“As rivalidades geopolíticas passaram à frente da cooperação sanitária”. Entrevista com Stewart M. Patrick

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04 Janeiro 2021

A solidariedade internacional desapareceu durante a pandemia de Covid-19 e grandes organismos multilaterais frequentemente permanecem em silêncio. A culpa é de Donald Trump e Xi Jinping? Elementos de resposta com Stewart M. Patrick, cientista político, diretor do Programa Instituições Internacionais e Governança Global do Council on Foreign Relations (Washington) e coordenador do relatório “Improving Pandemic Preparedness. Lessons from Covid-19” (CFR, 8 de outubro de 2020).

A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 28-12-2020. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Quais são as principais lições que podemos aprender com a pandemia em termos de cooperação, ou melhor, de não cooperação, internacional?

A pandemia é a crise sanitária mais dramática em seus efeitos de curto prazo que o mundo enfrentou desde a gripe espanhola no final da Primeira Guerra Mundial. Entre a década de 1920 e hoje, os Estados estabeleceram todo um arcabouço de cooperação internacional, acordos, regras comuns na área da saúde e também instituições especializadas, a começar pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a agência das Nações Unidas criada em 1948. No entanto, quando surgiu a Covid-19, um grande número de Estados ignorou essa estrutura multilateral a ponto de parecer que ela não existia mais.

O primeiro reflexo desses países foi adotar medidas unilaterais dentro de um quadro estritamente nacional, acumulando estoques de medicamentos, impondo restrições de viagens e de comércio... Inclusive quando as trocas comerciais se referiam a equipamentos médicos. Muitos países também contornaram as obrigações que subscreveram junto à OMS, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional, em particular no que diz respeito à coleta e compartilhamento de dados médicos. A lição geral da pandemia é que a cooperação internacional não acontece de maneira mecânica apenas porque existem instituições e normas multilaterais. Essas estruturas devem ser mobilizadas pelos governos. Quando os países se refugiam em respostas puramente nacionais, todo o sistema para.

Os líderes das grandes potências têm uma responsabilidade particular por esse fracasso?

Acredito que com líderes mais responsáveis, a opinião pública poderia ter se convencido de que os países precisavam cooperar mais. A atitude da administração estadunidense tem sido particularmente desastrosa. Em vez de descrever a pandemia como uma ameaça à segurança sanitária do mundo e tentar mobilizar uma resposta internacional coerente, Donald Trump a apresentou a seus concidadãos como um ataque aos Estados Unidos. Ele passou um tempo considerável criticando a China por infligir esse desastre ao mundo; ele até insinuou que ela havia fabricado o vírus. Em seguida, ele continuou falando sobre o “vírus Wuhan” ou o “vírus chinês” para desviar a atenção da opinião pública americana de seu próprio fracasso em preparar os Estados Unidos para a pandemia que iria atingi-los.

Ao mesmo tempo, é claro, não podemos isentar o regime de Pequim quanto à gestão da Covid-19. Assim como aconteceu com a epidemia da SARS (síndrome respiratória aguda grave) em 2003, seu comportamento foi mais opaco. A China compartilhou muito lentamente as informações e os elementos que possuía com a OMS e, de forma mais ampla, com a comunidade internacional. Especialmente as amostras biológicas.

Quais são as instituições internacionais que fizeram mais falta na luta contra a pandemia?

O Conselho de Segurança das Nações Unidas tem estado particularmente ausente. A sua inércia durante esta crise refletiu sobretudo a existência de profundas divergências entre os seus cinco membros permanentes (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) sobre a questão de saber se o Conselho devia tratar de um assunto sanitário. E em caso afirmativo, qual deveria ser o conteúdo de uma possível declaração ou mesmo de uma resolução. Como regra geral, o Conselho tem grande dificuldade em atuar a partir do momento em que um dos seus cinco membros permanentes, que, convém lembrar, dispõem cada um do direito de veto, considera que um ato deste órgão seria contrário aos seus interesses nacionais.

No caso da pandemia, são sobretudo as rivalidades geopolíticas entre os Estados Unidos e a China, rivalidades pré-existentes à crise, que explicam o bloqueio do Conselho. Os primeiros exigiam que qualquer declaração do Conselho devia se referir à origem chinesa do vírus. O segundo obviamente se opôs, mas ainda mais, provavelmente por temer que a sua gestão fosse posta em causa, recusou que um problema de saúde global pudesse ser objeto de resolução, visto que esse tipo de ameaça não entrava no mandato do Conselho, que se relaciona com a paz e a segurança.

No entanto, havia um precedente: durante a crise do Ebola, em 2014, na África Ocidental, o Conselho de Segurança reconheceu que esta epidemia era uma ameaça à segurança mundial. Do ponto de vista da saúde, não há nenhuma razão fundamental para que o Conselho não pudesse ter agido no caso da Covid-19. A diferença é, acima de tudo, política. Isso ocorre porque, na época do Ebola, nenhum membro permanente estava diretamente envolvido no surgimento da pandemia.

