“Vivemos em uma grande Babel onde também a linguagem religiosa deveria mudar”. Entrevista com Gabriella Caramore

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10 Dezembro 2021

 

De 1993 a 2018, ela idealizou e conduziu uma transmissão da Rádio Rai 3: Homens e Profetas. Isso é suficiente para justificar uma conversa sobre o "mundo depois". Na página da web de Gabriella Caramore, autora e estudiosa (La parola di Dio [A palavra Deus], seu último ensaio publicado pela Einaudi em 2019), na aba "rádio" é possível ouvir diálogos e lições que vão desde "pintar Deus" ao pensamento religioso de Leon Tolstoi, dos conceitos de "culpa, pena, reeducação" às raízes cristãs da Europa. Com ela, homens leigos e de fé que, num tempo confuso, animam, quase incansavelmente, a indagação sobre a transcendência e o humano.

 

A entrevista com Gabriella Caramore é de Gianni Cuperlo, publicada por Domani, 09-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

 

Então, talvez possamos começar pela ligação entre essas duas dimensões. Em um romance de alguns anos atrás (O clube dos otimistas incorrigíveis, Salani 2010), Jean Paul Guenassia ambienta a história em Paris no final da década de 1950 e ali, na sala dos fundos de um bistrô, o protagonista entra em contato com um grupo de refugiados do Leste Europeu, perseguidos políticos, porém ainda ligados à utopia da revolução possível. A razão do paradoxo é que na "terra prometida" eles não buscavam a "terra", mas sim a "promessa". Depois de meio século em que foi negado o direito de palavra à ideologia, às vezes até a um pensamento projetado para além do semestre, podemos pensar que ainda exista um espaço leigo, terreno, eu gostaria de dizer "político", para uma "profecia" ou nós somos prisioneiros de um pragmatismo em que os valores se reduzem à retórica?

 

Não sei se pode haver um espaço "terreno" para palavras como "promessa" ou "profecia". E talvez nem haja necessidade. O teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, morto pelos nazistas por conspirar contra Hitler, dizia que aquilo que na linguagem bíblica é chamado de "promessa" na linguagem contemporânea é chamado de "sentido". Pois bem, parece-me que o que podemos fazer é encontrar um sentido, uma direção, um percurso para a nossa vida, que possivelmente possa ser compartilhável com a vida dos outros.

 

Essa vertiginosa pluralidade, em muitos aspectos dramática, que é característica da época em que vivemos, no entanto, permite-nos agarrar uma oportunidade: aquela de uma ruptura na compactação dos "valores" dominantes: pragmatismo, retórica, mas. também se poderia dizer - abusando de uma imagem talvez muito óbvia - dependência da comunicação das mídias sociais, influenciabilidade de juízo, falta de pensamento crítico, fraqueza de uma tensão para a realização de projetos. Aqui e ali pode se encontrar espaço para abrir brechas que possam contradizer o peso deste tempo, e é nelas que devemos nos concentrar, é nelas que devemos agir. Não sei, realmente, se podemos falar de "profecia". Talvez seja uma palavra demasiado conotada historicamente.

 

Mas se por "profecia" podemos entender a coragem de ousar a verdade, a audácia de contradizer os poderosos, o risco pessoal e a tensão para um bem coletivo, então, sim, aqui e ali podemos também falar de "profecia". Só que no tempo contemporâneo é necessário que a certeza da "promessa" seja substituída pela incerteza da "indagação".

 

Há alguns anos, no ciclo das conferências dominicais Massimo Cacciari traçou o percurso de uma Europa sólida em suas raízes, cristã na evolução, animada pelos mitos fundadores do Ocidente (Hamlet, Fausto, Dom João) e condenada a viver no "ocaso". Era o outono de 2016.

 

Hoje, inclusive por efeito da pandemia, aquele “ocaso” parece tender a um novo “amanhecer” com decisões de ordem financeira e, consequentemente, política, que vão na contramão das lógicas anteriores. Ora, repensando na utopia (ou profecia), podemos imaginar que o divisor de águas destes últimos meses nos devolva aquela matriz ética, até mesmo visionária, que marcou o arranjo das nações vencedoras e perdedoras depois do Holocausto?

 

Acho difícil pensar isso. O "desenho histórico" da Europa nascido na segunda metade do século XX deveria, de fato, ser "redesenhado". Hoje está em jogo um novo cenário internacional, um novo entrelaçamento de problemas que tornam a situação mais confusa do que poderia parecer em meados do século XX, quando tínhamos a ilusão de ter encontrado (à custa de muitos silêncios – o principal:, aquele sobre o colonialismo - e de devastadoras mentiras – a principal: os crimes cometidos pelos vencedores sobre os vencidos) uma distinção clara entre o bem e o mal. Hoje está tudo mais misturado, as escolhas são mais complicadas. E mesmo que, positivamente, maior é a possibilidade de desenvolver um pensamento crítico sobre o mundo, certamente fica enfraquecida a percepção de algo em que se apoiar, sobre o qual se alavancar.

