Conhecendo melhor o Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. Para não se deixar enganar pelas fake news dos falsos profetas

Foto: Tim Marshall | Unsplash

17 Fevereiro 2021

"Um texto cheio de espiritualidade, que nos conduz ao encontro com o Senhor na oração pessoal e comunitária, colocando no centro da reflexão a necessidade de conversão, que nos provoca a pensarmos e repensarmos cotidianamente nossa forma de estar no mundo. Sendo espiritual sem ser 'espiritualista', o texto nos leva a questionarmos sobre como nos envolvemos com as transformações sociais, econômicas, espirituais, ecológicas, individuais e coletivas, a fim de que sejamos, cada vez mais coerentes com os ensinamentos de Jesus nos Evangelhos. De fato, a CF quer nos ajudar a reconhecer que 'o caminho para a maturidade cristã respeita e acolhe a diversidade e só alcança a plenitude mediante a cooperação mútua' (Texto-base 138).", escreve P. Adelson Araújo dos Santos, SJ, Doutor em Teologia Espiritual e Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.

 

Eis o artigo.



Uma das primeiras coisas que aprendemos durante as aulas de Lógica, quando estudamos Filosofia, é a identificar quando alguém está a dizer uma verdade, ou quando o seu discurso é baseado somente em falácias, palavra de origem latina (do verbo fallere), cujo significado é enganar os outros com argumentos falsos.

 

Pois bem, existem diversos tipos de falácias, mas uma das mais usadas é aquela conhecida como Argumentum ad personam  - ataque pessoal –, ou seja, quando alguém procura negar a veracidade de um discurso atacando, não o seu conteúdo, mas a pessoa que escreveu ou proferiu tal discurso. É o que temos visto acontecer nos últimos dias, em relação a um excelente documento apresentado pelos bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021, que está sendo violentamente atacado na internet, por pessoas e grupos que se apresentam como defensores da verdadeira doutrina católica, porque tal documento teria sido escrito por uma pastora protestante feminista, defensora do aborto, etc.

 

Em outras palavras, os que acusam o texto da CF não apontam as falhas do documento em si – porque provavelmente nunca o leram – mas atacam somente quem, segundo eles, o escreveu. Fica evidente que estamos diante de um clássico caso de acusações falaciosas e logicamente incoerentes, porque não provam o que alegam, isto é, não mostram no texto onde está a heresia ou doutrina contra a fé. Assim, sem entrar na análise do conteúdo do texto-base da Campanha da Fraternidade, querem com suas falácias parecer convincentes para grande parte do público, que acaba acreditando, por não perceber que está sendo enganado com falsos argumentos.

 

Não vale a pena, portanto, perder muito tempo com quem se utiliza de argumentos falsos para defender suas ideologias que, aliás, pouco tem de religiosas, espirituais e verdadeiramente cristãs e católicas. Pois, qualquer pessoa com um mínimo de formação teológica e honestidade intelectual que ler o texto-base da CF2021, ficará encantado com a riqueza da sua fundamentação na Sagrada Escritura e no magistério da Igreja Católica, que fala pela voz do Santo Padre Papa Francisco e de seus antecessores, como João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.

 

O texto da Campanha da Fraternidade deste ano começa nos recordando, por exemplo, que a Quaresma, na tradição cristã, é um período de conversão e de autorreflexão. São 40 dias dedicados à oração, ao jejum, à partilha do pão e à conversão pela revisão de nossas práticas e posturas diante da vida, do Planeta e das pessoas.

 

Em seguida, somos convidados ao arrependimento dos pecados cometidos e o reconhecimento de que esses pecados são uma ofensa ao Deus amor. O texto explica que a contrição não tem relação com o medo de ser castigado por Deus, mas é resultado da graça de Deus, que nos permite o reconhecimento de nossos pecados e o sincero arrependimento, Deus nos perdoa porque é amor misericordioso.

 

Com o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade” (Ef 2,14),  frase que é uma “confissão de que a fé em Jesus Cristo não é motivo para divisões e conflitos, mas é a inspiração maior para a convivência e o diálogo” (Texto-Base 114), o texto valoriza o jejum como parte integrante da espiritualidade quaresmal, recordando que há muitas formas de jejuar, mas o jejum que agrada a Deus é apresentado pelo profeta Isaías, que nos questiona se jejuar é não “desatar os laços provenientes da maldade, desamarrar as correias do jugo, dar liberdade aos que estavam curvados, em suma, que despedaceis todos os jugos? Não é partilhar o teu pão com o faminto? E ainda? Os pobres sem abrigo tu os albergarás; se vires alguém nu, cobri-lo-ás: diante daquele que é a tua própria carne, não recusarás. Então a tua luz despontará como a aurora, e o teu restabelecimento se realizará bem depressa. Tua justiça caminhará diante de ti e a glória do Senhor será a tua retaguarda” (Is 58,6-8).

