Transumanismo e pós-humanismo no Antropoceno. Entrevista especial com José Manuel de Cózar

Durante o evento A condição humana realizado pelo IHU, Cózar apresentou um panorama das questões emergentes destas duas vertentes filosóficas a partir da perspectiva do antropoceno

Imagem: Silicon Media/ CC

Por: Tradução e Edição: Ricardo Machado | 11 Novembro 2021


Talvez uma versão contemporânea do mito de Sísifo não seja propriamente a de levar uma imensa rocha esférica montanha a cima, mas sim a de determinar as fronteiras do humano. Tudo isso ganha contornos ainda mais complexos quando se trata de pensar a condição humana em meio ao antropoceno. Este exercício, em tudo difícil, é o que o professor José Manuel de Cózar propõe em sua conferência Transumanismo e pós-humanismo no Antropoceno. Evolução tecnológica e autonomia humana, realizada no IHU no dia 23 de setembro, que agora reproduzimos em formato de entrevista.

 

“[O transumanismo] É um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie”, explica Cózar. “Em geral, quando falamos do pós-humanismo estamos tratando do pós-humanismo cultural, que é uma visão, uma atitude, sobre o que é ser  e como se relacionar com a tecnologia. Isso tem muitas variações, o que torna complicado de dizer o que é o pós-humanismo precisamente”, complementa.

 

Ao longo da entrevista, o pesquisador vai complexificando e abordando de forma aprofundada as definições. “Os pós-humanistas não são deterministas tecnológicos, ao passo que os transumanistas tendem a ser deterministas tecnológicos. Embora valorizem a tecnologia, os pós-humanistas tendem a uma postura mais crítica. Também não são essencialistas, reconhecendo a condição humana como algo mutável, contingente e maleável”, acrescenta.

 

Um desafio que se descortina no tempo presente sobre as formas como concebemos a noção de humanidade passa por duas dimensões. “O fato é que nós todos precisamos de dados científicos e histórias coerentes para que possamos nos unir contra essa ameaça, que seria todas as coisas que podem ir mal no antropoceno”, pondera.

 

José Manuel de Cózar (Foto: Reprodução | Youtube)

José Manuel de Cózar é doutor em Filosofia pela Universidade de Valencia e professor de Lógica e Filosofia da Ciência na Universidade de La Laguna. Tem–se centrado no estudo das repercussões econômicas, políticas, éticas, sociais e ambientais das novas tecnologias. Realizou pesquisa em várias universidades estrangeiras, incluindo a New York Polytechnic e a Stanford University. É autor dos livros Tecnologia, Civilizacion Y Barbarie (Editora Antropos, 2003); El Antropoceno: Tecnología, naturaleza y condición humana (Editora Los libros de la catarata, 2019); Hasta que nos extingamos: Una ficción filosófica (Spanish Edition, 2021).

 

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 17-10-2021.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como podemos começar quando se trata de falar de antropoceno?

José Manuel de Cózar – Bem, uma maneira de começar é apresentando dois personagens reais, que representam duas posições antagônicas sobre o ser humano e sobre a relação entre os seres humanos, a tecnologia e a natureza. Tratam-se de Zoltan Istvan, estadonunidense de origem húngara, e Patricia MacCormack, australiana e professora de filosofia na Inglaterra. Ambos estudaram filosofia, mas tem abordagens completamente distintas. Para dizer de uma forma radicalmente breve, Zoltan é transumanista e Patricia é pós-humanista. Vou abordar as particularidades de um e de outro no contexto do que chamamos antropoceno.

