A audácia que nos é possível. Artigo de Massimo Recalcati

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28 Março 2020

A potência do que está acontecendo não pode se esgotar apenas na resposta coletiva (necessária) do distanciamento social. É preciso também encurtar os tempos, libertar as forças produtivas, favorecer projetos, visões e ações inéditas, pelo menos tanto quanto o foi, para o mal, o trauma da epidemia.

A pergunta é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 27-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

O tempo que estamos vivendo é o tempo de um trauma coletivo, se o trauma é um evento que despedaça violentamente a nossa representação comum do mundo, introduzindo a dimensão angustiante do inesperado, do imprevisível, do ingovernável.

Para Freud, um evento pode ser chamado de traumático, porque, não sendo previsível de modo algum, impossibilitou qualquer forma de defesa. De fato, ninguém estava preparado para uma emergência como a que estamos vivendo. Um divisor de águas foi cavado entre a nossa vida como era antes e como será depois. Sim, mas como será depois?

Em um artigo amplo e rico, publicado nessa quinta-feira nas páginas do nosso jornal, Alessandro Baricco nos convida, decididamente, a pensar no tempo do pós-trauma. Ele fez isso evocando a figura da audácia.

Neste tempo de crise aguda, ela parece interpretada acima de tudo pelos nossos médicos e pelo nosso pessoal de saúde envolvidos diretamente no terrível front da doença. Não por espírito de aventura, mas por necessidade, ou, se preferirmos, por dever ético e profissional. É um exemplo notável de rigor e paixão; não recuar diante do mal, estar onde estão as maiores dores e medos.

Mas o convite de Baricco à audácia transcende o tempo da gravidade e também o dos tratamentos médicos. Podemos nos limitar à prudência, necessária para defender a nossa vida e a dos outros, a fim de desacelerar a cadeia do contágio, ou também podemos começar a alavancar a audácia?

Trata-se de olhar além, enquanto ainda estamos fechados nas nossas casas, petrificados pelo medo que, como se sabe, não apenas para os psicanalistas, restringe forçosamente o horizonte do mundo. Pode-se responder de dois modos à poderosa lição do trauma: fingir que voltamos a viver como antes, como se nada tivesse acontecido, portanto, desconhecer o porte catastrófico do seu evento, ou tentar extrair desta inesperada potência negativa uma força nova.

Ser audazes significa isto para mim: não desconhecer o trauma, mas o tomar como uma poderosa oportunidade de transformação.

A psicanálise faz disso uma pedra angular da sua prática: a crise mais profunda sempre pode se revelar como uma oportunidade extraordinária de reinício. É a cicatriz viva que reconhecemos em todas as pessoas que se viram diante do risco da sua morte ou envolvidas em um longo período de privação e dor, e que, resistindo e sobrevivendo, não conseguiram mais viver como antes. Como se o encontro com a possibilidade muito concreta do seu fim tivesse exaltado a sua pulsão de vida.

A sua necessidade tornou-se a de querer gastar todo o tempo que restava da sua vida com o essencial; eliminar o supérfluo, os ônus, a impotência e a utopia abstrata para cultivar a potência vital do essencial.

Esta é para mim uma fórmula da audácia: livrar-se dos pesos que obstaculizam a liberação da força vital e apostar na potência afirmativa dessa liberação. Estamos experimentando que se tornou possível aquilo que considerávamos impossível. Para o mal, isso ocorreu com a epidemia. Ninguém podia imaginar que o mundo podia parar, e a morte, desenfrear-se.

E para o bem? Já não estão diante dos nossos olhos as formidáveis energias criativas que se mobilizaram em resposta ao trauma? Solidariedade, desburocratização, empreendimento, flexibilidade, importância finalmente reconhecida à saúde e à escola pública, aos bens comuns etc.

A potência do que está acontecendo não pode se esgotar apenas na resposta coletiva (necessária) do distanciamento social. É preciso também encurtar os tempos, libertar as forças produtivas, favorecer projetos, visões e ações inéditas, pelo menos tanto quanto o foi, para o mal, o trauma da epidemia.

Todo trauma, de fato, exige que o reinício seja audacioso para que a sua potência negativa possa se converter em uma oportunidade afirmativa. O impossível que se torna possível não deve ocorrer apenas no nível angustiante de um drama totalmente inesperado e perturbador que se realizou como o nosso pior pesadelo, mas deve inspirar também a dimensão generativa das nossas escolhas futuras: a audácia de obras coletivas consideradas impossíveis que finalmente se tornam possíveis.

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