Amar o não amável, perdoar o imperdoável

Foto: Unsplash

18 Fevereiro 2022

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, 20 de fevereiro de 2022 (Lucas 6,27-38). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A proclamação das Bem-aventuranças, no Evangelho segundo Lucas, assim como no Evangelho segundo Mateus, é seguida por um discurso de Jesus dirigido àquela multidão que viera para escutá-lo quando ele descera com os Doze da montanha (cf. Lc 6,17).

Em Lucas, esse ensinamento é mais breve e tem uma tonalidade diferente. Nele, não se registra mais o confronto, até mesmo polêmico, com a tradição dos escribas de Israel, mas emerge, em vez disso, a “diferença cristã” que os discípulos de Jesus devem saber viver e mostrar em relação aos gentios, aos pagãos no meio dos quais se colocam as comunidades às quais se dirige o Evangelho.

“A vós que me escutais, eu digo...” Essas são as primeiras palavras de Jesus, que introduzem uma demanda, um mandato, uma exigência fundamental: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam”. Certamente, essas palavras estão ligadas à quarta bem-aventurança dirigida aos discípulos perseguidos (cf. Lc 6,22-23), mas parecem ser dirigidas a cada ouvinte que quer se tornar discípulo de Jesus.

O amor aos inimigos, portanto, não é apenas um convite a uma extensão extrema do mandamento do amor ao próximo (cf. Lv 19,18; Lc 10,27), mas é uma exigência primeira, fundamental, que parece paradoxal e escandalosa. Os primeiros comentaristas do Evangelho, com razão, julgaram esse mandamento de Jesus como uma novidade em relação a toda ética e sabedoria humana, e os próprios filhos de Israel sempre testemunharam que, com tal exigência, Jesus ia além da Torá.

Por isso, devemos nos perguntar: é possível para nós, humanos, amar o inimigo, quem nos faz mal, quem nos odeia e quer nos matar? Se até mesmo que Deus, segundo o testemunho das Escrituras da antiga aliança, odeia os seus inimigos, os malvados, vinga-se deles (cf. Dt 7,1-6; 25,19; Sl 5,5-6; 139,19-22 etc.) e pede que os que creem nele odeiem os pecadores e rezem contra eles, será que um discípulo de Jesus poderá viver um amor para com quem lhe faz mal?

Assumimos como muito evidente que isso seja possível, enquanto deveríamos nos interrogar seriamente e discernir seriamente que tal amor só pode ser “graça”, dom do Senhor Jesus Cristo a quem o segue. Também na nossa vida cotidiana, não é fácil nos relacionarmos com quem nos critica e nos calunia, com quem nos faz sofrer, mesmo sem nos perseguir por causa de Jesus, com quem nos agride e torna a nossa vida difícil, cansativa e triste.

Cada um de nós sabe qual luta deve travar para não retribuir o mal recebido e sabe como é quase impossível alimentar sentimentos de amor no coração por quem se mostra inimigo, mesmo que não nos vinguemos dele.

Com esse mandamento, que ele mesmo viveu até o fim na cruz, pedindo a Deus que perdoasse os seus assassinos (cf. Lc 23,34), Jesus pede aquilo que somente por graça é possível, e, significativamente, é também Lucas quem testemunha que, com esse sentimento do amor pelos inimigos, morreu a primeira testemunha de Jesus, Estevão, que pediu a Jesus, seu Senhor, que não imputasse aos seus perseguidores a morte violenta que recebia deles (cf. Lc 7,60).

Jesus, portanto, rompe aqui com a tradição e inova ao indicar o comportamento do discípulo, da discípula: eis a justiça que vai além da dos escribas e fariseus (cf. Mt 5,20), eis a fadiga do Evangelho, eis – diria Paulo – “a palavra da cruz” (1Cor 1,18).

Amar (verbo agapáo) o inimigo significa ir ao encontro do outro com gratuidade mesmo que ele se oponha a nós, significa querer o bem do outro mesmo que seja quem nos faz mal, significa fazer o bem, cuidar do outro amando-o como a si mesmo.

E Jesus dá exemplos, indica também comportamentos exteriores a serem assumidos, expressados na segunda pessoa do singular: não opor resistência a quem te fere nem a quem te rouba o manto; dá a quem te estende a mão, seja quem for, conhecido ou desconhecido, bom ou mau, e nunca te sintas credor daquilo que te foi tirado.

Mas isso não significa assumir uma passividade, uma rendição diante de quem nos faz mal, e o próprio Jesus nos deu o exemplo disso quando, esbofeteado na bochecha pela guarda do sumo sacerdote, objetou: “Se falei bem, por que me bates?” (Jo 18,23).

