A IECLB ainda será o que ela tem sido?

09 Fevereiro 2021

"Nos últimos tempos, a IECLB, inclusive sua Direção, tem sido sistemática e crescentemente atacada quando de manifestações de membros, ministros e ministras da IECLB em assuntos de ordem pública", escreve Walter Altmann, Pastor emérito da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),  em texto publicado na sua página do Facebook, 08-02-2021.

Eis o artigo.

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) atravessa um momento difícil. Está em jogo sua própria identidade como igreja evangélica, igreja de confissão luterana, igreja atuante no Brasil, conforme seu nome sinaliza. Para fins do que me proponho neste texto, limito-me a duas características da IECLB.

Primeiro, sua intencionalidade de lidar de maneira positiva e respeitosa com diferenças no seu interior, particularmente quando as diferenças se dão no campo ético, inclusive no tocante a posicionamentos de natureza política. A unidade da igreja se dá, segundo a Confissão de Augsburgo, artigo VII, na compreensão do Evangelho que afirma a salvação por graça e fé, e não por obras, e na administração dos sacramentos como meios da graça de Deus. Demais assuntos, ainda que não indiferentes, não são constitutivos para a unidade da igreja. Daí, portanto, a legítima diversidade no tocante a essas questões. Isso não significa, é claro, que quaisquer opções políticas sejam igualmente aceitáveis.

A partir do evangelho há uma clara orientação em favor do respeito à dignidade de todas as pessoas, do estabelecimento de sistemas e relações pautados na justiça, a afirmação da paz e o cuidado com a criação. Paulo, de quem aprendemos que somos salvos somente pela graça e por fé, foi quem deixou bem claro esta orientação: “A ninguém fiqueis devendo cousa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros, pois quem ama ao próximo, tem cumprido a lei [...] O amor não pratica o mal contra o próximo, de sorte que o cumprimento da lei é o amor” (Romanos 13.8 e 10). A fé luterana traduz esta vivência do amor de muitas formas, como acima afirmado; esta é uma das saudáveis contribuições que podemos oferecer à ecumene cristã e ao mundo. Isso há de ser observado e defendido.

No entanto, não é necessária nem desejável uma uniformidade em posicionamentos específicos nas áreas não constitutivas para a unidade da igreja. São, inclusive, áreas em que há mudanças contextuais e no decorrer do tempo. São assuntos passíveis de mudança e reforma. Portanto, aí sempre haverá o espaço legítimo para o diálogo, o debate, por vezes acirrado, para que se chegue a consensos legítimos. A unidade da igreja, porém, transcende esses acordos e práticas porque, em última instância, é dádiva de Deus em Cristo: “a fim de que todos sejam um; e como tu és, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles [os discípulos] em nós” (João 17.21). Se isto é assim numa igreja como a IECLB, também o será na caminhada cristã de todas as demais igrejas e confissões.

Em segundo lugar, a IECLB – desde seu surgimento – tem uma clara definição de compromisso ecumênico, porque entende ser isso consoante à própria vontade expressa de Jesus (João 17.21), como destacado acima. Ela se estruturou como igreja em nível nacional, a princípio na chamada Federação Sinodal, em 1949. Dentre seus primeiros atos houve a solicitação de admissão como membro do Conselho Mundial de Igrejas e da Federação Luterana Mundial, constituídos pouco após o final da Segunda Grande Guerra. Desde então, e especialmente a partir da implantação de uma elaborada estrutura nacional (1968), a IECLB tem participado na criação e na vida de inúmeros organismos ecumênicos, não por último no Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil (CONIC). Seu compromisso ecumênico está claramente ancorado na Constituição da IECLB: “A natureza ecumênica da IECLB se expressa pelo vínculo de fé com as igrejas no mundo que confessam Jesus Cristo como único Senhor e Salvador.” (Art. 5°, parágrafo 2°). A contribuição da IECLB para o ecumenismo tem sido amplamente reconhecida inclusive por igrejas irmãs e diversos organismos nacionais e internacionais, o que faz dela uma igreja respeitada e parceira em muitos movimentos em busca da unidade, da paz e da justiça.

Pois bem, nos últimos tempos, a IECLB, inclusive sua Direção, tem sido sistemática e crescentemente atacada quando de manifestações de membros, ministros e ministras da IECLB em assuntos de ordem pública. O mais recente episódio ocorreu logo após a entrega no dia 26 de janeiro último ao Presidente da Câmara Federal de um pedido de abertura de processo de impeachment do Presidente Jair Messias Bolsonaro, notadamente por sua forma de lidar com o desafio colocado pela pandemia do coronavírus.