Zoltan Istvan estudou filosofia e religião, foi um atleta de natação e de polo-aquático, trabalhou como documentarista da National Geographic. Ele afirma ter inventado o “surf de vulcão” (que consiste em deslizar do topo de um vulcão inativo sobre uma prancha) – inclusive houve recentemente uma erupção nas Ilhas Canárias que nos deixa muito preocupados com as vítimas humanas. Além disso ele é empresário, escritor e político. Tentou ingressar nesse campo concorrendo às prévia presidenciais, em 2020, nos Estados Unidos. Em seu programa continha o apoio integral às tecnologias, o que é bem típico dos transumanistas, como fundamental para sobrevivência de nossa espécie e para o futuro da humanidade. Defende ainda a confrontação com a China em que está havendo, cada vez mais, a discussão de um tratado muito polêmico, do ponto de vista da União Europeia, entre EUA, Reino Unido e Austrália para defender os interesses “ocidentais” no [Oceano] Pacífico. Politicamente, é uma figura que chamaríamos de direita não liberal, que soa estranho porque ao mesmo tempo defende uma renda básica universal. Isso porque a indústria automatizada e a inteligência artificial tende a acabar com os trabalhos e tornar os humanos obsoletos, de tal modo que será necessário repartir o dinheiro para que as pessoas possam viver sem trabalhar. Isso tudo está relatado em um livro de ficção intitulado, em espanhol, La apuesta transhumanista (Autopublicação, 2013).

Patricia MacCormack faz uma filosofia que é uma mistura de muitas coisas, dentre elas a Teoria Queer – que se dedica aos debates sobre gênero, identidades e sexualidade humana –, veganismo e existencialismo, o que, também, soa estranho porque, afinal de contas, o que significa existencialismo? Bem o existencialismo que ela trabalha está expresso em obras como The ahuman manifesto (em tradução livre, O manifesto não-humano), no qual o subtítulo é: “ativismo para o fim do antropoceno”. Nós sabemos que o antropoceno ainda não está provado oficialmente e que há autores que estão falando do fim do antropoceno. Tentarei, ao longo de minha conferência, explicar o que significa tudo isso.

Envolvendo o que diz respeito ao “extincionismo”, há questões bastante sensíveis, porque inclui o movimento de extinção humana voluntária, que propõe que os humanos se extingam, não por meio violentos, mas voluntariamente renunciando ter filhos. Isso eliminaria os problemas à nossa espécie, afinal deixaríamos de existir, e, também, para o planeta pois os problemas causados por nós não existiriam e a vida floresceria, os ciclos naturais voltariam a funcionar bem etc. Os seres humanos, usando uma metáfora bem atual, seriam uma “praga”, uma pandemia como esta do coronavírus, algo que precisa ser extinto. Tendo em vista que não se extinguirá o planeta, que nós mesmo tratemos de nos extinguir. Claro que esta é a proposta mais radical que se pode ter, mais radical ainda que o ecologismo radical.

 

 

IHU – Como o transumanismo se caracteriza?

José Manuel de Cózar – Isso não é algo simples de se explicar. Ao longo da história, os seres humanos têm tentado melhorar suas condições físicas e mentais de modo que têm empregado técnicas de educação, de treinamentos físico e mental cada vez mais sofisticados, incluindo recursos médicos e todos os demais disponíveis em cada época. Tudo isso para lutar contra a natureza dos seres humanos. Em espanhol chamamos isso de “melhoramento humano”, traduzido do inglês “human enhancement”, tratando de toda a modificação dirigida a melhorar de forma permanente ou temporária o rendimento humano ou que seja submetido a intervenções científicas ou tecnológicas sobre o corpo. Na verdade trata-se de diferentes formas de intervenção, se alguém toma uma capsula ou comprimido, evidentemente, o efeito de melhoramento será temporário, contudo se submete a procedimentos em que são incorporados (aqui é importante considerar o ¬in-corporado) eles tendem a ser permanentes. É uma alteração corporal levada a cabo graças a um tipo de ciência ou tecnologia – ou uma combinação entre ambas –, dentre elas a inteligência artificial, a robótica, a biotecnologia, etc.

Isso se dá de duas formas, seja como melhoramento genético ou como ciborgue, tentando unir partes artificiais com o corpo humano por meio de implantes. Isso já está acontecendo quando se leva em conta que há uma série de pessoas com implantes, mas não é, propriamente, deste tipo que estou me referindo, senão ao melhoramento de mais longo prazo e mais radical.

 

 

IHU – Qual é, então, o programa transumanista?

