27 Outubro 2021
“Talvez tudo se reduza àquela afirmação de Ernst Jünger, que classificava a paisagem de nossa época, em consequência do desenrolar da Modernidade, como um tempo de apóstolos sem missão”, escreve Ángel Enrique Carretero Pasin, professor de Filosofia na Universidade de Santiago de Compostela, em artigo publicado por Público, 26-10-2021. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
No Ocidente, a partir da Modernidade, nosso modo de conceber a essência do político passou a se autodefinir em antítese ao que diz respeito a uma legitimação religiosa do poder. A ruptura da conivência onipresente entre Igreja e Estado, durante a Idade Média, foi um fator decisivo neste aspecto.
Desde então, se algo pretendeu caracterizar o critério na tomada de decisões coletivas, foi a ostentação da transparência racional e deliberativa dos agentes comprometidos na res publica. O itinerário das sociedades modernas se baseou no esforço em dessacralizar os pressupostos do exercício do poder.
O novo fundamento do político passaria a exigir a erradicação de qualquer indício de legitimação da ordem social de caráter metassocial que saísse do espectro dos interesses e as lutas dirimidas no único domínio agora credível e possível: o da historicidade.
No entanto, não é possível dizer que, de acordo com o curso evolutivo das sociedades modernas, esse programa tenha sido cumprido. Em um mundo dominado quase inteiramente por instituições governadas por uma racionalidade burocrático-legal, aparentemente desencantado, há sinais reveladores de que o prognóstico de radical fratura do cordão umbilical integrador do político e do religioso não passou de uma quimera, quando não de um projeto frustrado em sua raiz.
Para além da credibilidade do conteúdo proclamado a partir de diferentes programas eleitorais, no fundo da sedução suscitada e galvanizada pelo político estão ancoradas algumas demandas antropológicas concernentes a profundas reivindicações coletivas presentes no pano de fundo da trama social.
São demandas canalizadas por expectativas vinculadas a construtos, entre outros, como regeneração, libertação ou redenção do corpo coletivo que, camaleonicamente, trasvestidas no imaginário estendido na gramática dos discursos políticos, dariam conta das ilusões, esperanças e fervores despertadas pelo político.
O assunto, se quiséssemos mergulhar mais fundo nas chaves de sua idiossincrasia, tem a ver com o exercício de usurpação, pelo político, da realização de algumas aspirações em outro momento voltadas para uma esfera supramundana, mas com o advento da Modernidade reorientadas para o campo histórico.
Por isso, Antonio Gramsci lembrava a intelligentsia marxista do momento, muitas vezes refratária ao reconhecimento da relevância epistêmica concedida a variáveis extra-históricas supostamente incompatíveis com os pressupostos do materialismo histórico, que as massas não podem viver em um céu vazio.
A sacralização simbólica de categorias políticas tais como democracia, soberania popular, plebiscito, bem como a liturgia ritual explícita em cerimoniais, comícios e eleições dão boa prova do componente religioso embutido no político.
Isto se traduz no modo de apresentação do líder político diante de seus adeptos. Nietzsche dizia que todo povo precisa de um guia. Em seu aspecto mais sórdido, isso ficou explícito no delírio coletivo manifesto em torno do caudilhismo fervilhante em trágicos acontecimentos na história contemporânea. Embora a figura do líder político tenha assumido concreções diferentes ao longo da história, o que se manteve incólume em todas elas foi um subjacente denominador comum intimado à conservação da unidade e coesão do grupo.
Esse foi o papel prioritário atribuído ao xamã nas sociedades primitivas, depois ao sacerdote em sociedades sob o influxo da religião e, posteriormente, ao líder político em sociedades prima facie secularizadas. É verdade que uma das bandeiras da Modernidade foi um ideário de conquista de uma diferenciação e autonomia do político em relação a outras esferas às quais antes estava subordinado e pré-condicionado, mas não é menos verdade que, apesar disso, o cerne do político não escapou de um transmutado anseio religioso explicativo de seu magnetismo.
Isso desnuda a sobrevivência de algumas estruturas antropológicas em seu funcionamento que, como invariantes universais, dão conta da adesão à figura do líder político pelo grupo. Daí a persistência da aura de um feitiço carismático que envolve a autoridade de qualquer líder político como delegado da representação de um grupo, independente de sua tonalidade política, e ultrapassando marcos geográfico-culturais, paradoxalmente acomodada sem maiores problemas com as prerrogativas vindas de uma lógica do político inteiramente burocratizada.
O líder conserva em sua entidade a pegada de um profetismo prometedor de salvação para um coletivo. Mas, sobretudo, permite vacinar este coletivo frente a si mesmo. Ou seja, por meio da elevação a um pedestal simbólico de sua figura, a unidade de um grupo se encarna, assim como é elevada acima da peremptoriedade na disputa entre os interesses particulares de cada um.
Em nosso tempo, abundam aqueles que pretendem se fazer credores na categoria do sacerdócio político. O que não está nada claro é o conteúdo da mensagem profética que os abonaria, atualmente, se de fato existe mensagem ou inclusive se a própria mensagem é possível.
De fato, a inércia política só se vê pontualmente violentada por um ou outro lampejo ou piscadela fugaz de uma suposta inspiração profética que, justamente devido ao que supõe de ruptura com a insipidez da ordinária atividade institucional nas mãos de uma burocracia de partidos, com uma tomada de decisões baseada em cálculos algorítmicos ajustados ao material fornecido pelas estatísticas, consegue se conectar por esse motivo com algumas sinergias coletivas muito mais em estado de hibernação, com a finalidade de abrir passagem nos arcos parlamentares.
Em suma, talvez tudo se reduza àquela afirmação de Ernst Jünger, que classificava a paisagem de nossa época, em consequência do desenrolar da Modernidade, como um tempo de apóstolos sem missão.
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Apostolado político em tempos de governo algorítmico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU