Deus e a dor do mundo, segundo Jürgen Moltmann

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31 Março 2020

Segundo o teólogo Jürgen Moltmann, toda a dor do mundo foi assumida pela dor do Pai, na entrega do Filho e na força do Espírito.

O comentário é de Francesco Strazzari, teólogo e padre da Diocese de Vincenza, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 29-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Estamos ouvindo de tudo nestes tempos de coronavírus. Por exemplo, o bispo de Cuernavaca (México), Ramón Castro Castro, em uma homilia dominical – não em uma entrevista, em uma conferência ou em um debate – disse que Deus se irritou porque se abriu caminho para o aborto, a eutanásia e a diversidade sexual. Ele trouxe para campo os furtos, a corrupção, a violência, mas não o tráfico de drogas.

Certamente, o atual pastor da Diocese de Cuernavaca não é sequer a sombra do mítico Méndez Arceo, que dirigiu a diocese de 1953 a 1983, uma das figuras mais prestigiadas do Concílio Vaticano II. Basta pensar no seu apoio à Teologia da Libertação e ao Centro Cultural de Documentação (CIDOC) do filósofo Ivan Illich, que teve muitos problemas com o Vaticano.

O grito do bispo Ramón Castro, que disse ser o “grito de Deus”, certamente não está na linha da intervenção do conhecido jesuíta James Martin, que, no New York Times do dia 22 de março, fez a pergunta: onde está Deus na pandemia?

O Deus crucificado

Incomodemos o grande teólogo reformado, 93 anos, Jürgen Moltmann, que, nos anos 1970, levantou a questão: Deus e a dor do mundo, um tema clássico, desde sempre presente na reflexão teológica, voltou à tona nestes tempos de coronavírus, não investindo apenas sobre os teólogos, mas também sobre as comunidades cristãs, que lidam com o jejum eucarístico, as missas sem participação coral, os ritos mais significativos do ano litúrgico (o Tríduo Pascal).

O teólogo Rosino Gibellini recorda em “Antologia del Novecento Teologico” [Antologia do Século XX Teológico] (Bréscia: Queriniana, 2011, p. 203), que, ainda no século IV, São Basílio, nas homilias da maturidade, falava disso como um “problema frequentemente debatido”.

Nos tempos modernos, o filósofo alemão Leibniz (1646-1716) falou disso nos “Ensaios de teologia” (1710). Como se pode conciliar a onipotência de Deus e a sua bondade com a presença do mal e da dor no mundo? Como se pode justificar a existência de Deus diante do sofrimento?

Nestes anos, o filósofo-teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga fez disso o objeto de argumentações de grande valor. Os seus textos, a esse respeito, são os mais importantes e significativos no horizonte teológico atual.

Nenhum teólogo do século XX – que conheceu Auschwitz, Hiroshima, o Arquipélago Gulag – deu uma contribuição tão importante e decisiva quanto o teólogo Moltmann com a obra “O Deus crucificado” (1972). É uma reflexão que se enraíza na Bíblia, atravessa a filosofia e a teologia, interpela a vida cotidiana do sofrimento e da morte de tantos inocentes, vítimas de guerras absurdas, de ideologias demoníacas, de comportamentos desumanos.

O centro da reflexão de Moltmann é o envolvimento de Deus na paixão do mundo. A cruz é vista e interpretada como um “acontecimento de Deus”, como “história de Deus” e, consequentemente, como “história da história humana”. A conclusão é que a história humana é Deus. “O Deus crucificado” está intimamente conectado com a esperança.

O sofrimento de Deus

Moltmann é o principal artífice da Teologia da Esperança, que o teólogo evangélico já havia delineado em 1964, quando ensinava teologia sistemática em Bonn e que continuaria na Universidade de Tübingen a partir de 1967, dando vida e corpo à cristologia escatológica, que pode ser resumida na célebre expressão: na ressurreição de Cristo estão lançadas as bases do futuro da humanidade. Isso especialmente depois de Auschwitz com a inquietante pergunta: que teologia depois de Auschwitz? “O Deus crucificado” – observa Moltmann – dá profundidade e radicalidade à esperança, introduzindo no movimento messiânico a história da paixão humana.

Observa Moltmann: a cruz deve ser entendida em termos trinitários. “Toda história humana, por mais marcada que esteja pela culpa e pela morte, é superada nessa ‘história de Deus’, quer dizer, na Trindade, e integrada no futuro da ‘história de Deus’. Não existe nenhum sofrimento que nessa história de Deus não seja sofrimento de Deus, assim como não existe nenhuma morte que não tenha se tornado morte de Deus na história do Gólgota. Por isso, não existirão muito menos vida, felicidade e alegria que não sejam integradas, mediante sua história, na história eterna, na alegria infinita de Deus” (“O Deus crucificado”, p. 288).

“Pensemos nos mártires”: escreve Moltmann (1972). “A propósito dessas pessoas, dessas vítimas mudas, só podemos dizer em sentido realmente figurado que o próprio Deus pende da forca” (referência à cena descrita por Elie Wiesel, “La Nuit”, 1950).

E, se o afirmarmos com seriedade, também teremos que acrescentar que, assim como a cruz de Cristo, o campo de concentração de Auschwitz também se encontra em Deus mesmo, ou seja, foi assumido na dor do Pai, na entrega do Filho e na força do Espírito.

Isso não implica a menor justificação do que aconteceu naquele campo de concentração, das atrocidades sofridas por essas vítimas, porque a própria cruz marca o início da história trinitária de Deus. Somente com a ressurreição de mortos, dos assassinados e dos gaseados; somente com a cura dos angustiados e martirizados em vida; somente com a demolição de todo poder e domínio, com a aniquilação da morte, o Filho entregará o reino ao Pai, como Paulo afirma em 1Coríntios 15. Então Deus transformará a própria dor em alegria eterna.

É nesses termos que se anunciam o cumprimento da história trinitária de Deus e o fim da história do mundo, a superação do sofrimento e a realização da história de esperanças da humanidade.

Deus em Auschwitz e Auschwitz em Deus: esse é o fundamento de uma esperança real, que abraça a realidade do mundo e triunfa sobre ela, e é também a razão de um amor que é mais forte do que a morte e que pode “manter parado o mortuum” (expressão hegeliana que indica a força de resistência a tudo o que dissolve e aniquila) (cf. “O Deus crucificado”, pp. 325-327).

Haverá uma teologia após a pandemia? A interrogação já está circulando.

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