José Manuel de Cózar – É um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie, mas também controlar e a acelerar as tendências evolutivas. Isso tudo produz uma fase de superação da espécie homo sapiens, tal como a conhecemos, passando a uma figura, um ser, que seria o pós-humano, na qual a fase intermediária seria a dos transumanos. Os transumanos não seriam os pós-humanos, pois seriam uma mescla, haja visto que os pós-humanos dariam um salto evolutivo.

Para isso é necessária muita ciência e muita tecnologia. O que é importante ter em mente, para que não haja confusões, é uma distinção importante: todos os transumanistas defendem o melhoramento humano, mas nem todas as pessoas que defendem o melhoramento humano são, necessariamente, transumanistas. Há pessoas, como no meu caso, que são favoráveis ao melhoramento humano em geral, mas que não se consideram transumanistas, o que implica compromissos outros que ainda não me parecem claros.

Algumas personalidades transumanistas são Max More e Natasha Vita-Morte, David Pearce, Nick Bostrom, Julian Savulescu, Ray Kurweil, mas claro, na internet se pode achar muito mais. A maioria são homens, laicos e ocidentais, dos quais muitos são empresários norte-americanos, do Vale do Silício, mas nem todos são assim. Há biohackers, que tentam um enfoque menos elitista.

 

 

IHU – Quais são as possíveis melhoras que se enquadram dentro da perspectiva do transumanismo?

José Manuel de Cózar – Dentre as melhoras cognitivas estaria a inteligência, por exemplo, reforçando a memória. Há um conjunto de melhoramentos que são de coisas que não existem, mas que podem existir em um futuro na medida em que as tecnologias se desenvolvem. Outra possibilidade são melhorias que nos tornem mais atentos, aprimorando nosso discernimento, por meio de “drogas inteligentes”, e concentração, bem como a criatividade e a inventividade. Estas melhorias não são somente cognitivas, mas também afetivas.

Em geral, justifica-se eticamente os melhoramentos para evitar ou diminuir o sofrimento humano. Para isso se poderia usar fármacos de todos os tipos, neuroestimulação, implantes neuronais etc. Além disso, se buscam melhorais morais, como nos casos para frear aquelas condutas que são consideradas imorais ou inapropriadas, mas também para fomentar um tipo de ética – muito problemática – que tenha fins consequencialistas ou utilitaristas ao invés de ontológicas. Melhoras físicas, como o aprimoramento para aumentar a força, a velocidade, mas também o acréscimo de capacidades que não existem no ser humano, como ver no escuro, assim como fazem os gatos. Melhoras estéticas, é claro que isso é uma coisa que muitas pessoas fazem sem ser transumanistas, mas neste caso com modificações diversas no corpo como componentes que podem interatuar por meio de ondas eletromagnéticas, seja para abrir ou fechar portas, por exemplo. A longevidade, evidentemente, é uma das coisas que mais preocupava os transumanistas e aí entram as vacinas que são usadas para prevenir doenças, como, por exemplo, o coronavírus, que também são uma forma de melhorar o corpo humano. Assim como intervenções de todo o tipo para evitar o envelhecimento do corpo e, consequentemente, para que a vida seja muito mais longa. É por isso que muitos transumanistas buscam a imortalidade, que está no fim último do transumanismo. Contudo, enquanto isso não é possível, a proposta é alongar a vida humana o máximo possível.

 

 

IHU – Quais são os possíveis efeitos negativos das tecnologias de melhoramento humano?

José Manuel de Cózar – Há questões ligadas à saúde, claro, mas há outras que estão vinculadas ao aumento da desigualdade, com pessoas “melhoradas” e pessoas “não-melhoradas”. Isso provocaria todo o tipo de vícios, implicações econômicas e sociais, com pessoas que não quiseram se submeter aos procedimentos ou não tiveram recursos econômicos. Ao mesmo tempo que se aumenta a expectativa de vida, mais pessoas vão passar a viver no planeta e esta expectativa seguirá aumentando com efeitos na manutenção da estrutura econômica, entre muitas outras coisas, incluindo maus usos militares e terroristas ou até mesmo uma catástrofe que, agora, não somos capazes de prever. Há os riscos da biologia sintética, com o uso de vírus modificados, com nanopartículas, nanobots etc.