Entre as 380 pessoas que assinaram a petição, pastores, pastoras e sacerdotes de várias igrejas, se encontravam também vários ministros e ministras da IECLB, além de pessoas leigas. Pronunciaram-se a título pessoal, identificando-se como ministros e ministras da IECLB, como membros que dela são, sem, contudo, levantar a pretensão de estar falando oficialmente pela igreja ou em seu nome. Constituem, no entanto, uma voz emergente do interior da IECLB, com incidência na sociedade, conforme suas convicções e assim seu ato deve ser encarado. Se assim o fazem, essas pessoas coerentemente procuram honrar o evangelho que pregam e o ministério da graça e do amor ao qual se dedicam e para o qual, enquanto ministros e ministras, foram ordenados.

Já no dia seguinte, Marcos Carneiro e Ademir Kreutzfeld, respectivamente presidente e vice-presidente da Associação Luteranos Herdeiros de Worms, entidade que já em ocasiões anteriores se manifestou contra posicionamentos oficiais da Igreja ou de alguns de seus dirigentes, não sem numerosas acusações descabidas, emitiram ambos carta, embora estranhamente redigida na primeira pessoa do singular, em que, entre outras referências, condenam o ato ocorrido no dia anterior, acusam as pessoas signatárias de ferirem gravemente preceitos bíblicos e a confessionalidade luterana, substituindo-os por sua opção “político-partidária”. Acusam também a Direção da IECLB de ser conivente e de acobertar tão grave infração. Conclamam, inclusive, a uma espécie de rebelião no interior das comunidades e fazem uma ameaça nem tão velada de retenção de contribuições financeiras.

Paralelamente, houve ainda uma iniciativa com petição de assinaturas para a demanda de que a IECLB pedisse a desfiliação do CONIC, sem que os proponentes do abaixo-assinado revelassem sua identidade. Conclamam outras pessoas a assinar, enquanto escondem seus próprios nomes? O presidente e a secretária executiva do CONIC são ministro e ministra da IECLB. A solicitação de desfiliação do CONIC, que a própria IECLB ajudou decididamente a criar, seria justificada porque a entidade teria se desviado de seus objetivos para uma ação de natureza “político-partidária”. A petição, contudo, foi elaborada com competente assessoria jurídica. São dezenas e dezenas de páginas que tem-se a impressão de sequer terem sido lidas. Não há nenhuma referência a qualquer partido político. A petição está totalmente enfocada na maneira com a qual o presidente da república tem falado e agido (ou se omitido) em relação ao enfrentamento da pandemia da Covid-19. Perguntaram-se os signatários a que partidos pertencem as 380 pessoas que assinam a petição? Como podem fazer afirmações genéricas sem fundamento comprovado? Por sua vez, o CONIC é um órgão com o objetivo, entre outros, de ser uma voz pública das igrejas-membro em assuntos de relevância na sociedade brasileira.

Ora, a crise sanitária que se abateu sobre o mundo e particularmente sobre o nosso país tem afetado – de forma dramática – milhões de pessoas infectadas e milhares de famílias que perderam seus entes queridos, em muitos casos, por motivos que poderiam ter sido evitados. Esta realidade trágica não deve ser levada em conta pelas igrejas e seu múnus profético? Quanto ao pedido de desfiliação, parece-me que solicitação de tamanha envergadura é totalmente descabida, em face do histórico e constitucional compromisso ecumênico da IECLB. Intensificar o diálogo interno acerca do ecumenismo e dos objetivos dos órgãos ecumênicos a que a IECLB está vinculada, será muito útil; mas é totalmente fora de propósito a tentativa de desmonte de um compromisso histórico e constitucional da IECLB. A ecumenicidade da caminhada da IECLB não é algo de somenos importância, mas parte essencial da própria identidade da IECLB.

Ora, a manifestação da Associação Luteranos Herdeiros de Worms, que abordarei de maneira mais extensa e, ainda assim, só parcialmente, constitui um ataque frontal à identidade histórica e confessional da IECLB. Não porque seus signatários e a própria entidade porventura discordem do pedido de impeachment, o que obviamente é seu direito numa sociedade democrática. Trata-se antes de um ataque despropositado porque consideram que esse seu posicionamento num assunto de ordem política e pública – da maior gravidade – seja o único admissível para a IECLB e que as pessoas, que porventura divergem de sua posição, devem ser punidas. Mais ainda, num gesto carregado de temeridade, conclamam lideranças comunitárias a agirem nesse sentido, num espírito nitidamente sedicioso. Esse viés excludente de quem pensa diferentemente em assunto de ordem política é que deve ser veementemente repudiado como contrário à verdadeira confessionalidade luterana e, portanto, uma ameaça à própria identidade da IECLB.

