Francisco: o Mediterrâneo e a Europa

Foto: Vatican Media

11 Dezembro 2021

 

"A pergunta é a que apresenta Francisco: por que não estamos percebendo o absurdo da política europeia?", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 07-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

A viagem do Papa Francisco a Chipre e à Grécia na realidade foi dirigida ao coração da Europa. Ainda mais do que os povos tocados com as mãos, Francisco tocou e tentou recolocar em pé nós europeus, para nos fazer voltar a sermos protagonistas ativos do nosso futuro no mundo. As obras de grandes intelectuais nos ajudam a entender.

 

Em 1976, o populismo era algo impensado. Mas não para todos. Não era para Michel Berger e Luc Plamondon que na ópera Rock underground Starmania criaram um personagem visionário, o presidente do Ocidente, Zéro Janvier. A obra foi lembrada, com profundidade de visão, recentemente por Michel Hajji Georgiou, diretor do portal de informação “Ici Beyrouth”.

 

Para entender o que isso tem a ver com a viagem de Francisco, essa obra deve ser pelo menos brevemente apresentada. Os autores já na época nos conduziam às portas do terceiro milênio, imaginando o Ocidente como um único país sitiado pelo terrorismo e pelo totalitarismo. A capital do Ocidente, Monópolis, na obra é constantemente atacada pelos terroristas das Estrelas Negras, liderados por um homem que segue as ordens de Sadia, uma estudante revolucionária riquíssima, que todas as noites se junta aos seus pares nos subterrâneos do Underground Café. Acima deles, está um prédio de 121 andares onde tem seu gabinete o bilionário Zéro Janvier, candidato à presidência do Ocidente.

 

Seu programa eleitoral aparece, hoje, não só claro, mas até fulgurante por clareza: “Para conter a nova onda de terrorismo, vamos adotar medidas extremistas: vamos impor a volta à ordem, se não podemos viver em harmonia; vamos colocar a capital sob lei marcial. Quanto à escassez de energia, vocês já conhecem minha estratégia: quando tivermos esvaziado o fundo do mar, estaremos prontos para viver em outro lugar que não a terra, e a próxima capital será uma estação espacial. Vamos parar de nos preocupar com o Terceiro Mundo, que em breve nos agradecerá com bombas; em primeiro lugar, vamos assegurar a sobrevivência da raça branca. Eu sou o homem da última chance para o Ocidente! Vamos construir o novo mundo atômico, onde o homem não será mais escravo da natureza; deixe o passado para os nostálgicos, viva a aventura do futuro!”.

 

A saída da democracia da democracia

 

Zèro Janvier estaria por acaso ouvindo o papa em Chipre? Francisco disse muito claramente: “Só se pode, porém, constatar com preocupação que hoje, não só no continente europeu, registra-se um retrocesso da democracia”, que ao invés “requer a participação e o envolvimento de todos e, portanto, requer esforço e paciência. É complexa, enquanto o autoritarismo busca soluções precipitadas e as garantias fáceis propostas pelos populismos parecem tentadoras”.

 

Realmente parece tentadora a solução precipitada proposta pelo Presidente do Ocidente? Lei marcial, esvaziamento do mar, construção do mundo atômico, esquecimento do Sul do Mundo, salvação da raça branca. Se não fosse pela facilidade atrativa, teríamos entendido sem que Francisco tivesse que nos dizer o que são os campos de refugiados que estão espalhados na Líbia e além: certamente também na Síria, como lembrou Avvenire justamente nas horas da viagem do Papa, documentando o Campo de al-Hol e seus 70.000 "hóspedes" sem nenhuma assistência sanitária, entre os quais muitos crianças ou menores, os famosos filhos do Isis que ninguém quer, mesmo tendo frequentemente pelo menos um dos pais europeus.

 

Fugindo de lugares como al-Hol ou como aqueles da Líbia, muitos morrem no Mediterrâneo. Por isso Francisco acrescenta: “Devemos ir contra este hábito de nos habituarmos a ler essas tragédias nos jornais ou ouvi-las noutras mídias. Olhando para vocês, penso a todos aqueles que tiveram que voltar porque foram rejeitados na fronteira e acabaram em campos de concentração, verdadeiros campos de concentração, onde as mulheres são vendidas, os homens torturados, escravizados. Lastimamos quando lemos as histórias dos campos de concentração do século passado, aqueles dos nazistas, aqueles de Stalin, lastimamos quando vemos isso e dizemos: como aconteceu? Irmãos e irmãs: está acontecendo hoje, nas costas próximas!”. Depois quis concluir: “Digo isso porque é minha responsabilidade ajudar a abrir os nossos olhos. A migração forçada não é um hábito, quase turístico: por favor!”.