Uma distinção importante está entre os transumanistas e os bioconservadores. Transumanistas são radicais e todos aqueles que não estão em sua linha de inflexão, de acordo com seu ideário, são considerados bioconservadores. Aqui é importante considerar que os bioconservadores podem ser de qualquer orientação política. Isto é interessante porque rompe um pouco com os esquemas políticos habituais, o que também ocorre com os transumanistas.

O que tende a motivar os chamados bioconservadores é o receio aos maus efeitos das modificações e, também, a criação de uma espécie de gênero humano que ultrapasse a extensão do ser humano. Há, claro, as pessoas moderadas que são a favor dos melhoramentos mas com limitações, defendendo não uma aprovação irrestrira nem um rechaço completo do programa transumanista. Nesse sentido, a proposta é avaliar caso a caso do ponto de vista técnico, ético e econômico. Neste contexto, melhoramentos menos problemáticos são entendidos como aqueles, por exemplo, como um implante para reparar um osso, o que gera menos controvérsia em relação às modificações na genética humana.

 

 

IHU – O que caracteriza o pós-humanismo?

José Manuel de Cózar – Em geral quando falamos do pós-humanismo estamos tratando do pós-humanismo cultural, que é uma visão, uma atitude, sobre o que é ser ser humano e como se relacionar com a tecnologia. Isso tem muitas variações, o que torna complicado de dizer o que é o pós-humanismo precisamente, mas posso, então, dizer o que não é.

Os pós-humanistas não são deterministas tecnológicos, ao passo que os transumanistas tendem a ser deterministas tecnológicos. Embora valorizem a tecnologia, os pós-humanistas tendem a uma postura mais crítica. Também não são essencialistas, reconhecendo a condição humana como algo mutável, contingente e maleável. O pós-humanismo está contrário a todo o tipo de dualismo e oposições, o que é uma característica do humanismo: humano e não humano, sujeito e objeto, natural e artificial, tecnologia e natureza, mente e corpo. O pós-humanismo é um lugar de combinações, de hibridizações, de elementos heterogêneos, alguns humanos e outros tecnológicos que formam redes híbridas. Há alguns nomes importantes que são familiares a muita gente há muito anos como Bruno Latour, Cary Wolfe, Donna Haraway, Rosi Braidotti e Timothy Morton.

 

 

IHU – Quais são as diferenças fundamentais entre o transumanismo e o pós-humanismo?

José Manuel de Cózar – Os transumanistas buscam o advento de uma nova espécie de homo sapiens, perfeita ou quase como deuses e pensam que podem alcançar esse objetivo por meio da tecnologia. A ideia é levar a cabo um problema que o humanismo clássico postulou, de dominar e emancipar-se da natureza, de modo que os transumanistas pretendem levar essa ideia à sua culminação, de modo que o ser humano domine por completo a natureza. É um enfoque muito antropocêntrico. Já os pós-humanistas são mais críticos, por diversos motivos, e tampouco são tão confiantes na tecnologia.

A relação com o capitalismo é complexa, pois os transumanistas são, em muitos casos, notórios empresários, com muito dinheiro para investir em seus ideais; ao passo que os pós-humanistas são mais acadêmicos e pensam mais em termos de criatividade. A questão é que ao final estas coisas podem levar a problemas, como a autoexploração ou uma função abusiva da tecnologia, de modo que sem uma avaliação crítica das tecnologias se pode levar à implantação de um capitalismo irresponsável e uma tecnofilia. Alguns pós-humanistas são conscientes disso e tratam de tentar evitá-lo.

 

 

IHU – O que significa, atualmente, relacionar evolução tecnológica e autonomia humana?