A manifestação dessa Associação pretende ser um desdobramento fiel de um preceito bíblico e de propósito do reformador Martim Lutero. O texto bíblico referido é aquele de João 19.10-11, em que Jesus afirma a autoridade de Pilatos como vinda de Deus. Portanto, o respeito à autoridade constituída seria um preceito bíblico e, consequentemente, assim pensam os signatários, o pedido de impeachment do Presidente do Brasil seria algo que devesse ser rechaçado como antibíblico. Estranhamente – mas quem sabe reveladoramente –, não me recordo de ter visto tal tipo de argumentação quando do processo que levou ao impeachment da Presidenta Dilma. Ora, o argumento é de uma estreiteza constrangedora. O que é autoridade? Seria uma pessoa que seja detentora do cargo de presidente da república? É o que os signatários em sua argumentação pressupõem: assim como Jesus reconheceu a autoridade de Pilatos, assim deveríamos nós hoje reconhecer a autoridade de Bolsonaro.

Num estado democrático de direito, “autoridade” não é uma pessoa, mas todo um ordenamento sistêmico, em que há três “poderes” (executivo, legislativo e judiciário), com um arcabouço legal calcado na Constituição e num conjunto de leis e normas. Aliás, o Artigo 1º da CF de 1988 diz explicitamente que a autoridade maior em nosso país é o povo, pois dele emana o poder político. E este povo é quem o delega a seus representantes legais conforme determina a Constituição. As pessoas detentoras de cargos e funções nesse ordenamento são transitórias e sujeitas todas elas, por mais elevados que sejam seus cargos e suas responsabilidades, aos preceitos constitucionais e legais. Portanto, a “autoridade” que devemos respeitar é o próprio Estado Democrático de Direito, e não simplesmente uma pessoa transitoriamente detentora de um cargo. Além disso, esta pessoa de forma alguma tem o direito de fazer uso arbitrário da própria Constituição e das leis que regem as ações de um presidente da república.

A possibilidade de impeachment está prevista na Constituição brasileira. Portanto, solicitar o impeachment de um governante não caracteriza de forma alguma um desrespeito à autoridade, mas, contrariamente, expressa a observância do preceito constitucional e, portanto, respeito à “autoridade”. Deriva daí que quem julga ser improcedente o pedido de impeachment tem a possibilidade e até mesmo o dever de apresentar as razões pelas quais considera improcedente tal pedido. E a causa prosperará ou não, inclusive conforme injunções de interesses políticos. Ora, tudo isso faz parte do desenrolar da democracia e, por conseguinte, o argumento de desrespeito à autoridade é absolutamente falacioso. Ele não se sustenta.

Chama a atenção, porém, que a manifestação da presidência da Associação Luteranos Herdeiros de Worms não apresente uma única palavra, uma única sequer, acerca das razões elencadas na petição de impeachment, a saber as numerosas palavras, manifestações, gestos, comportamentos, decisões e omissões do Presidente acerca do combate à Covid-19. Tampouco encontramos qualquer referência às mais de 220 mil mortes (hoje já mais de 230 mil) vítimas dessa pandemia em nosso país. Na petição de impeachment são dezenas e dezenas de páginas elencando tudo isso. Que compreensão esta Associação tem do compromisso vicário da fé para com as pessoas que sofrem? A Associação Luteranos Herdeiros de Worms, divergindo, teria que contra-argumentar, fazendo a defesa das palavras, manifestações, gestos, comportamentos, decisões e omissões do Presidente, expondo por que julga terem elas sido condizentes com a responsabilidade do cargo que ele ocupa. Mas não, ela julga não necessitar fazer nada disso, passando a acusar sumariamente quem pensa diferentemente dela, acusando de que não foi observado um preceito bíblico e muito menos a confessionalidade luterana. Trata-se de algo inaceitável! Sob qualquer ângulo da questão, esta não é uma expressão legitimamente defensável no contexto da IECLB.

Quanto à citação de Lutero apresentada na manifestação da presidência da Associação, que dizer? Ela é a seguinte: “Não devemos nos opor à autoridade com violência, mas com testemunho da verdade. Se ela nos der ouvidos, então está bem; se não agir assim, então tu estás inocentado e sofres injustiça por causa de Deus.” É indicada a fonte na edição alemã das obras de Lutero. Mas teria sido útil mencionar que a frase está contida no escrito de Lutero intitulado “Da autoridade secular, até que ponto lhe é devida obediência”. (Há edição em português e, inclusive, um livreto avulso da Editora Sinodal com esse escrito.) Ou seja, nesse escrito Lutero não fala simplesmente da obediência à autoridade secular, mas igualmente dos limites dessa obediência.