 

Acredito que isso envolve o plano da política, mas acredito que envolve também, por exemplo, o âmbito do religioso. No Ocidente, por uma série de razões distintas, desapareceram a credibilidade e a confiança na Igreja, e nas Igrejas, abrindo assim o caminho para um agnosticismo generalizado. Isso não é necessariamente ruim. Aliás, uma abordagem crítica da história das comunidades religiosas ajuda a compreender melhor o presente. E se essa abordagem crítica também questionou a imagem de um Deus demasiado à medida do homem e muito manipulável pelos poderes religiosos e pelos devotos de todas as épocas, considero que seja uma grande conquista.

 

Purificar a ideia de Deus, a ponto de reconduzi-la àquela essência de justiça, liberdade, benevolência, pacificação que ao longo dos séculos foi revestida demais de máscaras e artifícios, acho que pode ser uma boa maneira de falar sobre o divino no nosso tempo, saturado daquelas imagens idólatras que as doutrinas queriam nos induzir a honrar.

 

 

A “nossa” Europa é o resultado de uma pacificação após séculos de ódio e conflitos. Mas em troca de que sacrifícios, quando compararmos o continente de agora com aquele abaixo de nós, onde a explosão demográfica e a exploração dos recursos alimentam a miséria e a busca da salvação? Nos últimos anos, respondemos a esse capítulo da história monetizando o drama. Na Turquia há uma ditadura, mas nós pagamos bilhões para que Erdogan segure centenas de milhares de pessoas sírias em fuga. É possível que seja apenas o papa de Roma a guiar a oposição a similar lógica? Em outras palavras: onde termina hoje a Europa?

 

É uma pergunta justa. Tenho a impressão de que nesta fase histórica a Europa “não termina”. Já não é mais possível iludir-se de que existem destinos separados, delimitados por fronteiras, nem para os indivíduos nem para as nações. Hoje tudo está conectado com tudo, queira se ver ou não. Além disso, aquela da Europa é também uma geografia incerta inclusive no plano político e cultural. Se já em seu interno não for sustentada por valores plenamente compartilhados, as fronteiras resultam ainda mais desgastadas, conflitantes, ou indecifráveis com o resto do mundo, com o qual inevitavelmente se confronta.

 

A ideia da Europa desmorona face ao drama dos refugiados, dos campos de concentração atrás de muros ou dos que morrem no mar, mas desmorona também diante da exploração predatória dos recursos, da persistência de imensas injustiças sociais, de um uso inconsequente das riquezas, da indiferença diante da miséria, do silêncio sob o qual se escondem ações moralmente indignas e da incapacidade de encontrar um caminho de justiça, de medida, de cuidado com o ser vivo.

 

Haveria necessidade de análises lúcidas, de assumir responsabilidades, de elaborar projetos alternativos.

 

Para dizer a verdade, análises existem, em muitas partes do mundo existe mobilização da sociedade civil, existe capacidade de denúncia, e também de fazer projetos. Não existe apenas o Papa de Roma que expressa a contrariedade a essa lógica impiedosa. No entanto, faltam canais para traduzir essas instâncias em ações amplas, plausíveis e compartilhadas.

 

 

Sobre onde termina a Europa, existe uma definição sugestiva que defende que, uma vez que o continente não tem fronteiras definidas, pode-se pensar que termina onde encontram um fim os valores de sua civilização. E aqui nossos pensamentos corre para a dupla herança de Atenas e Jerusalém. Naquela de Atenas há os conflitos sociais e políticos. Em Jerusalém religiosidade e transcendência. História sugestiva, mas ainda válida para gerações ligadas a um saber filtrado por instrumentos e linguagens que negam justamente a complexidade? Em suma, a transcendência é compatível com a rapidez de nosso tempo histórico?

 

Tenho a impressão de que as categorias que nos guiaram no passado hoje são estreitas, mas na grande Babel em que vivemos temos dificuldades de encontrar outras mais eficazes. Por exemplo, as categorias de “Atenas” e “Jerusalém”, nas quais por muito tempo consideramos encontrar as matrizes da herança europeia, hoje nos parecem demasiado rígidas, estreitas, limitadas. Aqueles dois mundos já incluíam dentro deles uma complexidade de nuances e interseções com outras culturas que só agora estamos começando a intuir. Com maior razão, a complexidade em que vivemos hoje nos parece ingovernável, e de fato é. Mas não temos outro caminho senão reconhecê-la, tentar decifrá-la, familiarizar-se com ela, embrenhando-nos por trilhas íngremes, tentando identificar objetivos comuns. Além disso, sim, é verdade que o nosso tempo histórico nos joga numa pressa que é inimiga da complexidade e flerta facilmente com a simplificação. Um trabalho longo e paciente deve ser feito não apenas para decifrar seus códigos, mas também para reinventar novas possibilidades, para criar novos percursos.

