“Caminhamos para um novo colonialismo”. Entrevista com Yuval Noah Harari

Fonte: Pixabay

19 Novembro 2021

 

“Se tenho algum superpoder, é o de ver as coisas como são na realidade”, disse Yuval Noah Harari (Israel, 45 anos), que afinou essa visão com anos de meditação para não se distrair com o barulho mental e se concentrar no importante. Este historiador e filósofo social que se atreveu a contar o passado da humanidade em Sapiens, o futuro em Homo Deus e o presente em 21 lições para o século 21, tornou-se um fenômeno editorial.

 

Agora, publica Os pilares da civilização, o segundo volume de Sapiens (edição em quadrinhos), uma adaptação de seu texto mais ambicioso, que segue batendo recordes. “Estamos na década mais crítica da história”, afirma Harari, que considera que o destino do ser humano está em jogo.

 

A entrevista é de Carlos Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal, 14-11-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Durante a crise, escutávamos os economistas, mas agora os filósofos é que estão na moda. Vocês são os novos gurus?

 

Espero que sim! Precisamos dos filósofos mais do que nunca porque muitas das perguntas filosóficas, que antes eram puramente teóricas, agora se tornaram questões de engenharia prática. Um carro autônomo deve tomar decisões éticas. O famoso dilema entre atropelar uma criança ou bater em um caminhão que vem de frente...

 

 

E estamos no trabalho de refletir?

 

A maioria das pessoas não embarca em uma viagem séria de autoexploração porque descobre muitas coisas que não gostam nelas mesmas. Mas, agora, a tecnologia está nos obrigando a fazer essa busca espiritual. Pagaremos caro, caso não a façamos.

 

Por quê?

 

Porque estamos imersos em uma corrida para hackear a humanidade em geral e você em particular. E se deve fazer o esforço de estar um passo à frente de seus competidores: das grandes corporações, dos governos. Para vencer, você deve se conhecer melhor do que eles lhe conhecem.

 

A biotecnologia também levanta questões espinhosas...

 

Sem dúvida. Até que ponto podemos mudar o corpo e a mente com engenharia genética, ou com cirurgia, ou com uma interface cérebro-computador? Mas as perguntas de fundo são as de sempre: o que significa ser uma pessoa? Quais qualidades humanas são valiosas? Os filósofos refletem sobre essas questões há milhares de anos, sem muita repercussão na prática, porque ninguém tinha a tecnologia para reinventar o ser humano. Agora, começamos a tê-la.

 

 

Daremos importância aos filósofos?

 

Espero que as empresas e os governos prestem atenção neles, mas também nos poetas, nos artistas... Porque os engenheiros, às vezes, podem ser muito ingênuos ou estar desinformados sobre as consequências do que fazem. Se você permite que uma empresa ou um exército decida como redesenhar o ser humano, o mais provável é que potencializem as qualidades que para eles interessam, como a produtividade ou a disciplina, e desprezem outras, como a sensibilidade e a compaixão. E o resultado será que teremos pessoas muito inteligentes e disciplinadas, mas superficiais e espiritualmente pobres. E isto não melhorará o ser humano, mas o degradará.

 

Considera que existe um alto risco de que a tecnologia nos torne miseráveis?

 

Sim. Estamos vendo como surgem novas maneiras de organizar o mundo através da tecnologia de vigilância. Os chineses estão testando ferramentas para algo que pode se tornar o pior sistema que já existiu na história. E, além disso, pode ser exportado para o mundo todo, como um pack. Até mesmo países que não têm a tecnologia para criar um sistema de vigilância podem comprá-la da China. Sendo assim, o perigo é global.

 

Mas no Ocidente já se exerce essa espionagem de nossos dados, ainda que seja para nos vender produtos e serviços...

 

Sim, é verdade, o mesmo se pode dizer do capitalismo de vigilância que vemos nos Estados Unidos e que também é exportado para o resto do mundo. Espero que encontremos uma terceira via porque os dois sistemas são muito prejudiciais não só para a sobrevivência da democracia, mas para os valores humanos e o próprio desenvolvimento das pessoas.

 

Pode descrever o processo pelo qual a tecnologia desvaloriza o ser humano?

 

Darei um exemplo. Quando pensamos nas possibilidades atuais da engenharia genética, deveríamos lembrar que criamos vacas e porcos há milhares de anos. Nós os domesticamos buscando as qualidades que nos interessavam: que deem mais leite, que sejam mais obedientes... E o resultado é que os animais domésticos não são uma melhora de seus ancestrais selvagens, mas um pálido reflexo do que foram. E o mesmo pode acontecer com os humanos.