A própria frase citada diz precisamente o contrário do que os signatários da manifestação pensam poder deduzir. Pois a frase de Lutero diz que devemos nos “opor” à autoridade, embora não com violência, mas sim com o testemunho da verdade. Ora, a petição do impeachment faz incontestavelmente isso: opor-se à autoridade com testemunho da verdade.

As mais de 70 páginas do arrazoado que fundamentam o pedido arrolam um conjunto de ações e omissões que a petição julga serem passíveis de serem enquadradas como crimes de responsabilidade. Ao assim argumentarem, ou seja, pelo uso da palavra, onde estaria a violência a que as pessoas signatárias da petição teriam recorrido? Se alguém pensa que a petição foi outra coisa, uma conspiração contra uma autoridade instituída por Deus, como a carta da presidência da Associação faz entender, tem o elementar dever de argumentar por que razão a petição está equivocada.

Ora, é precisamente o que a manifestação da presidência da Associação não faz. Ela simplesmente alega que a confessionalidade da IECLB foi desrespeitada e acusa a própria direção da IECLB de estar se “desviando do evangelho para se engajar politicamente em ações que violentam as Sagradas Escrituras e fomentam apoio às ações visivelmente políticas” e de praticar “conivente silêncio” à “participação político partidária (sic!) de seus ministros e ministras em ativismo político”. Abstendo-se da argumentação de que é devedora, a manifestação se desqualifica a si mesma.

São acusações gratuitas, até levianas, que derivam de suas próprias posições políticas não reveladas no documento, porque de confessionalidade luterana fundamentada elas não derivam de forma alguma. Leia-se outra vez a frase de Lutero aludida. Leiam-se numerosos outros escritos de Lutero, por exemplo, a contundente crítica que ele faz a autoridades políticas em seu importante comentário acerca do Magnificat, ou seja, o cântico de Maria, em Lucas 1.46-55.

Restrinjo-me aqui à exposição de Lutero do Salmo 82. Nela Lutero defende que faz parte da função de quem prega “acusar o mal” e que precisamente autoridades políticas quando criticadas tentam inverter a questão acusando a quem assim prega de ser "subversivo e rebelado contra a autoridade instituída por Deus". (A história de ontem se repete hoje!) Segundo Lutero, a livre pregação do evangelho tem que ser preservada, para que através de sua crítica o poder político seja permanentemente limitado, contestado em sua pretensão à absolutização e lembrado de seus deveres. A autoridade política bem entendida existe para o bem comum do povo e não para a sua desgraça.

Mas é preciso ir mais fundo: nesse escrito Lutero faz a distinção entre diferentes tipos de pregadores. Primeiramente, há os infiéis e preguiçosos, que por comodidade e temor a represálias preferem se omitir. Em segundo lugar, há os bajuladores, que por interesses e conivência apoiam as arbitrariedades políticas. Por fim, há os fofoqueiros, aqueles que preferem fazer as críticas por trás, sorrateiramente, mas não têm a coragem de fazê-las de público. A todos esses Lutero contrapõe o pregador verdadeiro, que não se furta à tarefa de criticar as injustiças e opressões, não tem interesses próprios a defender e não se deixa dobrar pelo medo das consequências pessoais de perseguição que possa vir a sofrer.

Lutero literalmente escreve: “Não é subversivo criticar a autoridade, quando ocorre da maneira aqui descrita, isto é, livre, pública e honestamente no ministério ordenado e através da palavra de Deus. Ao contrário, é uma rara virtude louvável e nobre, até mesmo um serviço a Deus especialmente grande, como o salmo aqui o comprova.” (Expus a interpretação de Lutero do Salmo 82, em mais detalhes, no meu livro Lutero e libertação, publicado pela Editora Sinodal, em 2ª ed. revisada e ampliada de 2016, no capítulo 8.)

Fica claro que a posição da presidência da Associação Luteranos Herdeiros de Worms não tem base alguma em Lutero. Sua fonte é bem outra, ela sim de natureza política, encoberta pela alegação de pretensa confessionalidade luterana. Diante de tais manobras divisionistas e infundadas, é preciso resistir. Resistamos às tentativas de minar a IECLB como entidade que não absolutiza questões importantes, mas conjunturais, e sabe conviver com diferenças preservando seu centro evangélico. Que a IECLB do futuro continue sendo o que ela tem sido historicamente, mas sempre buscando maior fidelidade ao evangelho e à caminhada do reino/reinado de Deus e sua justiça (Mateus 6.33).

 

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