 

Com profundidade teológica, o texto-base destaca a importância do Espírito Santo como o grande animador e vivificador das comunidades cristãs, pois é ele “que nos movimenta para realizar gestos concretos em favor da paz que já temos em Cristo. É o Espírito Santo que abre nossos olhos, mentes e corações para que percebamos o sentido da afirmação da Carta aos Efésios que diz: ‘Assim, não sois mais estrangeiros nem migrantes; sois concidadãos dos santos, sois da família de Deus’ (2,19). Essa nova humanidade que floresce sob o mesmo Espírito fez com que ‘fostes integrados na construção que tem como fundamento os apóstolos e os profetas, e o próprio Jesus Cristo como pedra mestra’ (2,20a), ‘É nele que toda a construção se ajusta e se eleva para formar um templo santo no Senhor’ (2,21). Participantes na Criação e também frutos dela, em Cristo, que é a nossa paz e une os grupos humanos que estavam separados (Texto-Base 137). O elemento cristológico da nossa fé é também explicitado, quando o texto afirma que “em Cristo, recebemos essa abundância de bênçãos, que nos torna herdeiros e herdeiras do Mistério revelado de ser um só povo unido em diversidade. Ser integrados e integradas na construção do Reino de Deus aponta para a unidade, que se realiza na oferta da diversidade dos dons concedidos por Cristo a cada pessoa, para que a casa comum seja um ambiente seguro e feliz para todos os seres vivos” (Texto-Base 137).

 

Trata-se, portanto, de um texto cheio de espiritualidade, que nos conduz ao encontro com o Senhor na oração pessoal e comunitária, colocando no centro da reflexão a necessidade de conversão, que nos provoca a pensarmos e repensarmos cotidianamente nossa forma de estar no mundo. Sendo espiritual sem ser “espiritualista”, o texto nos leva a questionarmos sobre como nos envolvemos com as transformações sociais, econômicas, espirituais, ecológicas, individuais e coletivas, a fim de que sejamos, cada vez mais coerentes com os ensinamentos de Jesus nos Evangelhos. De fato, a CF quer nos ajudar a reconhecer que “o caminho para a maturidade cristã respeita e acolhe a diversidade e só alcança a plenitude mediante a cooperação mútua” (Texto-base 138).

 

Mesmo se tratando de um documento ecumênico, em relação aos temas sociais, o texto-base da CF em nada se diferencia da Doutrina Social da Igreja, assumida já pelas anteriores Campanhas da Fraternidade e pelos Papas. E cheio de espiritualidade profética e samaritana, denuncia os males sociais que afligem os filhos e filhas de Deus e se solidariza com os que mais sofrem e são vítimas da injustiça e violência, convidando-nos a que nos perguntemos ao longo dos 40 dias da Quaresma, se a nossa prática cristã promove a paz ou potencializa o ódio. Esperamos que este seja um tempo que nos ajude a testemunhar e anunciar com a própria vida que Cristo é a nossa paz, adotando comportamentos de acolhida, de diálogo, de não violência e antirracistas” (Texto-base 14).

 

Falando, por exemplo, do racismo, o texto relembra que “os índices de homicídio revelam o racismo que vigora no Brasil. Os índices de violência letal atingem mais a população negra do que a branca. Os jovens negros são as principais vítimas de homicídios no Brasil. A taxa de assassinatos de pessoas negras apresenta crescimento significativo no transcorrer dos anos” (Texto-base 60).

 

Ora, quem discorda da presença deste tema em um documento pastoral como este, ainda não entendeu as palavras de São João Paulo II, proferidas em 24 de outubro de 2002, na sua mensagem “Por um empenho para vencer o racismo, a xenofobia e o nacionalismo exagerado”. Com vários dados e exemplos de casos ocorridos recentemente, o texto recorda que “os choques entre comunidades, grupos e organizações sociais têm como um de seus fundamentos a questão do preconceito étnico e racial. O ódio ao diferente, dirigido contra pessoas por causa de traços físicos, expressões culturais, vestimentas, língua, vocabulário, dança e religião, encontra nessas características justificativa suficiente para a violência e para a perseguição (Texto-base 85).

 

Além disso, o texto da CF se opõe frontalmente contra o avanço do feminicídio no Brasil, mostrando dados concretos que denunciam o sistema de violência que no qual “as mulheres, em especial as negras e indígenas, são impactadas em todas as dimensões da sua existência” (Texto-base 67). Ora, em recente vídeo publicado no dia 1º deste mês, o Papa Francisco também denuncia que “ainda hoje existem mulheres vítimas da violência: violência psicológica, violência verbal, violência física, violência sexual. É impressionante, o número de mulheres afetadas, ofendidas, violentadas. As várias formas de maus-tratos que muitas mulheres padecem são uma perversidade e uma degradação para a humanidade inteira. Para os homens e para toda a humanidade. Os testemunhos das vítimas que têm a coragem de quebrar o silêncio são um pedido de ajuda que não podemos ignorar e olhar para o outro lado”.