 

 

Está certo, mas que tentem nos domesticar não é algo novo...

 

Sim, há algo novo. Antes, quase toda a informação que era reunida sobre você estava fora de sua pele: o que você compra, para onde vai, o que vê... Agora, existem ferramentas que podem reunir o que acontece em seu coração e em seu cérebro. E não falo de tecnologias invasivas, como implantes.

Uma pulseira que mede seu ritmo cardíaco ou câmeras que observam o seu rosto já são muito boas para inferir o seu estado emocional. E nas mãos de um estado totalitário, podem ser muito perigosas. Imagine que a Coreia do Norte obrigue seus cidadãos a utilizarem uma pulseira biométrica. Você entra em uma residência e tem uma foto de Kim Jong-un e o bracelete captura os sinais de ira, pois tem acesso a seu cérebro. São notícias muito ruins para você.

 

Somos fáceis de manipular?

 

Não é tão simples. Os governos sempre quiseram fazer isso, mas não podiam porque não precisam apenas de informação, mas de capacidade para analisá-la. Em um país com cem milhões de habitantes, eram necessários cem milhões de espiões para seguir seus passos. E mesmo que os tivessem e alguém anotasse tudo o que eu digo, seriam produzidos cem milhões de relatórios diários. Ninguém conseguiria lê-los.

Contudo, agora, é possível seguir todas as pessoas, durante as 24 horas. Temos o espião na mão: o celular... E pela primeira vez na história, é possível analisar essa informação com inteligência artificial. Nem sua mãe conhece você melhor do que o algoritmo.

 

Você afirma que somos muito ruins tomando decisões. Se o algoritmo nos conhece o suficiente para nos sugerir uma série ou escolher uma parceira e, além disso, acerta mais do que nós, o que há de ruim?

 

Em princípio, nada. É uma questão de qual tipo de decisões deixamos para as máquinas. E quem controla isso. Por exemplo, coloco o meu dinheiro em um fundo de pensões, mas não quero que esse dinheiro vá parar em empresas que contribuam com as mudanças climáticas. Não tenho tempo para verificar onde esse fundo é investido, mas a inteligência artificial, sim, pode. Parece-me algo bom, pois está me ajudando a cumprir meus objetivos.

O potencial para o bem está aí e a tecnologia pode melhorar o atendimento sanitário, psicológico... O problema é que a maioria dos dados que são coletados de cada um de nós são usados para nos manipular. Por exemplo, os algoritmos são treinados para identificar jovens com baixa autoestima e lhes enviar anúncios de dietas.

 

O algoritmo está roubando o nosso direito de se equivocar e aprender com os nossos erros?

 

Não necessariamente. Um algoritmo que recomenda música aprenderá as canções que gostamos, mas também pode ser ajustado para que nos sugira novos estilos. Depende de como seja programado. Uma faca pode ter o formato de uma adaga ou de bisturi. Um serve para matar e o outro para salvar vidas. Se não possui outra coisa, um cirurgião também pode usar uma adaga, mas será mais difícil a sua utilização.

Uma das escolhas mais importantes na hora de programar algoritmos é se são criados para que os governos e empresas vigiem as pessoas ou vice-versa, para que nós os vigiemos. Hoje, isso acontece apenas em uma direção. Eles sabem muito sobre nós e nós quase nada sobre eles.

 

 

Em resumo, o algoritmo quer saber como somos, mas somos pouco propensos a refletir.

 

Muitas vezes, a verdade é dolorosa e complicada e preferimos ignorá-la. Isso acontece em nível individual. Foi demonstrado que a maioria pensa que dirige melhor do que a média, o que é matematicamente impossível. Mas também acontece em nível coletivo: os políticos que dizem para as pessoas a verdade sobre o seu país perdem as eleições. Acontece em Israel, na Espanha, nos Estados Unidos...

 

Se você se sente abandonado pelo sistema, vota em quem oferece esperança, não em quem diz para você que será muito difícil encontrar trabalho.

 

Além disso, é pior se sentir inútil do que explorado. No século XX, se você era um operário em uma fábrica, havia uma grande empresa que tentava fazer com que trabalhasse mais horas. A luta dos movimentos sociais é organizada para resistir a isso. Se começava uma greve, a economia entrava em colapso. Você tinha certo poder porque era necessário.

 

E agora não?

 

O que estamos vendo na nova economia do século XXI é que a automação destrói um montão de empregos e cria outros novos, mas esses novos empregos demandam altos níveis de formação e muita gente não conseguirá fazer essa transição. Não é possível pedir a um motorista que se recicle para ser um programador de videogames. Não será explorado, mas será dispensável. E isto é muito mais perigoso. Entrar em greve não ajuda você em nada. Para quê? Ninguém precisa de você...

