Povo de Deus, corpo e rito: entender o Vaticano II com Dickens e Merleau-Ponty. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Walter Ascencio | Wikimedia Commons

29 Setembro 2021

 

Ontem em Carpi, por iniciativa do Laboratório TeológicoRealino”, apresentei esta conferência sobre a relação entre Reforma litúrgica, povo de Deus e ação ritual. Agradeço aos organizadores pela grande oportunidade de escuta e de trocas. Aqui está o breve texto com o qual resumo o discurso de ontem.

O texto é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, publicado por Come Se Non, 26-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Evento e/ou Rito?

A celebração litúrgica do povo de Deus 60 anos após o início do Concílio Vaticano II

 

“Agora, o que eu quero são Fatos. Ensine a esses meninos e meninas nada além de Fatos. Apenas fatos são desejados na vida. Não plante mais nada, extirpe tudo o resto. Somente com os Fatos as mentes dos animais racionais se educam e nada resultará mais útil para eles"

Ch. Dickens Hard Times

 

Introdução

Vou começar com essa frase de Ch. Dickens, extraída de um livro que foi escrito em meados de 1800 e que representa de modo eficaz um "limiar crítico" do mundo moderno tardio: isto é, a afirmação de uma cultura "positivista". A redução do homem à "racionalidade", censurando toda imaginação, toda inquietação e toda incompletude. No romance, que começa com essas palavras, aquele que fala, um professor, verá sua própria família arruinada por esses princípios cegos. Seus filhos se tornarão um ladrão e outra prostituta.

Vocês podem se perguntar: por que começar um discurso sobre a "reforma litúrgica" a partir disso? Para entender, devemos lembrar uma frase forte, com a qual o Papa Francisco se dirigiu ao "colégio dos escritores" de La Civiltà Cattolica alguns anos atrás, dizendo que, para cumprir bem suas funções, deveriam se alimentar de "inquietude, incompletude e imaginação”. Pois bem, acredito que para compreender bem o que aconteceu com o Concílio Vaticano II e com a Reforma litúrgica que o seguiu, é necessário compreender bem os limites de uma cultura positivista (que também é forte na Igreja) e descobrir a tesouro de novidade que o percurso recente reservou à identidade eclesial através da redescoberta da profundidade original e primordial da ação ritual.

Esta breve reflexão, que se estruturará em quatro pequenos passos, também gostaria de se inserir na ambição de "laboratório" do estudo teológico de Carpi. Fazer teologia significa aprender a fazer perguntas verdadeiras. Isso não é simples e se complicou enormemente há cerca de um século, desde que nos convencemos, erroneamente, de que era possível fazer teologia "contra" e "sem" a cultura ambiente. Nunca foi assim. A grande história da teologia, de Agostinho a Tomás, aos padres tridentinos, nutriu-se de cultura, da melhor cultura que tinha a disposição, sem a necessidade de verificar se era "batizada". Uma teologia "exculturada" é sempre uma teologia sem corpo e sem verdadeiros interlocutores. Como fizeram os antigos e os medievais, também nós devemos fazer: neste caminho fomos precedidos pelo Concílio Vaticano II e pela grande atualização desejada e defendida pelo Papa João XXIII e pelo Papa Paulo VI. Nessa esteira, tão cara ao Papa Francisco, gostaria de colocar também as minhas pequenas reflexões.

 

1. Uma tensão: evento e rito.

Como diz o título desta intervenção, partimos de uma tensão: entre o rito litúrgico e o evento da graça parece haver uma tensão insuperável. Se considerarmos como a tradição lidou com este problema, descobrimos que a pergunta era formulada desta maneira: como se pode ter uma relação com a Páscoa, isto é, com o mistério central da paixão, morte e ressurreição?

A teologia clássica deu uma grande resposta: per fidem et sacramenta. A fé e os sacramentos são as duas "vias" para ter relação com a Páscoa. São Tomás traduz esses dois caminhos em palavras fortes: a fé opera "per actum animae", enquanto os sacramentos "per usum rerum exteriorum". Um ato da alma e o uso das coisas exteriores são as duas "faces" da nossa relação de fidelidade, de escuta e de discipulado para com Jesus Cristo nosso Senhor.

Essa resposta, entretanto, tornou-se insuficiente, justamente a partir das "três revoluções" (industrial, estadunidense e francesa) que primeiro mudaram a Europa, depois também a América do Norte e, finalmente, estão mudando todo o mundo. Assim nasceu, gradualmente, a partir da segunda e terceira década do século XIX, a consciência de que as categorias escolares não restituíam mais de forma adequada a experiência envolvida na fé e nos sacramentos. A. Rosmini na Itália e P. Guéranger na França foram os primeiros a perceber esse "furo" da tradição, na década de 1830. Mais adiante, a partir do começo de 1900, no mesmo contexto que afirmava o antimodernismo mais duro, Pio X e o Movimento Litúrgico contribuíam para um profundo repensamento da "leitura teológica clássica". Justamente porque a ilusão da modernidade tardia era a de poder fazer tudo per actum animae - isto é, fazer tudo com o intelecto, com a vontade e com o coração - tornava-se uma nova tarefa redescobrir a inevitabilidade da "mediação corporal". A novidade, porém, consistia no fato de que a "mediação corporal" não era mais reduzível ao "uso das coisas externas". A redescoberta da liturgia como "linguagem" do sacramento foi a novidade que com o Concílio se tornou uma doutrina comum e que exigiu uma reforma litúrgica.