Nesse ponto, Jesus formula a “regra de ouro”, que profere o discurso na segunda pessoa do plural: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. Regra formalizada positivamente, na qual a reciprocidade não é invocada como direito, muito menos como reivindicação, mas como dever para com o outro, medido sobre o próprio desejo: “Fazer aos outros o que eu desejo que seja feito a mim”.

Poucos anos antes do ministério de Jesus, o rabi Hillel afirmava: “O que não queres que seja feito a ti, não o faça ao teu próximo”. Mas Jesus dá a tal reivindicação uma forma positiva, pedindo para fazer todo o bem possível ao próximo, até ao inimigo.

Só assim, amando os outros sem reciprocidade, fazendo o bem sem calcular uma vantagem e dando com desinteresse sem esperar pela restituição, é que se vive a “diferença cristã”. Nesse comportamento, há a conformação do discípulo ao Deus de Jesus Cristo, aquele Deus que Jesus narrou como amoroso, capaz de cuidar dos justos e dos pecadores, dos crentes e dos ingratos.

Se Deus não condiciona o seu amor à reciprocidade, a receber uma resposta, mas dá, ama, cuida de toda criatura, o cristão também deveria se comportar desse modo no caminho rumo ao Reino, no meio da humanidade da qual faz parte.

Depois de reafirmar o mandamento do amor aos inimigos, Jesus faz uma promessa: haverá “uma recompensa (misthós) grande” nos céus, mas já agora, na terra, aqui, os discípulos se tornam filhos de Deus porque se cumpre neles o princípio “tal Pai, tal filho”. Imitar Deus até ser seus filhos e filhas: parece uma loucura, uma possibilidade incrível, mas essa é a promessa de Jesus, o Filho de Deus que nos chama a nos tornarmos filhos de Deus.

Se, na Torá, o Senhor pedia aos filhos de Israel em aliança com ele: “Sede santos, porque eu sou Santo” (Lv 19,2), e isso significava ser distinto, diferente em relação à mundanidade, em Jesus essa advertência se torna: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”.

Na tradição das palavras de Jesus segundo Mateus, o mandamento ressoa assim: “Sede perfeitos (téleioi) como o vosso Pai que está nos céus é perfeito” (Mt 5,48).

Aqui, no entanto, o que se evidencia é a misericórdia de Deus. Por outro lado, ainda segundo os profetas, a santidade de Deus era misericórdia, mostrava-se na misericórdia (cf. Os 6,6; 11,8-9). A misericórdia, o amor visceral e gratuito do Senhor que é “compassivo e misericordioso” (Ex 34,6), deve se tornar também o amor concreto e cotidiano do discípulo de Jesus pelos outros, amor ilustrado por duas sentenças negativas e duas positivas.

Acima de tudo: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados”, porque ninguém pode tomar o lugar de Deus como juiz das ações humanas e daqueles que são por elas responsáveis. Preste-se atenção e se compreenda: Jesus não nos pede para não discernir as ações, os fatos e os comportamentos, porque, sem esse juízo (verbo kríno), não se poderia distinguir o bem do mal, mas nos pede para não julgar as pessoas.

De fato, uma pessoa é maior do que as ações malvadas que faz, porque nunca podemos conhecer o outro plenamente, não podemos medir até o fim a sua responsabilidade. O cristão examina e julga tudo com as suas faculdades humanas iluminadas pela luz do Espírito Santo, mas se detém diante do mistério do outro e não pretende ser capaz de julgá-lo: só a Deus cabe o juízo, que deve ser devolvido a ele com temor e tremor, reconhecendo sempre que cada um de nós é pecador, é devedor para com os outros, solidário com os pecadores, necessitado como todos da misericórdia de Deus.

Portanto, cabe ao discípulo – eis as afirmações positivas – perdoar e doar: per-doar é fazer o dom por excelência, sendo o perdão o dom dos dons. Mais uma vez, as palavras de Jesus negam toda possível reciprocidade entre nós, humanos: só de Deus podemos esperar a reciprocidade! O dom é a ação de Deus e deve ser a ação dos cristãos em relação aos outros homens e mulheres.

Então, no dia do juízo, aquele juízo que compete somente a Deus, quem deu em abundância receberá do Senhor um dom abundante, como uma medida de trigo que é calcada, cheia e transbordante. A abundância do dar hoje mede a abundância do dom de Deus amanhã.

A “diferença cristã” tem um preço alto, mas, pela graça do Senhor, é possível.

 

 

 

Leia mais