José Manuel de Cózar – Em primeiro lugar é necessário falar algumas coisas bastante evidentes, mas que convém retomá-las. O primeiro ponto é que as tecnologias tendem a avançar de maneiras insuspeitas e não previstas pelos seres humanos, de modo que nos parece que possui uma lógica própria, independente dos seres humanos. Há muitas figuras que ilustram essa ideia de tecnologia sem controle, como é o caso de Frankstein e muitos outros. Há ainda o problema do determinismo tecnológico que incide sobre a sociedade de maneira que criaria algo fora do controle do ser humano. O que eu digo, no entanto, com muitos outros autores, é que a tecnologia não é autônoma e muito menos determina a sociedade. O que há são combinações entre uns e outros elementos, o que torna difícil falar de forma radicalmente separada sobre tecnologia, ser humano e natureza, mas, sim, a partir de hibridizações e conexões entre diferentes elementos. A autonomia do ser humano é igualmente parcial, limitada, porque nós dependemos da natureza e da tecnologia. A questão passa então por pensar humanos e não humanos que possam colaborar entre si e não que sejam opostos. Esta á uma visão pós-humanista, que tenta frear o determinismo tecnológico.

Se seguimos a forma como as tecnologias foram desenvolvidas e conformadas, vamos perceber que o que parece completamente novo vem de um desenvolvimento anterior, que se utiliza de ferramentas, utensílios, máquinas. Há sucessivos desenvolvimentos tecnológicos, mas também pessoas que tomam decisões sobre como desenvolvê-las e esse desenvolvimento inclui incorporar valores e outorga determinada margem de liberdade. É possível fazer uma tecnologia em que o ser humano não pode fazer nada senão apertar um botão, sem saber o que ocorre dentro, que é a chamada tecnologia da caixa preta; mas há outras tecnologias que nos permitem mais liberdade ou criatividade.

 

 

IHU – Como o senhor compreende o conceito de Antropoceno?

José Manuel de Cózar – Essa é uma proposta, que precisa ser plenamente acordada entre os geólogos, de uma nova época geológica. Todo o caso, ainda estamos no holoceno. A tendência é que nos próximos anos possamos confirmar a hipótese científica, pois atualmente a proposta tem muita popularidade e impacto na imprensa, o que faz com que ouçamos cada vez mais esta palavra.

O antropoceno se define como o impacto humano global e irreversível sobre a terra. Nós nos damos conta de que o planeta é bastante grande, mas não suficientemente grande para suportar todos os impactos e as modificações do ser humano ante a tecnologia, a modificação dos terrenos etc.

E quando começou? A primeira opção remete à revolução industrial, no século XIX; a segunda opção retrocede muito mais no tempo, considerando algo como há dez mil anos, no período neolítico; a terceira opção, justamente a que a maioria dos cientistas defendem, entre 1945 e 1950 com as primeiras detonações nucleares – com as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki –, espalhando sedimentos radioativos pela terra. O antropoceno foi proposto pelo o pesquisador do clima Paul Crutzen, Nobel de Química, junto com Eugene Stoermer, que era um ecólogo norte americano, mas, como disse, estamos esperando a definição oficial.

 

 

IHU – Quais foram os acontecimentos que podem nos ajudar a compreender o antropoceno?

José Manuel de Cózar – Um dos fenômenos antropocênicos, dos primeiros que se pode dizer, é o intercâmbio colombino, da época em que Colombo chegou a terras americanas e as enfermidades europeias causaram uma enfermidade tremenda, além da deflorestação. Agora se fala na sexta extinção em massa, estimada em 30% dos humanos, 67% dos gados e 3% das espécies selvagens.

Os plásticos e os microplásticos são um enorme problema, de tal modo que há plástico suficiente para envolver todo o planeta. Há ainda as modificações nos terrenos, alteração geomorfológica dos estuários, a construção de cidades e instalações de aeroportos, estradas, tudo isso vai alterando a conformação do planeta. Literalmente, essas construções vão cobrindo a superfície terrestres. As mudanças nos hábitos de vida, como o sedentarismo e enfermidades como o coronavírus, são fenômenos decorrentes do antropoceno.

 

 

IHU – Quais são os tipos de intepretações mais recorrentes do antropoceno?

