tudo é Deus, sem distinção ou separação) ou panenteísta (no todo, Deus transparece como Único). E era deísta, porque a razão lhe permitia livremente perceber "em toda parte", e de modo particular na justiça e na caridade, as transparências de um Deus "justo e misericordioso".

 

 

Tudo isso não era devidamente levado em conta por A. Comte-Sponville para quem as referidas práticas seriam, na melhor das hipóteses, apenas um exercício de justiça e misericórdia. Sem ulteriores explicações. Nunca transparência algo ou Alguém. Isso – eu pensava - era uma forma de argumentar que eu tinha que retomar para avaliar a consistência racional, algo que Comte-Sponville considerava suficientemente provada.

 

A consistência racional do ateísmo

 

Nem me pareceu que eu tivesse que aceitar, do ponto de vista racional, que A. Comte-Sponville proclamasse que só o mundo existia, “porém, sem significado nem meta. Só a imanência, porém, sem o contrário. Só o real, porém, sem mais nada”. Ou que ele proclamasse - e aqui achei difícil evitar um contraponto pessoal crítico - que "havia apenas a evidência" (subjetiva, é claro, pensei). "Havia apenas o silêncio" (do qual, é claro, o filósofo francês estava falando). "Havia só a verdade, porém, sem argumentos" (que A. Comte-Sponville esforçava-se em transferir para o conceito e o discurso). E, além disso, que tudo isso fosse presidido pela firme convicção de que "esta (verdade) era suficiente"; algo que - ainda que me parecesse uma tentativa de feliz conclusão - se aproximava muito daquela que poderia ser considerada como uma petição de princípio, sem dúvida, ateísta.

 

Meus problemas com o testemunho do filósofo francês não diziam respeito à sua experiência, mas à explicação - "sem Deus" - que ele propunha, bem como os raciocínios que ele trazia e em cuja consistência se delongava nas páginas que antecediam o testemunho transcrito. Cabia questionar que tipo de razão ele estava aplicando. Porque existem muitas maneiras de raciocinar, mas nem todas são capazes de investigar tudo da mesma maneira.

 

 

O motivo

 

Verifiquei que o motivo a que ele recorria, o levava a se deter ao descrever a experiência como tal, renunciando a se perguntar por que aquela experiência o provocasse. Encontrei uma maneira de proceder suspeitosamente relutante em aplicar o princípio da causalidade: por que essa experiência da totalidade absoluta era possível? Ou, caso se prefira, o que ou quem a provocava? Compreendi que me deter apenas a descrever a experiência e a sua intensidade era uma forma inaceitável de proceder para aqueles que haviam feito da razão livre o lugar para verificar a consistência racional de qualquer discurso em nossos dias. Eu não compartilhava sua maneira negativa de investigar. Parecia-me uma decisão totalmente inoportuna.

 

Foi naquele momento que percebi que tal forma de raciocínio também era aquela predominante (tivera a oportunidade de constatá-lo) em alguns ateísmos contemporâneos, particularmente entre os defensores das explicações materialistas e arriscadas quando, como acontecia, confundiam " descrever" a realidade explicando-a ou, melhor dizendo, quando pretendiam que descrever ou transferir o que fora observado e percebido para o formato lógico-matemático com prova empírica já era "explicar" ou que a "descrição" científico-empírica era a resposta à pergunta porque o que fora observado era como era, a partir do que está escrito.

 

Reaparecia a ociosidade intelectual que tinha se verificado nas explicações dadas pelos casualistas quando renunciavam a investigar (concretamente, a partir das provas ou evidências astrofísicas e protobiológicas) o porquê das mesmas. Também o autoritarismo dos materialistas, quando - aceitando o desafio - respondiam que as coisas eram assim porque sim.

 

E se, então, eu me encontrava com duas explicações fracassadas ou, melhor dizendo, com duas explicações racionalmente inconsistentes, ora, na proposta de A. Comte-Sponville, eu as encontrava como exaltação e absolutização da experiência como tal. Sem maiores considerações, eu elevava a descrição de uma luminosa experiência a uma suposta explicação muda. Digo "suposta" porque, ao descrever aquela experiência, era dada uma explicação, neste caso, "sem Deus".

 

A tentativa de explicação me pareceu pouco consistente, não tanto por seu ateísmo, mas por sua distância do espírito indagador de uma razão moderna.

 

 

Essa conclusão não me permitiu aceitar sua explicação "sem Deus" porque, de fato, ele se dissociava de muitos imaginários que nós mesmos teístas havíamos arquivado há tempo. Suspeitei, mais uma vez, que Comte-Sponville não tivesse considerado esse aspecto. Não só isso, porém. Assim como haviam feito muitos outros companheiros de percurso na fé ateísta.

 

O projeto vital

 

Havia, porém, algo mais: embora fosse certa a existência de uma experiência que possui as características formais daquela definida como religiosa, também era verdade que ela não incidia da mesma maneira no projeto vital de A. Comte-Sponville; isso pode ser deduzido comparando-a com a experiência de outras pessoas que lhe dão uma explicação propriamente religiosa.

 

Chamou a atenção - usando a linguagem "jesus-cristã" e não apenas um discurso ateológico muito questionável ou "sem Deus" - a forte carga "tabórica" ​​em que se realizava a sua experiência e, ao mesmo tempo, a absoluta incapacidade da realidade experimentada de orientar a vida na direção próxima ou semelhante ao programa das bem-aventuranças ou da realização do Calvário nos crucifixos de hoje, sem prejudicar (de forma alguma!) a dedicação, a sensibilidade ou a coerência ética de A. Comte-Sponville.

 

"O todo", "o absoluto" ou "o sim eterno", se realmente vivenciado como tal - observei - não deveria se limitar apenas a confirmar (ou incrementar) os nossos desejos de paz, de tranquilidade e de felicidade, mas deveria ser percebido e reconhecido também como capaz de questionar, alterar ou desarticular os próprios projetos e as próprias expectativas.

 

Isso era muitas vezes perceptível na grande maioria das experiências "jesus-cristãs" e "uni-trinitárias" e, certamente, em quase a totalidade daquelas veterotestamentárias. Bastava rever a história de Abraão, dos profetas, ou de outros personagens do Novo Testamento, começando por Pedro e Paulo, continuando com os outros apóstolos e aguardar os milhares de santos e mártires tanto do passado quanto, sobretudo, dos nossos dias.

 

Percebi que era o "teste decisivo" pelo qual qualquer experiência tinha que passar. Este - tanto aquele do "sim eterno" como o do "absoluto" - não pode consistir sempre e unicamente numa relação ou num encontro alegre, satisfatório, pacificador e agradável, mas deve ser também provocador, questionador e inquietante, mesmo se apenas em algumas ocasiões. Tratava-se de um "teste" baseado em critérios estritamente racionais: o "todo", se realmente era o que fundamentava e sustentava a experiência, devia transparecer também com sua capacidade de desarrumar e não apenas de satisfazer e consolar.

 

A "carne"

 

Se até então a experiência de A. Comte-Sponville tinha conseguido me fascinar e até me perturbar, a partir desse momento começou a abrir seu caminho o reconhecimento de uma ausência da "carne". "O todo" ou "o absoluto", a que se reportava a sua experiência, não era apenas "sem Deus", mas também "sem rosto"; algo que não me pareceu mais convincente do que o imaginário e a explicação "jesus-cristão" e "uni-trinitária", mas sim uma regressão.

 

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