 

Isso tudo é problemático. Requer liberdade e coragem, responsabilidade e uma paciência ativa. Mas isso sempre foi exigido às grandes épocas de transformação. Também a linguagem religiosa deveria ser repensada, reformulada, questionada. Por exemplo, aquela que chamamos de "transcendência", e à qual, nas religiões do Ocidente, muitas vezes foi dado o rosto antropomórfico de um Deus às vezes benévolo ou punitivo, misericordioso ou cruel, compassivo ou indiferente, deveria agora ser redefinida à luz do que é maior do que nós e nos assoma, do que é incognoscível, de uma magnitude que se assemelha à dos infinitos universos que estamos explorando e que tememos nunca podermos alcançar.

 

De resto, são as próprias Escrituras que nos indicam essa via, proibindo-nos de fazer qualquer imagem do incognoscível que deforme sua substância, e capturá-la em um nome artificioso que diminuiria sua grandeza. (Este é o sentido do segundo e do terceiro mandamentos). Mas isso também contribuiria para reduzir o pomposo e agora insuportável antropocentrismo: somos criaturas pequenas, perdidas em uma imensidão sem limites, e nossas minúsculas histórias deveriam ser vistas com mais compaixão e mais sabedoria.

 

 

Em 11 de fevereiro de 2013, a "renúncia" de Bento XVI. Anos depois, o que o "gesto" de Ratzinger significou em termos de ruptura com um tempo que não podia contemplar um evento semelhante? Mas, sobretudo, se aceitarmos para João Paulo II a descrição de "evangelizador" e para Bento XVI aquela de "teólogo", podemos definir Francisco como um "profeta"?

 

Há saudosistas que gostariam de continuar a ver na Igreja e nos seus representantes emanações na terra da vontade divina. Precisamente por isso, o "gesto de Ratzinger" teve um significado muito importante: mostrou como a pessoa do papa não seja de forma alguma aquela figura sagrada que durante séculos a Igreja oficial quis que os fiéis acreditassem.

 

Ele é simplesmente um ser humano, com determinadas tarefas dentro da comunidade dos fiéis (não por acaso o Papa Francisco quis imediatamente esclarecer que ele é o "bispo de Roma", não um "sumo sacerdote" nomeado pelo céu), mas é um ser humano, destinado como todos a erros, decadência, eventual incapacidade de levar a termo o seu mandato.

 

Foi um grande golpe desferido à autoridade indiscutida da Igreja e de seu "pontífice", ainda que se tenha tentado mostrar esse aspecto como secundário, diminuído, colocado entre parênteses. Para falar a verdade, sinto certo embaraço em "definir" o caráter dos últimos papas. Não sou uma conhecedora das dinâmicas internas da Igreja.

 

O que posso dizer, como observadora, é que esses papas obviamente tiveram suas luzes e suas sombras. João Paulo II com sua força magnética se impôs à atenção do mundo, mas foi muito conservador dentro da Igreja, e seu projeto de “evangelizar” a Europa e o mundo contribuiu para a difundir a imagem de uma Igreja como única detentora da verdade e da moral. Bento XVI - repito, esta é só a minha impressão - elaborou uma teologia certamente ambiciosa, mas não à altura das transformações dos tempos (lembrem-se seus "princípios não negociáveis"), desajeitada diante da realidade de um mundo em turbulência.

 

O Papa Bergoglio é aquele que, a meu ver, recolocou no centro da pregação com maior vigor as palavras do Evangelho, destinadas a um mundo em sofrimento como aquele em que vivemos. No entanto, ele fica enredado na pesada herança de uma Igreja imóvel, por vezes prisioneiro de uma linguagem inadequada à contemporaneidade, na impossibilidade de ser radical até ao fim, como talvez gostaria. Profecia? Talvez. Contanto que essa palavra não seja reconduzida aos padrões da sacralidade, inclusive incompatível com as Escrituras. Os profetas eram, em sua maioria, pessoas marginalizadas pela sociedade, que assumiam para si a ingrata tarefa de falar uma palavra de verdade.