 

Em relação à nossa casa comum (o planeta em que vivemos) e à Amazônia, em especial, a Campanha da Fraternidade se une à voz do Papa e do Sínodo sobre a Amazônia, quando chama a atenção de todos, denunciando que “entre agosto de 2018 e julho de 2019, houve um aumento de 29,5% do desmatamento na Amazônia. Foi desmatada uma área de 9762 km², a maior em mais de uma década. As queimadas, invasões e o extrativismo ilegal violentam a vida na região e alteram todo o ecossistema local e os regimes de chuvas e equilíbrio climático no território nacional e em territórios estrangeiros”. Toda essa situação afeta diretamente os povos tradicionais, “que têm uma vida ligada à convivência com a natureza”, quando são forçados a deixar “seus territórios de origem, seja pelos resultados dos crimes ambientais, seja para que grandes empresas desenvolvam atividades de extração mineral ou florestal e agora, mais recentemente, são entregues à própria sorte, abandonados quanto aos cuidados e prevenção do novo coronavírus” (Texto-base 79).

 

Enfim, esses são alguns dos graves pecados sociais contra os quais os cristãos devem se posicionar claramente contra, como sempre fizeram os nossos últimos Papas, fazendo prevalecer a paz, que significa “tanto superação das violências e das discriminações, quanto a plenitude de vida, consequência de relações equânimes entre o ser humano e a natureza, o ser humano e seus semelhantes e o ser humano e Deus”. Ao longo de todo o documento se evoca o nome de Cristo, como “aquele que garante as relações de equidade e acolhida entre todos os povos”, uma vez que “a afirmação ‘Cristo é a nossa paz’ confessa que em Cristo não há lugar para a violência e o racismo, para o ódio e a discriminação” (Texto-base 68). Citando sempre os textos paulinos, a CF nos orienta que “a paz que brota da fé em Cristo é a superação da inimizade e do ódio. Ela promove a unidade (Ef 4,1- 6), enquanto o ódio provoca inimizades e agressões e a guerra mata e destrói. A paz permite cuidar e reconstruir a convivência social – ‘sois da família de Deus’ – irmãos e irmãs (Ef 2,19)!” (Texto-base 131).

 

Como se vê, trata-se de um texto que, não obstante o seu caráter ecumênico (e talvez por isso omite a menção a Nossa Senhora, como outros documentos ecumênicos o fazem), é rico de conteúdo doutrinal e espiritual para nos ajudar a viver intensamente esse período da Quaresma, razão pela qual os nossos bispos nos convidam a usá-lo.

 

Quanto a ser um texto que defende o aborto, a prática LGBT, a ideologia de gênero, como dissemos acima, são discursos falaciosos que querem no fundo atacar a Igreja, sob o pontificado de Francisco, por não aceitarem as reformas que ele está fazendo, na direção de uma Igreja cada vez mais em saída, samaritana e sinodal. Não há nada escrito no texto da CF que confirme essas falsas acusações – fake news.

 

De fato, na única vez que o texto-base e refere à população LGBT é para denunciar, como faz em relação às mulheres, negros e povos indígenas, o aumento exponencial da violência contra esses nossos irmãos e irmãs, com centenas de casos de homicídios, “efeitos do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso, de vozes contra o reconhecimento dos direitos dessas populações e de outros grupos perseguidos e vulneráveis” (Texto-base 68). E mesmo as inúmeras “mortes provocadas pela pandemia não contribuíram para que repensássemos nossas relações. A violência também aumentou nas casas. Entre março e abril de 2020, meses em que o isolamento social esteve mais forte, os casos de feminicídio aumentaram 5% em relação ao mesmo período de 2019. Somente nesses dois meses, 195 mulheres foram assassinadas” (Texto-base 34). Como não se preocupar e ficar calado diante de tamanha ofensa a Deus e ao ser humano, criado à sua imagem e semelhança?

 

Portanto, estamos diante de um texto e de uma campanha que nos faz, verdadeiramente, mais amigos de Deus, amigos entre nós e amigos da criação-natureza, entendendo que “fraternidade e diálogo são desafios de amor. Devemos nos engajar agora, na comunidade e no lugar onde vivemos. Acreditamos que Cristo é a esperança do estabelecimento definitivo da fraternidade e da paz” (Texto-base 19).

 

Para concluir, vale a pena citar a bela oração do Cardeal José Tolentino Mendonça, incluída no texto da CF2021:

 

“Livra-nos, Senhor, deste vírus,
mas também de todos os outros
que se escondem dentro dele.

Livra-nos do vírus do pânico disseminado,
que em vez de construir sabedoria nos atira
desamparados para o labirinto da angústia.

Livra- nos do vírus do desânimo
que nos retira a fortaleza de alma
com que melhor se enfrentam as horas difíceis.

Livra-nos do vírus do pessimismo,
pois não nos deixa ver que, se não pudermos abrir a porta, t
emos ainda possibilidade de abrir janelas.

Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega,
pois o mundo continua a ser uma comunidade viva.

Livra-nos do vírus do individualismo
 que faz crescer as chagas do silêncio.

Livra-nos do vírus da impotência,
pois uma das coisas mais urgentes a aprender
é o poder da nossa vulnerabilidade.

Livra-nos, Senhor, do vírus das noites sem fim,
pois não deixas de recordar que tu mesmo nos colocaste
como sentinelas da aurora”

(Texto-base 56).

 

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