 

2. A Páscoa no corpo

O que aconteceu com o Concílio e com a Reforma litúrgica parte de um pressuposto teórico muito importante, que descobre como a relação com a Páscoa não é apenas intelectual, moral ou sentimental. É antes de tudo e por último (diríamos em seu fons e em seu culmen) relação corporal. Acostumamo-nos a pensar que a fé é apenas "doutrina", "disciplina" e "espiritualidade", reconduzindo a tradição de volta à sua mediação da mente, da vontade e do sentimento. Na realidade, a descoberta da "inteligência per ritus et preces", que é o coração da intuição nova de Sacrosanctum Concilium (cf. SC 48), implica um grande investimento nas "linguagens elementares", na sua forma de comunicar, de fazer experiência e de expressar tal experiência. Os ritos e orações não são os “objetos” da inteligência eclesial, mas poderíamos dizer que são as “linguagens” dessa compreensão.

Constatar a descoberta do "corpo em ação" significa sair de soluções intelectualistas, voluntaristas e sentimentalistas que substituem a ação ritual pelo seu significado, uma norma ou o sentimento-afeto a ser cultivado. Falar de Eucaristia em termos de "substância e acidentes" tornou-se assim para nós uma forma de desfigurar, ao mesmo tempo, o nosso corpo e o corpo de Cristo. Obviamente, o "primado do corpo", instituindo uma autoridade dos "cinco sentidos" - e sobretudo do "fundamento de todo sentido", ou seja, do "tato" – torna-se o lugar mais censurado pelo "protocolo sanitário imposto pela pandemia ". Mãos higienizadas que não se tocam, rostos irreconhecíveis e inexpressivos, distâncias intransponíveis marcam uma verdadeira suspensão da experiência de comunidade. Mas talvez precisamente este período de "protocolo imposto" poderia favorecer a superação daqueles "protocolos implícitos" que nos convenceram a estar sempre "em privado com Jesus", fazendo com que o tato, o paladar, o olfato, a audição e a visão se tornassem os apêndices pouco significativos do nosso ato de fé interior e também de nosso "uso das coisas exteriores".

 

3. As dinâmicas transgressivas do corpo

O corpo, ao contrário do intelecto, da vontade e do sentimento, com sua constrangedora visibilidade, é sempre provocador, transgressivo, inquieto, incompleto, irreduzível a um conceito, a uma norma, a um sentimento. A interrupção "corporal" da existência torna-se assim uma condição da e do sacramento. O corpo está no espaço, no tempo e na relação com uma “interrupção” que alimenta as “faculdades superiores”. Mas sem a lógica primordial do corpo, que consome o espaço e o tempo numa relação festiva, que conhece a gratuidade sem cálculo, que reconhece imediatamente a beleza e o bem no plano nada superficial do tato, é impossível construir aquele “espaço comum”, diferente do espaço privado e do público, que hospeda o Senhor e que permite ao Senhor hospedar a sua Igreja.

Ser “povo de Deus” significa não só “pensar a fé”, “viver com fé”, “sentir com fé”, mas “celebrar no Senhor”. Por isso é necessário restituir autoridade ao corpo, para que “tome a iniciativa de perder a iniciativa”.

As linguagens elementares da celebração são delicadas, precisam de "finas manualidades" e uma iniciação cuidadosa. Não podem ser tratadas de forma demasiado sumária. Um bom exemplo desse desconforto é a redução da “partícula” a uma palavra vazia, mero suporte de uma fina teoria sobre a “presença real”, ou seja, a presença substancial e não acidental do corpo de Cristo. Na realidade, quando assim procedemos, ainda estamos presos ao modelo clássico, que não confia nenhuma "inteligência" verdadeira ao rito. Tanto é verdade que nos habituamos - sem nenhum escândalo - a receber uma “partícula redonda”. Como o pão a ser partido é redondo (Hostia magna), assim resulta redondo também o pão partido. Mas aqui algo de corporal está irremediavelmente comprometido. A partícula - que em latim significa “fragmento” - justamente por ser um “pedaço” pode ter qualquer forma, exceto a forma redonda. Nem mesmo Giotto, o grande pintor e arquiteto, saberia como partir o pão conseguindo partículas redondas. Redondo é o inteiro, não o fragmento. Por isso, o rito exige que todos os que "participam do único pão" recebam apenas um fragmento, cuja verdade não está "em si", mas em Cristo e na Igreja. A forma das partículas fala da irrelevância do rito para a fé. E confirma uma versão individualista e burguesa, que não tem necessidade alguma de um "povo de Deus", mas apenas de uma "salvação da alma" a que cada indivíduo chega por sua relação pessoal (intelectual, moral e espiritual) com o Senhor. Nem o corpo nem o povo são relevantes. E a "partícula" pode ser reduzida a um "inteiro em miniatura".