 

Refugiados: a nossa remoção do real

 

Queremos abrir bem os olhos? Queremos, pois, ver, sem ir tão longe, os numerosos centros de recebimento e identificação de refugiados presentes na Europa? São isolados, invisíveis, espalhados pelo interior: são lugares afastados da nossa realidade, lugares que para nós não existem e onde não há possibilidade alguma de interação, integração, trabalho.

 

Lesbos é assim: hospeda mais de duas mil pessoas, na maioria afegãos, ou seja, pessoas que hoje quase certamente têm direito a asilo político na Europa, mas não o obtêm. Eles permanecem em contêineres posicionados a poucos passos da costa, de modo que ficam expostos a ventos e maresias, não apenas naturais. Francisco foi lá justamente para nos mostrar!

 

Quis parar não só na bela saleta ao ar livre, coberta por uma tenda branca, onde as autoridades o esperavam: por cerca de vinte minutos quis andar entre os contêineres, cambaleando sozinho entre as pedras empilhadas que marcar uma acidentada trilha ao longo da linha de uma frente física e ideológica, aquela colocada diante da primeira fileira de contêineres onde os refugiados o esperaram, fotografaram, o abraçaram.

 

Ele - da bela saleta ao ar livre - não só condenou sem meias palavras a disponibilidade concedida pela União Europeia de construir muros ou barreiras de arame farpado com fundos comunitários, mas também soltou estas palavras: “Nas margens deste mar Deus se fez homem. A sua Palavra ecoou, trazendo o anúncio de um Deus que é Pai e guia de todos os homens. Ele nos ama como filhos e nos quer como irmãos. Ofende-se Deus quando se despreza o homem criado à sua imagem, deixando-o à mercê das ondas, no marulhar da indiferença, às vezes até justificada em nome de supostos valores cristãos. A fé, ao contrário, pede compaixão e misericórdia; não esqueçamos que este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. A fé exorta a hospitalidade, àquela filoxenia (amor pelo estrangeiro) que permeou a cultura clássica, encontrando depois a sua manifestação definitiva em Jesus, especialmente na parábola do Bom Samaritano e nas palavras do capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Esta não é ‘ideologia religiosa’, são raízes cristãs concretas! Jesus afirma solenemente que está ali, no estrangeiro, no refugiado, em quem está nu e faminto”.

 

Interpelar as consciências

 

Assim, o papa foi - ou veio – para nos dizer onde ele vê as "raízes cristãs" do Velho Continente afirmadas ou negadas: não nas constituições em papel, não nas circulares com linguagem aparentemente inclusiva, mas onde existem pessoas em carne e osso, seus direitos e suas necessidades: negados ou correspondidos.

 

Ele chegou a isso de uma defesa mais ampla, que diz respeito a todos os cidadãos europeus, que gostam - deve-se presumir - da sua civilização: “se quisermos recomeçar, vamos olhar os rostos das crianças. Vamos encontrar a coragem de sentir vergonha diante delas, que são inocentes e que são o futuro. Eles interpelam as nossas consciências e nos perguntam: que mundo vocês querem nos dar? Não vamos virar de costas rapidamente diante das imagens cruas de seus pequenos corpos atirados inertes nas praias. O Mediterrâneo, que por milênios uniu diferentes povos e terras distantes, está se tornando um frio cemitério sem lápides. Esta grande bacia de água, berço de muitas civilizações, agora parece um espelho de morte. Não deixemos que o Mare Nostrum se transforme em um desolado Mare Mortuum, que este lugar de encontro se transforme em teatro de confronto! Não permitamos que este ‘mar de lembranças’ se transforme no ‘’mar do esquecimento’”.