José Manuel de Cózar – Há dois tipos de posturas para pensar o antropoceno: 1) aqueles que advertem que o antropoceno será muito ruim para a humanidade. Estes são chamados, entre outras coisas, de “catastrofistas”; 2) a outra postura, daqueles que podem ser chamados de “antropocenistas”, acredita que haverá um antropoceno bom em que a humanidade poderá controlar por completo a natureza e que viveremos uma época de progresso.

Trata-se de dois pontos de vista radicais que é muito difícil de sustentar, então o desafio é buscar uma posição intermediária. Um exemplo do que dizem os antropocenistas é a possibilidade de “controle” do clima por meio de diversas tecnologias, chamadas de geoengenharia, o que é algo muito controvertido pois não se sabe que efeitos irreversíveis podem ser criados em caso de utilização em larga escala. Uma alternativa que aparece neste contexto é a gestão dos ecossistemas como se eles fossem uma espécie de máquinas para fabricar, entre outras coisas, ar “puro”. Esta é a continuação de uma ideia moderna e humanista do mundo, mas levada ao nível empresarial.

 

 

IHU – Quais são os dez fatores ou mensagens básicas sobre o antropoceno?

José Manuel de Cózar – O primeiro deles é o fato que a pegada humana na terra é irreversível, pois mesmo que tomemos muitas medidas de correção há coisas que são irreversíveis e que vão afetar a totalidade do planeta. É evidente que diferentes seres humanos têm diferentes responsabilidades, porque os impactos variam muito, afinal um empresário norte-americano e um agricultor pobre de Bangladesh são exemplos muito perceptíveise e antagônicos do que estou falando.

O segundo ponto é que vivemos uma espécie de paradoxo, à medida que perdemos o controle da natureza nos damos conta que podemos (como espécie) influir no clima, nos ciclos bioquímicos da natureza e nos ecossistemas em grande escala.

O terceiro ponto tem a ver com o que se fala como o fim da natureza, de modo que não há mais no planeta partes intocadas. Isso causa uma interdependência muito complexa entre seres humanos e os entornos singulares, pois isso é sempre melhor não falar em termos universalistas, mas em termos mais concretos.

O quarto ponto tem a ver com algo novo, a geohistória, que é a união da história geológica e da história humana.

Um quinto fator é a necessidade de se conceber o antropoceno como algo temporal. Estamos acostumados com o conceito de globalização que é espacial, mas o antropoceno tem uma dimensão temporal e o que torna ainda mais difícil lidar com ele é que as pessoas, normalmente, não lidam com uma escala de tempo tão grandes.

 

 

Em sexto lugar temos que falar de crise ecossocial, ou seja, não somente uma crise somente ecológica ou somente social, mas em grande medida uma mistura de elementos de uma e de outra dimensão. Daí a guerra de dados para saber que coisas estão melhorando e que coisas estão piorando.

Sétimo ponto: os antropocenistas e os catastrofistas, obviamente, emergem dessa disputa e não estão de acordo.

Em oitavo lugar é necessário, porém, sempre buscar uma postura, um caminho, que nos permita construir uma sustentabilidade e uma colaboração duradoura entre os seres humanos e os entornos naturais.

O nono ponto tem a ver com os relatos. Nós precisamos criar narrativas que deem conta da nossa relação com a natureza, sem a qual a confusão é muito elevada.

Por último, o décimo ponto, para compreender o antropoceno entram em conflito as três grandes cosmovisões: humanistas, pós-humanistas e transumanistas. O fato é que cada uma delas tem seus problemas e suas coisas positivas para aportar ao debate.

 

 

IHU – Como o antropoceno afeta o transumanismo e o pós-humanismo?

José Manuel de Cózar – Os transumanos sugerem que teríamos que nos adaptar às tecnologias, por exemplo, para suportar o calor, o frio, as contaminações etc. Esse seria o projeto transumanista, de melhora humana ou de controle tecnológico do entorno. Outra alternativa seria emular a terra em outros planetas, isto é, o projeto de terraformação. Uma das questões em torno desta hipótese, considerando que ela seja factível, é: quantas pessoas poderiam escapar para este lugar?