 

4. As línguas primárias da liturgia estabelecem a relação mais forte com o evento.

Desta breve análise emergem uma série de interessantes consequências litúrgicas, eclesiais e espirituais.

a) A reação eclesial ao mundo moderno, que muitas vezes assumiu a forma de "luta da alma contra o corpo", encontra na liturgia um lugar paradoxal, em que a valorização do corpo integral, com todas as suas linguagens, torna-se condição para recuperar uma mediação plena entre o Senhor e a sua Igreja.

b) Essas "mediações corporais", que dão forma ao ser Igreja de Cristo, ajudam a reconstruir de forma mais rica uma série de "antíteses" que o mundo tardio moderno impôs e em relação às quais a Igreja muitas vezes se vê obrigada a permanecer dentro delas:

- liberdade/autoridade: a Igreja não é obrigada a escolher a autoridade contra a liberdade. Assim gostariam todas as leituras autoritárias. Nem a liberdade contra a autoridade, como gostariam as leituras “neoliberais”. Em vez disso, deve retornar àquela evidência, tão bem expressa em uma dupla proposição de Armido Rizzi: o amor pode só ser comandado e só o amor pode ser comandado. Uma genealogia da liberdade é o desafio que a ação ritual sempre coloca em cena, com as suas linguagens simbólicas.

- direito/dever: a igreja não é obrigada a contestar os direitos mediante os deveres, mas a deixar aberta a dialética histórica entre direitos e deveres, mostrando o horizonte inicial e final que é o do dom. A ação ritual permite recompor, no plano do dom, as antigas e novas evidências dos direitos e dos deveres. Sem rigidez e sem ingenuidade.

- privado/público: a igreja não é obrigada a perseguir a dignidade pública do privado e a dignidade privada do público, mas a reconstituir, com dificuldade, lugares “outros”, que são justamente transgressões e interrupções, para que o homem que trabalha e o homem de férias reencontre a si mesmo, no reconhecimento alheio.

A liturgia, restituída a esta função fundamental, é a linguagem não de alguns, mas de toda a assembleia, de todo o povo de Deus. Todos celebram a ação ritual, participando no rito, não apenas recebendo os seus frutos. Esse modelo de liturgia é, como já havia entendido Giuseppe Dossetti em 1965, uma "eclesiologia eucarística" completa e singularmente profética, ainda hoje.

 

5. Conclusão

Parti de uma frase tirada de uma obra-prima de Ch. Dickens. Quero concluir com uma frase extraída de um livro póstumo de M. Merleau-Ponty, que é a transcrição de sete programas radiofônicos de 1948, dedicados à explicação fácil e direta da "fenomenologia" para os ouvintes da rádio francesa. Em uma dessas transmissões, publicada em 2001 com o título Conversazioni, o filósofo escreve esta frase:

Aprendemos a ver novamente o mundo ao nosso redor, do qual nos havíamos distraído, na convicção de que os nossos sentidos não poderiam nos ensinar nada de válido e que apenas um saber rigorosamente objetivo mereceria ser levado em consideração. [...] Em um mundo tão transformado não estamos sozinhos, e não estamos apenas entre homens. Este mundo se oferece também aos animais, às crianças, aos primitivos, aos loucos, que o habitam à sua maneira e que coexistem com ele (M. Merleau-Ponty).

A ação ritual não tem nenhuma relevância para quem pensa que aprender apenas com linguagens estritamente objetivas. Na Igreja também funciona assim. Pela forma como olhamos para o mundo, também aprendemos a acreditar. Ora, no mundo, diz-nos o filósofo, não estamos sozinhos, estamos estruturalmente em relação. Como “animal que tem a palavra”, o homem sabe que não possui a sua especificidade linguística e racional “em si”, mas graça aos outros, a Deus e ao próximo. O que é mais próprio do homem, a palavra, não o temos sozinhos, mas apenas graças às "tradições": não por natureza necessária, mas por tradição contingente e numa história aberta todos nos tornamos homens e mulheres.

Mas há um segundo aspecto, ainda mais abismal. Não apenas os “outros homens adultos”, mas também animais, crianças, primitivos e loucos habitam o mundo e o reelaboram.

Isso também deve ser entendido no sentido de que todo homem e toda mulher, como adultos, devem se lembrar do animal, das crianças, do primitivo e do louco que eles mesmos foram e continuam a ser.

A Igreja ainda sabe celebrar a fé e reconhecer o valor originário dessa mediação corporal da relação entre Cristo e a sua Igreja, apena se, ao relembrá-lo, souber ser capaz dessa “memória de si”. Memória complexa e memória rica; memória comunitária e memória popular; memória, portanto, maravilhosamente complicada, mas, precisamente por isso, memória promissora e profética.

 

Leia mais