É devastador ver que a rivalidade geopolítica entre os Estados Unidos e a China transbordou para uma área como a saúde pública, quando tradicionalmente tem sido um assunto sobre o qual países rivais têm sido capazes de agir juntos. Durante a Guerra Fria, por exemplo, os Estados Unidos e a Rússia não bloquearam a cooperação internacional em questões como a erradicação da varíola ou a luta contra a poliomielite. Eu acrescentaria que, se a ação de outros organismos internacionais como o G20 ou o G7 também foi muito fraca em face da pandemia, isso também se deveu em grande parte devido às rivalidades geopolíticas entre os Estados Unidos e a China. A insistência da Administração Trump em querer culpar Pequim pelo surgimento do vírus e a recusa de outros países em segui-la paralisou essas instâncias, embora, no caso do G7, a China não seja membro.

Diante da crise financeira de 2008, os principais dirigentes da época, ao contrário, não cooperaram para enfrentar a ameaça?

As diferenças na resposta do sistema internacional a essas duas crises são instrutivas. Obviamente, uma pandemia apresenta desafios de natureza muito diferente dos desafios de uma crise financeira, porque uma pandemia pode provocar a morte e não apenas a perda de empregos ou a deterioração da situação econômica dos cidadãos. E quando o medo de morrer se espalha, o reflexo dos indivíduos muitas vezes é recorrer a seu grupo de origem mais próximo, seja ele a família, a comunidade ou o país, em oposição à humanidade como um todo. Além disso, embora uma crise financeira afete diferentes países quase simultaneamente, nem todas as regiões do mundo foram afetadas ao mesmo tempo pela Covid-19. O epicentro da pandemia continuou a se deslocar da Ásia para a Europa e depois para as Américas. De repente, os diferentes países não se sentiram imediata e simultaneamente vulneráveis.

Mas para entender o contraste da reação entre 2008 e 2020, devemos levar em consideração também a diferença da qualidade dos líderes de plantão, mais particularmente nos Estados Unidos. Em novembro de 2008, o governo Bush percebeu que resolver a crise financeira exigiria um alto nível de cooperação internacional e convidou os líderes das principais potências a irem a Washington para a primeira cúpula do G20. O governo Obama, que assumiu as rédeas dos Estados Unidos em janeiro de 2009, aproveitou essa estrutura e a desenvolveu com seus parceiros. Embora a coordenação tenha sido imperfeita e a recuperação não tenha sido tão eficaz em todos os lugares, no geral esse esforço internacional foi bem-sucedido. No caso da Covid-19, pode-se facilmente imaginar que uma reação internacional muito diferente teria sido possível se os Estados Unidos tivessem sido governados por alguém que não fosse Donald Trump, alguém que não foi eleito em base a um slogan como “America First”.

A desconfiança em relação à globalização, que cresceu em muitos países na última década, também explica a falta de cooperação internacional?

De fato. A resposta desordenada à Covid reflete em parte a crescente decepção e desconfiança em relação à globalização. Esse sentimento cresceu nos últimos vinte anos, principalmente com os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos e o aumento do terrorismo em várias regiões do planeta. A crise de 2008, que, na sequência, revelou os perigos do funcionamento das finanças internacionais, também contribuiu para essa desconfiança. Portanto, embora a maioria dos cidadãos americanos acredite que os resultados da globalização são geralmente positivos, uma minoria significativa pensa o contrário. E essa observação é verdadeira em todo o mundo. Parte da opinião pública acredita que a globalização expõe as economias e os trabalhadores a uma concorrência desleal, que exacerba as diferenças de riqueza entre os países, mas também no interior deles.

Há também uma crescente desconfiança em relação aos movimentos populacionais em todo o mundo. Os cidadãos têm o sentimento de que o seu país já não é mais o que era, que perdeu a sua identidade porque o número de imigrantes está aumentando. Nesse contexto, é fácil para os xenófobos e demagogos explorar essas frustrações, usar os recém-chegados a uma sociedade como bodes expiatórios para as dificuldades que ela está passando. O populismo é forte hoje em todo o mundo. Mas, ao mesmo tempo, os líderes que afirmam isso, especialmente nos Estados Unidos, não conseguiram mostrar sua capacidade de resolver os problemas que denunciam. Talvez tenhamos chegado a um ponto crítico para a onda populista.

Apesar do que observamos do comportamento dos Estados até agora, a pandemia pode provocar uma renovação da cooperação internacional, dada a importância dos desafios comuns a todo o mundo?

Continuo otimista porque a história nos mostra que muitas vezes os avanços na cooperação internacional ocorrem após tragédias ou fracassos. Foi após a Grande Depressão dos anos 1920 e a Segunda Guerra Mundial que muitas instituições internacionais foram criadas para tentar evitar que tais tragédias voltem a acontecer. Esses contextos tornam os atores mais abertos à mudança, ao passo que geralmente há muita inércia no sistema internacional.

A probabilidade de que o mundo tome essa direção hoje é muito maior que um novo presidente ocupe a Casa Branca a partir de 20 de janeiro próximo. Espero, por exemplo, que o governo Biden se junte ao projeto Covax, uma iniciativa da OMS, que reúne 150 Estados e outros atores para facilitar o acesso dos países mais pobres às vacinas contra a Covid-19, enquanto muitos países ricos são hoje tentados pelo nacionalismo das vacinas. No entanto, embora os Estados Unidos continuem sendo o país mais poderoso do mundo, hoje existem vários centros de poder no cenário internacional. A China, certamente, mas não só. A forma como grandes países emergentes como o Brasil e a Turquia, que hoje exibem traços democráticos e tendências autoritárias, vão evoluir determinará em grande parte a evolução do sistema internacional em direção a mais nacionalismo e fechamento. Ou, pelo contrário, para mais abertura.

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