 

Seguiu-se um pedido que deve ser levado a sério: não permitamos que este mar se transforme no mar do "naufrágio das civilizações". Essas palavras me deixaram pasmo e me fizeram lembrar de outra obra belíssima. Não mais apenas o Starmania de Michel Berger e Luc Plamondon, mas uma obra recente, justamente intitulada O naufrágio das civilizações, de Amin Maalouf.

 

Na página 101 da edição italiana, esse grande escritor libanês e acadêmico da França citou um muçulmano de tempos longínquos que não sei se Francisco conhece, mas que tenho certeza que apreciaria: “Sempre conservo comigo, escritas em um papel que mantenho dobrado, estas palavras de um poeta árabe desconhecido, Umayyah-Salt al-Andalusi, nascido em Dénia, na Espanha, no século XI: se sou de barro / toda a terra é o meu país / e todas as criaturas são meus parentes”. Maalouf novamente: “Não é necessário voltar tão longe no passado para vislumbrar um rosto completamente diferente da civilização de meus pais. A abominação que está diante de nossos olhos hoje é mais recente do que parece. Eu próprio experimentei uma realidade muito diferente”.

 

O que a Europa está fazendo?

 

Sim, basta voltar um pouco no tempo - digamos no início dos anos 1980 - para lembrar um Oriente Médio completamente diferente daquele de hoje, tanto que na época de Nasser as mulheres usavam lenço no pescoço, não na cabeça. Também nós podemos recordar uma Europa diferente, onde as sociedades de ajuda mútua eram património comum de muitos, como aliás as "casas do povo" - para muitos criticáveis na época - mas hoje certamente não mais possíveis e com algum pesar.

 

A pergunta é a que apresenta Francisco: por que não estamos percebendo o absurdo da política europeia? Ele disse que os problemas se resolvem indo às causas profundas e que - é claro - não há soluções fáceis para situações complexas.

 

O problema são as vítimas dos totalitarismos e dos terrorismos que nos "assediam"; ou melhor, não seriam os totalitarismos e terrorismos o verdadeiro problema? Eu escrevo isso lembrando do Starmania. Se for assim, por que em vez de culpar as vítimas desses sistemas, não elaboramos uma política diferente para tentar transformar esses regimes, para não ser por eles transformados de uma forma tão ruim? É verdade: precisamos de seus recursos e matérias-primas, mas também é verdade que temos muito a oferecer em troca.

 

Nas horas em que Francisco estava em Lesbos, o presidente francês Macron foi se encontrar com o príncipe herdeiro de Riade, bin Salman, o primeiro chefe de estado ocidental a ir para Riade após o assassinato de Khashoggi, brutalmente morto em um consulado saudita. O que ele foi fazer lá: incitá-lo a mudar de método e política, ou para lhe vender armas em troca de liberação de impostos alfandegários? Os noticiários parecem dizer que a segunda resposta é a mais acertada.

 

O mesmo critério está sendo aplicado à Rússia, à Turquia, ao Irã e muitos protagonistas irrequietos das crises presentes e do futuro próximo, coincidentemente no centro dos fornecimentos energéticos mais importantes. Eles também não estariam precisando dos nossos mercados e da nossa boa tecnologia, da nossa inteligência política e da nossa humanidade? Portanto, são apenas os pobres migrantes que devem pagar o preço por essas ruins políticas do interesse? É realmente inevitável ir tolamente ao encontro do inexorável declínio das civilizações, todas elas?

 

Lendo o livro de Amin Maalouf, nos perguntamos para onde foram os grandes diretores, os grandes romancistas, os grandes cafés literários, os movimentos estudantis do Egito de poucas décadas atrás. Pensar que o mesmo acontece na Europa não pode ser descartado. E então Francisco foi para o berço da Europa, a terra da pólis, depois terra cristã, terra ortodoxa, para reconectar os valores fundadores de nossa civilização comum, imprescindível para iluminar o nosso futuro, para evitar que caiamos, por causa da escuridão, em perigosíssimas derivas.

 

Estejamos bem cientes: o que fazem os vários Putins, Erdogan ou Aiatolás do Irã depende também de nós, europeus. Também esses senhores precisam de uma Europa determinada e cosmopolita para abandonar as suas escolhas involutivas e destrutivas. Do contrário, também nós corremos o risco de ficar realmente encantados por Zéro Janvier e suas não mais tão ficcionais teorias.

 

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