 

 

“A carestia de felicidade, devido à pobreza das relações, pode se tornar mais desastrosa e desumanizante do que a carestia de alimento (...) A economia acreditou por muito tempo que podia abrir mãos de entrar no território das relações humanas”: são frases de Luigino Bruni, economista que nunca concordou em tornar a pessoa subalterna a qualquer outra prioridade, inclusive o lucro. Afinal, que "o objetivo da política" seja a "felicidade" é um conceito de Aristóteles. Pode-se dizer que, diante do ocaso de uma ideologia (aquela marxista), a cristandade expressa uma religiosidade participante, consciente e intencional de um moderno anticapitalismo?

 

Não saberia dizer se a felicidade é “o objetivo último do homem”. A felicidade se apresenta como um clarão de luz, a irrupção na vida comum da beleza, da alegria, da plenitude do encontro, da criatividade. Também duvido que exista um "objetivo último" da vida humana. Não porque a vida humana seja um fluxo insensato cheio de nada. No que me diz respeito, evito qualquer fórmula niilista.

 

Mas uma coisa é tentar dar sentido à própria vida e à dos outros, tentar aliviar a dor, inserir fragmentos de bem, construir algo que possa agregar bem-estar (e por que não, também felicidade) ao mundo em que se vive; outra bem diferente é pensar que a vida esteja destinada a um fim predeterminado.

 

No que diz respeito a tradição cristã, que certamente manteve viva, ao longo dos séculos, uma instância de justiça, altruísmo, misericórdia (literalmente: "estar com o coração ao lado dos pobres"), também é necessário lembrar o quanto essa mesma tradição tenha estado muitas vezes do lado dos poderosos, dos opressores, dos violentos.

 

Também não se pode esquecer como o anticapitalismo da Igreja tenha frequentemente coincidido com seu feroz antimodernismo, que expulsou seus melhores espíritos de seu corpo.

 

Mas, neste ponto, como sair dessa? Claro, não se trata de substituir uma "ideologia" por outra. E se o cristianismo se propusesse a expressar um "moderno anticapitalismo", temo que isso se tornaria, por sua vez, um processo ideológico. Talvez se trate de extrair da tradição cristã, como de outras tradições, religiosas ou não, aqueles núcleos de palavras, gestos, narrativas, práticas que possam constituir um denominador comum para aumentar a qualidade de vida na terra. E propô-los, compará-los, submetê-los à discussão, antever sua transformação, com a coragem e a humildade de quem busca.

 

 

Vou citar um belo ensaio de Giacomo Costa e Paolo Foglizzo (Il lavoro è dignità. Le parole di Papa Francesco, Ediesse 2018): “O Papa Francisco não tem medo de lidar com o conflito social; aliás, convida a assumi-lo. Por isso, quando fala de empresa, investimentos e finanças, não usa meias palavras, mesmo quando tem que ir contra o pensamento dominante”. O caráter inovador de sua proposta deriva da inclusão da preocupação com o trabalho dentro de um paradigma que capta as conexões com todos os aspectos da única crise socioambiental diagnosticada pela Laudato Si’. É correto dizer que está nesta chave a possibilidade de Bergoglio de transformar a missão secular da Igreja?

 

No final, acredito que isso possa ser dito. Assim como a civilização europeia não pode se deter em modelos passados, mas é obrigada a olhar para uma nova ideia de convivência, assim também o cristianismo deveria, para poder sobreviver, sair do torpor em que parece envolto e ousar olhar para uma renovação de sua linguagem, de suas práticas, de suas esperanças.

 

Isso nem mesmo remotamente significa um esquecimento de suas "raízes". Na verdade, especialmente olhando para as raízes de sua história, se perceberia que sua realidade não é feita apenas de papas, instituições, doutrinas sociais, fundações, documentos, organizações, etc. Existem muitas outras realidades em seu interno. Mas como vivemos de fato numa época que - como afirma o próprio Bergoglio, e como o Cardeal Martini lucidamente afirmava - decretou o fim da cristandade, pois a fé já não constitui mais o pressuposto da vida comunitária, caso se queira salvar algo do Cristianismo é preciso tirá-lo dos lugares fechados, dos tabernáculos como das doutrinas, e fazê-lo reviver como pequena semente de coisas boas lançada no meio dos capinzais do mundo.

 

Isso já acontece, em muitas partes do mundo, em pequenas comunidades, tanto leigas como religiosas, em famílias, mosteiros, em locais de dor e em locais de solidariedade. A Igreja, como também disse o Papa Bergoglio, deveria tornar-se minoria, abandonar as vestes suntuosas e imperiais do magistério, mudar o vocabulário doutrinal que não sabe mais se fazer escutar no mundo, e manter aceso o trêmulo fogo de um "pequeno bem". como dizia Vasily Grossman, para mostrar que outro mundo é possível. O resto cabe à polis. À sua responsabilidade. Ao seu sentimento de justiça, de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

 

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