 

 

Você ressalta que essa frustração é projetada sobre as minorias e não sobre as elites que se enriquecem a níveis nunca vistos. Por que não cobramos Jeff Bezos e Elon Musk?

 

Porque a economia global é complexa. É muito difícil compreender como o sistema funciona, as relações de causa e efeito. Durante a Revolução Francesa, os camponeses sabiam que o aristocrata do castelo próximo era quem os explorava, assim, pediam a sua cabeça. Era fácil ver a conexão. Agora, é muito difícil responsabilizar um magnata do outro extremo do mundo pelo que está acontecendo com você. É mais fácil culpar os imigrantes.

 

É inevitável que uma parte importante da humanidade acabe sendo "classe inútil"?

 

Não acredito nisso. Antes, você aprendia uma profissão quando jovem e já era o suficiente. Mas será necessário reeducar os trabalhadores mais ou menos a cada década. Isto exigirá enormes investimentos em educação. Alguns países terão recursos, outros não. E o que acontecerá quando nem sequer puderem oferecer mão de obra barata porque será mais barato voltar a produzir nos Estados Unidos? Entrarão em colapso.

 

Podemos escapar desse futuro?

 

Não é algo que esteja determinado, mas existe um grande risco. Além disso, caminhamos para um novo colonialismo. Durante a maior parte da história, tivemos esse tipo de relação entre a metrópoles e suas províncias. Estas forneciam matérias-primas como algodão, cobre e borracha que as potências transformavam em tecidos, eletrônicos e carros, e os vendiam para a periferia.

Agora, a matéria-prima são os dados. São necessários enormes quantidades de dados para treinar a inteligência artificial. E esses dados fluem para o centro do império, que os transformam em aplicativos e produtos tecnológicos que depois vendem para o resto do mundo, fechando o círculo.

 

 

Onde está esse centro, atualmente?

 

Há dois: os Estados Unidos e a China. As dez empresas mais importantes são americanas ou chinesas. E isto é ruim porque, novamente, a maior parte da riqueza e o poder se concentra em bem poucos lugares. Uma Europa unida deveria tentar se tornar um contrapeso. Não há nenhum país europeu que sozinho possa competir com o Google, Baidu, Tencent, Facebook...

 

Estamos saindo de uma pandemia e agora dizem que se aproxima uma época de escassez. Podemos almejar ser felizes ou apenas sobreviver?

 

Não deveríamos pensar em termos binários. Em ter uma coisa ou outra. Para resistir a uma pandemia, é necessário um bom sistema de saúde, e a saúde mental é essencial, assim como o bem-estar social também. Vimos que não é somente o vírus que ameaça as pessoas, mas também a depressão, a ansiedade, a solidão, a desconfiança... Podemos ser felizes, mas temos que escolher bem nossas prioridades.

 

Em seu livro "Sapiens: Os pilares da civilização", volume 2, conta que o trigo nos domesticou, quando acreditávamos que tinha sido o contrário. Este grão silvestre conseguiu se espalhar pelo mundo ao nosso lado.

 

Sim. E acreditávamos que viveríamos melhor, mas nossas existências pioraram... A Revolução Agrícola foi uma fraude. Há cerca de 10.000 anos, levávamos uma vida bastante cômoda e, em alguns milênios, não fazíamos outra coisa a não ser cuidar da colheita de sol a sol.

 

 

A agricultura também trouxe a fome, o que é paradoxal.

 

O que aconteceu é que a agricultura levou a uma explosão demográfica. E cada vez houve mais camponeses, não porque as pessoas fizessem essa escolha, mas porque esse excedente de população encurralou os caçadores-coletores. Mas ninguém poderia imaginar as consequências dessa transição. Ninguém suspeitava que as epidemias também eram consequência da Revolução Agrícola, que levou à aglomeração.

 

Falemos dos pilares da civilização: governos e escrita também surgiram com a Revolução Agrícola.

 

Os reis e a burocracia são recentes, em termos de evolução. Os humanos existem há dois milhões de anos e se mantiveram sem governantes na maior parte desse tempo.

 

Mas não é melhor ser civilizado do que um selvagem?

 

Gostamos de imaginar que nas sociedades da Idade da Pedra havia um chefe. Mas é um erro. Foram as sociedades mais igualitárias da história. Não havia ditadores nessa época. Se alguém tentasse subjugar outros, poderiam matá-lo à noite. Ou partir... Com a agricultura, você não pode se deslocar. Todos dependem de seus campos. E se um governante os oprime, não podem fugir.

 

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