Enquanto isso, cabe aos pós-humanistas, a herança crítica ao antropoceno, o interesse de mostrar que o problema do antropoceno é antes de atitude, que de tecnologia, de modo que as mudanças não decorrerão de mais tecnologia, mas da mudança de nossos hábitos.

 

 

IHU – Diante deste contexto, o que se pode fazer?

José Manuel de Cózar – Há uma série de coisas a serem feitas, mas é preciso considerar o paradoxo psicológico instaurado pelo antropoceno. Muitas pessoas, quando os problemas são demasiadamente graves, dentre eles os problemas ambientais, tentam não encará-los e olhar para o lado oposto, negando-os, criando um subterfúgio psicológico. Contudo há algumas coisas que podem ser feitas, não somente em relação aos problemas da mudança climáticas, mas também em relação as questões ambientais.

Há algumas estratégias que podem ser adotadas para que o antropoceno não seja muito ruim. Em primeiro lugar temos que tratar de contar nossas histórias com os seres naturais, distante da posição humanistas clássica, o que é muito difícil. Há muitas histórias deste tipo, especialmente na América Latina, e é preciso encontrá-las novamente.

É preciso também buscar palavras positivas para que possamos colaborar uns com os outros. É necessário retomar as coisas boas e usar elementos gráficos e métricas de coisas que estão indo bem, quando estão bem. Além disso é urgente tentar conscientizar as pessoas a fazerem o que está a seu alcance para melhorar as condições de vida. Isso são coisas simples, como, por exemplo, reciclar.

Um dos problemas cruciais é o político. Os países precisam entrar em um acordo pois se trata de um problema global e houve muitas reuniões para chegar a um acordo, mas quando se chega a um acordo ele não é cumprido. Do ponto de vista da gestão, quando se trata de problemas globais, o melhor seria um governo mundial, que incorporaria o governo de todo o mundo. Claro que há problemas nesta “saída”, pois um governo desses poderia ser imposto à força e poderia resultar em um governo ecofascista, o que poderia ser melhor para o planeta, mas pior para os seres humanos. Nesse sentido, é mais importante se buscar apoio em nível internacional, não global, pois quando há países que não estão de acordo a efetividade das medidas se ressentem muito. Além disso, atuar em muitos níveis é fundamental, de modo que há muitas organizações e iniciativas individuais que são importantes. Há, ainda, posturas mais radicais que seriam as anarcoprimitivistas, de destruir as tecnologias, renunciar ao processo tecnológico e se tornar comunidades muito básicas de coletores. Ademais, o anarcoprimitivismo está no polo oposto ao transumanismo e visa acabar com as tecnologias sem acabar com os seres humanos, voltando a um estilo de vida muito simplificado.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

José Manuel de Cózar – Os tempos que vivemos são muito difíceis e a palavra antropoceno foi criada para explicar alguns dos problemas que temos. Há conflitos entre anarcoprimitivistas e transumanistas, bioconservadores (que seriam de esquerda) e alguns transumanistas (que seriam de direita), e, por fim, alguns ecologistas que seriam também extincionistas. Bem, cada um deles defende coisas distintas, mas não completamente incompatíveis. O fato é que nós todos precisamos de dados científicos e histórias coerentes para que possamos nos unir contra essa ameaça, que seria todas as coisas que podem ir mal no antropoceno.

Quando nos damos conta que temos uma margem de manobra pessoal, como pessoas, indivíduos, percebemos que temos também como comunidade. No meu caso me coloco numa posição que defende que devemos escolher o melhor do humanismo, do transumanismo e do pós-humanismo. Do humanismo o melhor são valores como a dignidade e a liberdade humana; dos transumanistas algumas melhoras não radicais podem ser pertinentes e oportunas, ao passo que outras podem ser um disparate um pesadelo; em relação ao pós-humanismo é importante considerar a visão que traz e as formas de se relacionar com o mundo, com as demais pessoas, os artefatos a partir de uma visão não antropocêntrica, não dualista.

 

 

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